domingo, 27 de dezembro de 2009

Afinal, por que ler nas férias?

IVO BARROSO
ESPECIAL PARA A FOLHA
Quando minha mulher me viu enfiar o suspeito embrulho na mala do carro, foi logo perguntando: "Que é isto? Não vai dizer que está levando livros para ler nas férias?!"
O espanto era natural: ela não podia admitir que alguém, que passa o ano inteiro metido nos livros, os carregasse para a montanha ou a praia, onde o ideal seria quebrar essa rotina de ler e de escrever.
Explico que a leitura das férias é totalmente diversa da que fazemos por dever de ofício. São férias de leitura essas leituras das férias; nelas saboreamos de novo o prazer de ler sem compromisso, numa boa, por mera distração.

Leitura e lazer
Rodeado de verde ou embaixo de um para-sol, a leitura se torna tão agradável e menos cansativa do que as caminhadas pelo mato e as braçadas na piscina.
Não que uma coisa vá impedir a outra, pois as férias nos permitem saborear esse coquetel de ação e meditação: exercício muscular e repouso mental associados a repouso muscular e exercício mental.
Nas férias, você pode ler aquele livro que seus colegas de trabalho estavam comentando com você por fora.
Se não gosta de best-sellers, está bem, mas, nas férias, não custa ver por que motivo estão falando de vampiros as mesmas pessoas que no ano passado falavam de Harry Potter.
Claro, se você é chegado às letras, aproveite para pegar de novo aquele livro fundamental que você deixou no capítulo 14.
Novidades? É só passar numa livraria que os tentáculos envolventes de centenas de tomos, com suas capas chamativas e títulos provocantes, estarão prontos para te agarrar ou desejosos de serem agarrados.
Nos escaparates (é assim que se diz vitrines em Portugal -aprendi isso num livro), centenas de autores estarão disputando a possibilidade de entrar em férias... com você.
Leve algum, não hesite: haverá sempre um dia de chuva, um churrasco indigesto, uma festa de crianças que lhe permitirão refugiar-se no barato careta da leitura.


IVO BARROSO é poeta e crítico. É autor de "A Caça Virtual" (ed. Record) e tradutor de "Arthur Rimbaud - Correspondência" (Topbooks).

quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

Cinco acusações contra o ENEM

1. CONFUSÃO entre avaliação e seleção. Criado com a saudável finalidade de avaliar os estudantes e as escolas brasileiras, o Enem agora passou, sem muita cautela, a ser um instrumento de seleção para ingresso na universidade.
São, ou deveriam ser, duas atividades muito distintas, que o Brasil lamentavelmente tem misturado desde o começo dos anos 70, quando houve forte aumento do número de formados no ensino médio demandando as escassas vagas superiores, num processo que constrangeu as universidades a barrar candidatos em massa.
Resultou que o vestibular, exame de seleção para ingresso, gerou um rebote e virou critério informal, mas efetivo, de avaliação das escolas e dos alunos, num curto-circuito perverso, agora reiterado pelo MEC.
2. Reforço à supercentralização. Na pior tradição ultracentralista do Estado brasileiro -que, ao longo dos tempos, suga as províncias e esvazia seu poder, cevando com isso a imensa burocracia sediada na capital-, agora o MEC inventa um exame nacional concentradíssimo. O imbróglio do Enem pouco tempo atrás foi fruto de maldade e inexperiência, mas, mais ainda, dessa supercentralização.
Além disso, o Enem, aplicado no país todo, suprimiu temas que chama de "regionais", o que envolve de revoltas sociais e marcos geográficos a escritores e livros. Segundo qual critério se define o "nacional" ou o "regional" não está claro, mas eu arrisco dizer: será o critério da atual hegemonia cultural, que é paulistocêntrica.
3. Desrespeito pela experiência das universidades. Que o MEC quisesse inventar um exame nacional com papel de seleção seria até respeitável, desde que, pelo menos, fosse levada em conta a vasta experiência acumulada nas melhores universidades brasileiras. Ao longo de quase 40 anos, foram elaboradas provas de seleção que representaram incontável avanço, em todas as áreas. As universidades operaram dentro de regras relativamente duras, e o fizeram com grande competência. Por que bom motivo o MEC não considerou essa riqueza acumulada? Nem falemos do processo de atribuição de notas para a redação, que vai ser feito sem a necessária unidade de operação, cada avaliador em sua casa, em outro desrespeito a uma larga e competente tradição das boas universidades brasileiras.
4. Autoritarismo. O MEC induziu as universidades a aceitarem o Enem como vestibular, com uma pequena margem de manobra (margem que foi aproveitada, não por acaso, pelas mais competentes universidades, que, enquanto não forem constrangidas economicamente, vão resistir a ele, espero). O prazo desse processo, considerando a correta lentidão que uma universidade precisa manter, foi estreitíssimo. E a mudança foi divulgada, como se viu em Porto Alegre, com ares de verdade revelada: quadros do MEC vieram à boca da cena, com aquele sorriso desdenhoso de quem tem pouca leitura e muito poder, para regozijar-se com a suposta modernização que anunciavam. Durante a ditadura, é bom lembrar, também se viu isso: a toque de caixa, sem debate público e embalado por um discurso modernizador, o governo federal impôs aquela mixórdia legal que alterou para pior o ensino fundamental e o médio. Um paralelo assustador: àquela época, o MEC quis abolir o ensino de português e literatura, obrigando à medonha "comunicação e expressão"; agora, o MEC nomeia a prova que trata dos mesmos conteúdos com outro horror: "linguagens, códigos e suas tecnologias". Autoritarismo pouco culto, de quem presume estar reinventando o mundo, aliado a redação inepta, em mais um assalto da luta da pedagogia inespecífica contra os "conteúdos" que ela tanto despreza -e ai de quem tenha estudado e valorize algum deles.
5. Desprezo pela história da literatura. O modo de elaborar a prova, na tal área de linguagens, códigos e, argh, suas tecnologias, jogou no lixo a grande tradição de ensino de história da literatura. Há defeitos nela? Por certo que sim, e está aqui um dos tantos críticos dos modelos atuais; mas provavelmente serão proporcionais aos de qualquer outra área. O certo é que o Enem trata o texto literário como apenas um texto entre outros, um poema de Drummond no mesmo patamar que um anúncio de remédio e um cartaz contra o cigarro, sem nenhum contexto. As aulas de história da literatura costumam ser a melhor (quando não a única) porta de entrada oferecida pela escola ao mundo da cultura letrada; abolida do programa do Enem a demanda por essa dimensão, e na assustadora hipótese de o exame vir a ser o vestibular universal para o terceiro grau, o que ocorrerá?
A morte por asfixia da história da literatura parece quase inevitável, e com ela a citada porta de entrada. Isso num governo de esquerda, que costuma alegar gosto pela história.


