domingo, 29 de maio de 2011

Verdade e preconceito

TENHO COMENTADO aqui o fato de que, para alguns linguistas, nunca há erro no uso do idioma: tanto faz dizer "problema" como "pobrema" que está certo. Confesso que, na minha modesta condição de escritor e jornalista, surpreendo-me, eu que, ao suspeitar que poderia me tornar poeta, passei dois anos só lendo gramáticas. E sabem por quê? Porque acreditava que escritor não pode escrever errado.
E agora descubro que ninguém escreve errado nunca, pois todo modo de escrever e falar é correto! Perdi meu tempo? Mas alguma coisa em mim se nega a concordar com os linguistas: se em todo campo do conhecimento e da ação humana se cometem erros, por que só no uso da língua não? É difícil de engolir.
Essa questão veio de novo à baila com a notícia de um livro, adotado pelo Ministério da Educação e distribuído às escolas, em que a autora ensina que dizer "os livro" está correto. Estabeleceu-se uma discussão pública do assunto, ficando claro que, fora os linguistas, ninguém aceita que falar errado esteja certo.
Mas não é tão simples assim. Falar não é o mesmo que escrever e, por isso, falando, muita vez cometemos erros que, ao escrever, não cometemos. E às vezes usamos expressões deliberadamente "erradas" ou para fazer graça ou por ironia. Mas, em tudo isso, está implícito que há um modo correto de dizer as coisas, pois a língua tem normas.
O leitor já deve ter ouvido falar em "entropia", uma lei da física que constata a tendência dos sistemas físicos para a desordem. E essa tendência parece presente em todos os sistemas, inclusive nos idiomas, que são também sistemas.
Devemos observar que as línguas, como organismos vivos que são, mudam, transformam-se, como se pode verificar comparando textos escritos em épocas diferentes. Há ainda as variações do falar regional, que guarda inevitáveis peculiaridades e constituem riqueza do idioma.
Mas isso não é a mesma coisa que entropia. Já violar as normas gramaticais é, sim, caminhar para a desordem. Se isso é natural e inevitável, é também natural o esforço para manter a ordem linguística, que não foi inventada pelos gramáticos, mas apenas formulada e sistematizada por eles: nasceu naturalmente porque, sem ela, seria impossível as pessoas se entenderem.
Na minha condição de "especialista em ideias gerais" (Otto Lara Resende), verifico que, atualmente, não só na linguística, tende-se a admitir que tudo está certo e, se alguém discorda dessa generosa abertura, passa a ser tido como superado e preconceituoso.
Agora mesmo, durante essa discussão em torno do tal livro, os defensores da tese linguística afirmaram que quem dela discordava era por preconceito.
Um dos secretários do ministro da Educação declarou que aquele ministério não se julgava "dono da verdade" e que, por isso mesmo, não poderia impedir que o livro fosse comprado e distribuído às escolas.
Uma declaração surpreendente, já que ninguém estava pedindo ao ministro que afirmasse ou negasse a existência de Deus, e sim, tão somente, que decidisse sobre uma questão pertinente à sua função ministerial.
Não é ele o ministro da Educação? Não é ele responsável pelo rumo que se imprima à educação pública no país? Se isso não é de sua competência, é de quem? De fato, o que estava por trás daquela afirmação do secretário não era bem isso, e sim que a crítica ao livro em discussão não tinha nenhum fundamento: era mero preconceito. Ou seja, simples pretensão de quem se julga dono da verdade que, como se sabe, não existe...
Esse relativismo, bastante conveniente quando se quer fugir à responsabilidade, tornou-se a maneira mais fácil de escapar à discussão dos problemas.
Certamente, não se trata de afirmar que as normas e princípios que regem o idioma ou a vida social estejam acima de qualquer crítica, mas, pelo contrário, devem ser questionados e discutidos. Considerar que todo e qualquer reparo a este ou aquele princípio é mero preconceito, isso sim, é pretender que há verdades intocáveis.
Não li o tal livro, não quero julgá-lo a priori. Creio, porém, que quem fala errado vai à escola para aprender a falar certo, mas, se para o professor o errado está certo, não há o que aprender.

GULLAR, Ferreira. Folha de S. Paulo, 29 maio 2011.

Meros funcionários

Certo livro didático está na berlinda por propor que as pessoas possam fugir da norma culta da língua portuguesa e dizer "Os livro" e "Nós pega os peixe". De fato, as normas existem para ser transgredidas - mas por quem de direito. Eis alguns que fizeram isto no romance, na música popular e na poesia. E o fizeram muito bem.
Guimarães Rosa reinventou a língua criando palavras como "ensimesmudo", "sussurruído", "engenhingonça", "coraçãomente", "infinilhões", "homenzarrinho" e muitas outras. Essa língua só existia em seus livros. Adoniran Barbosa escreveu "Arnesto", "brabuleta", "pogréssio" e "nóis não semo tatu" porque fazia um tipo, um personagem. Não falava assim na vida real e não gostava quando parafraseavam suas letras, mesmo mantendo sua gramática particular.
Ferreira Gullar detonou a língua nos versos finais de "A Luta Corporal", ao escrever "Urr verõens/ Ôr/ Túfuns/ Lerr desvéslez várzens". Mas, nos anos seguintes, trouxe-a de volta aos cânones, para usá-la como ninguém. E João Cabral de Melo Neto, no poema "Uma Faca Só Lâmina", rimou "faca" com "bala" e "ávida" com "lâmina". Se lhe dissessem que essas palavras não rimam, ele diria que, nos poemas dele, rimavam, sim.
No fox-nonsense "Canção Pra Inglês Ver", Lamartine Babo misturou citações em português e inglês, resultando em "I love you/ Forget sclaine/ Maine Itapiru". E, antes dele, Juó Bananére já tinha feito paródias em dialeto ítalo-caipira de poemas conhecidos, tipo "Che bruta insgugliambaçó/ Che troça, che bringadêra/ Imbaixo das bananêra/ Na sombra dos bambuzá".
Rosa, Adoniran, Gullar, João Cabral, Lalá e Bananére não fizeram escola, nem esta era sua intenção. Continuaram únicos. Artistas podem e devem fugir da norma. Já os professores e linguistas têm de aderir a ela, como meros funcionários da língua que são.

