segunda-feira, 28 de janeiro de 2008

Pedaço de Mim

A palavra "saudade" é comumente considerada uma das mais difícieis de se traduzir. Ela vem do latim solitas, solitatis, que significa "solidão". Daí "solitude" (francês), "solitúdine" (italiano) e "soledad" (espanhol). Mas eles, diferente de nós, não desenvolveram uma palavra diferenciada com a particularidade de "saudade". Esta tem grande flexibilidade na nossa língua: por meio dela podemos extravasar os sentimentos mais profundos, os desejos ou caprichos mais corriqueiros.
Saudade é a recordação nostálgica e suave de pessoas ou coisas distantes ou extintas, acompanhada da vontade de revê-las e tê-las de volta; desejo de um bem que se perdeu, ainda que provisoriamente. É um sentimento de amor e de ausência.
Foi o que me ocorreu ao revisitar essa composição maravilhosa do Chico. Ele cria imagens belas e doloridas para esse sentimento.

Que a saudade dói como um barco
Que aos poucos descreve um arco
E evita atracar no cais.

A saudade é como um barco: ela nunca é saciada, nunca chega ao seu porto. É separação, distanciamento, vagando num mar infinito, carregando aquilo que mais prezamos pra longe da gente. Mas, talvez, as melhores imagens sejam estas:

Que a saudade é o revés de um parto
A saudade é arrumar o quarto
Do filho que já morreu

O parto pressupõe um movimento de dentro para fora, certo? A saudade é justamente o inverso disso: um movimento de fora pra dentro. Aquilo que desejamos já não tem mais existência no mundo físico. Existe - e vive! - dentro de nós.
Agora, vejamos os versos seguintes: "Saudade é arrumar o quarto / do filho que já morreu". Esses versos são os mais pungentes e dolorosos de toda a canção e resgatam a idéia dos versos anteriores. Saudade é a perda de algo que amamos e desejamos reaver, por mais impossível que isso seja, como um filho morto que ainda vive na lembrança dos pais por meio de seus pequenos objetos deixados no quarto vazio. Ele está lá e, ao mesmo tempo, não está. É... a saudade pode ser isso: um quarto vazio, repleto de lembranças. Um quarto que dói.
Além disso, o título, bem como os segundos versos de cada estrofe, lembram-me bastante do filósofo grego Platão:

"Oh, metade afastada de mim..."
"Oh, metade exilada de mim..."
"Oh, metade arrancada de mim..."
"Oh, metade amputada de mim..."

Ele tem um livro chamado O banquete, que é uma grande dissertação sobre o amor. Em uma espécie de piquenique, vários filósofos expõem sua opinião sobre o tema. Um deles, Aristófanes, lança sua teoria sobre as almas gêmeas. Diz ele que, no início dos tempos, o mundo era habitado por seres fabulosos e andróginos, ou seja, não havia gênero masculino ou feminino. Ambos eram um só. E como eram belos e poderosos!
Naturalmente, Zeus, o poderoso chefão dos deuses, não gostou muito disso. Afinal, eles representavam uma ameaça. E se essas criaturas - semelhantes aos deuses do Olimpo - decidissem destituí-lo do trono e tomassem o poder? Astuto, decide enfraquecê-los portanto. Como fez isso? Dividindo-os ao meio.
Dessa forma, nasce o homem e a mulher. O que era um, agora são dois. E Zeus os condena a vagar pela Terra em busca da sua outra metade, na tentativa, inútil, de voltar àquela unidade perdida.
Esses somos nós. Seres mutilados, partidos, condenados a errar pelo mundo em busca daquela parte que nos completa. Daquela parte que, no fundo, somos nós mesmos. Quem já não disse a respeito de uma namorada: "Ah, ela me completa!"?
Conclusão: nossa busca pela "cara metade", pela "alma gêmea", pelo "pedaço de mim", é uma busca pelo autoconhecimento, é uma jornada para encontrarmos a nós mesmos. Só assim - amando - poderemos ser deuses novamente.



Um comentário:

Unknown disse...

Abri uma janela para ler um poema e caí bem aqui. Bem e aqui.Estou encantada com suas interpretações. Já comentei em outro poema que isso não é uma interpretação, é "um poema do poema". Uma brilhante narrativa que nos emociona e nos convida a mergulhar nas palavras, frases, rimas, versos e na vida ali contida. Gratidão!