CASTRO, RUY. Folha de S. Paulo, 20 maio 2011, p. A2.

"Os livro"

Há notório exagero na polêmica deflagrada pela revelação de que um livro didático adotado pelo Ministério da Educação (MEC) admite o emprego de expressões erradas, do ponto de vista gramatical, dependendo do contexto em que são utilizadas.
"Os livro ilustrado mais interessante estão emprestado." Segundo a obra "Por Uma Vida Melhor", distribuída a alunos jovens e adultos de 4.236 escolas do país, uma frase como essa pode ser empregada, embora o estudante seja ali advertido de que, ao fazê-lo, "corre o risco de ser vítima de preconceito linguístico".
Há muito que a norma culta - o padrão estabelecido por gramáticos e lexicógrafos, que nem sempre, aliás, se põem de acordo - deixou de ter valor absoluto. O substrato real de toda língua está na fala popular, que evolui ao longo do tempo e impõe, cedo ou tarde, mudanças na norma que se convencionou ser a correta.
Em contexto oral, coloquial ou literário, admitem-se variações definidas como erradas pelo padrão gramatical. Esse padrão configura apenas um conjunto de convenções que assegura lógica ao funcionamento do idioma, ainda que suas regras sejam eivadas de exceções e anomalias.
Daí não decorre, porém, que a norma culta seja um parâmetro inútil ou preconceituoso. Trata-se de um lastro, que também evolui no tempo, cujo sentido é tornar a língua estável e previsível; sem tal garantia, as variações cresceriam de forma desordenada até inviabilizar a própria comunicação.
Além disso, o aprendizado da norma culta faz parte da disciplina intelectual que deveria ser estimulada em qualquer estabelecimento de ensino. Aprender custa tempo e esforço.
O episódio, que faz lembrar as ferozes controvérsias gramaticais da República Velha (1889-1930), é menos relevante em si do que pelo que reitera em termos de mentalidade pedagógica.
De algumas décadas para cá, a pretexto de promover uma educação "popular" ou "democrática", muitos educadores dedicam-se a solapar toda forma de saber implicada no repertório de conteúdos que a humanidade vem acumulando ao longo das gerações.
Em vez da revolução pedagógica que apregoam, o resultado tem sido a implantação despercebida da lei do menor esforço nas escolas. Estuda-se pouco e ensina-se mal. Isso - e não suscetibilidades gramaticais- é o que deveria preocupar.

Folha de S. Paulo, 19 maio 2011, p. A2.

domingo, 15 de maio de 2011

Inguinorança

Não, leitor, o título acima não está errado, segundo os padrões educacionais agora adotados pelo mal chamado Ministério de Educação. Você deve ter visto que o MEC deu aval a um livro que se diz didático no qual se ensina que falar "os livro" pode.
Não pode, não, está errado, é ignorância, pura ignorância, má formação educacional, preguiça do educador em corrigir erros. Afinal, é muito mais difícil ensinar o certo do que aceitar o errado com o qual o aluno chega à escola.
Em tese, os professores são pagos - mal pagos, é verdade - para ensinar o certo. Mas, se aceitam o errado, como agora avaliza o MEC, o baixo salário está justificado. O professor perde a razão de reclamar porque não está cumprindo o seu papel, não está trabalhando direito e quem não trabalha direito não merece boa paga.
Os autores do crime linguístico aprovado pelo MEC usam um argumento delinquencial para dar licença para o assassinato da língua: dizem que quem usa "os livro" precisa ficar atento porque "corre o risco de ser vítima de preconceito linguístico".
Absurdo total. Não se trata de preconceito linguístico. Trata-se, pura e simplesmente, de respeitar normas que custaram anos de evolução para que as pessoas pudessem se comunicar de uma maneira que umas entendam perfeitamente as outras.
Os autores do livro criminoso poderiam usar outro exemplo: "Posso matar um desafeto? Claro que pode. Mas fique atento porque, dependendo da situação, você corre o risco de ser vítima de preconceito jurídico".
Tal como matar alguém viola uma norma, matar o idioma viola outra. Condenar uma e outra violação está longe de ser preconceito. É um critério civilizatório.
Que professores prefiram a preguiça ao ensino, já é péssimo. Que o MEC os premie, é crime.

ROSSi, Clóvis. Folha de S. Paulo, 15 maio 2011, p. A2.

sábado, 7 de maio de 2011

Woody Allen põe Machado entre favoritos

Em entrevista ao jornal britânico "The Guardian", o cineasta indicou "Memórias Póstumas de Brás Cubas" como um dos cinco livros que mais o influenciaram, ao lado de "O Apanhador no Campo de Centeio", de J.D. Salinger. "Fiquei chocado com o quão charmoso e interessante [o livro] era."

Folha de S. Paulo, 7 maio 2011.