LUÍS AUGUSTO FISCHER , 51, é professor de literatura brasileira na UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) e escritor, autor de "Inteligência com Dor" (Arquipélago), entre outros livros.

Folha de S. Paulo, 10/12/2009.

domingo, 6 de dezembro de 2009

Para além d' "O Menino Maluquinho"

Blog do Ziraldo

    Ótimo para os mais jovens descobrirem porque ele é considerado um dos maiores cartunistas e chargistas do país.

(E olha que a charge é de 1984! )

Cultura não cheira bem

    Bem pertinente o texto de Jorge Coli, publicado hoje (6/12) na Folha. Para ele, o homem sofisticado culturalmente inspira desconfiança. Prova disso está no lugar que lhe reserva a cultura pop. Sempre no papel do psicopata, do desajustado, do misantropo arrogante.

Se alguém é culto, é porque há algo de errado com ele: alguma perversão sórdida, algum impulso assassino, alguma crueldade deve se aninhar, secreta, nessa alma. Cultura não cheira bem.
 (...)
Por vezes, certos retratos revelam que a cultura corrompe a pureza da alma, a energia espontânea. Sintoma de deliquescência, de decadência, de enfraquecimento, ela surgiria onde há falta de energia, de vitalidade, de virilidade.
Muita gente, por sinal, teme a cultura para seus filhos homens. Menino deve jogar futebol, e não ficar lendo livro, ouvindo ópera, indo ver exposição de pintura. É mau sinal. Quantos pais aceitam tranquilamente a vontade de um garoto de estudar balé -forma cultural particularmente crivada pelos preconceitos sexuais?
Cultura, coisa de pessoas privilegiadas, traz ainda uma inevitável marca de classe. Isso se espelha na oposição, que tantos proclamam, entre "cultura das elites" e "cultura popular", com desprezo por uma e valorização da outra.
Cultura é ainda desdenhada quando se suspeita nela o crime da erudição, mal-entendido como acúmulo estéril de conhecimento "não crítico". No entanto, qualquer um que tenha descoberto Picasso, Beethoven ou Dostoiévski sabe que as experiências oferecidas pela cultura modificam o espírito e que o melhoram. Percebe que sensibilidade, refinamento, estudo, saber e prazer imbricam-se nela.

    Hoje, vejo pais de alunos meus que se recusam a comprar livros a seus filhos. Para quê? É dinheiro perdido. Uma vez comprado, ele repousará depois de lido (se lido!) numa estante qualquer e não terá mais nenhuma utilidade. É o que dizem.

Dica: "o livreiro"



Descobri uma espécie de Orkut para quem ama ler.
Acho que é patrocinado pela livraria Cultura.
Dá para pesquisar livros, associar-se a comunidades literárias; emitir opiniões sobre as obras; fazer lista de livros que leu, lerá, quer emprestar ou ganhar. Além disso, há um blog e um clube do livro supervisionado pelo Milton Hatoum.
Para acessá-lo, basta clicar no título acima.
Fica a dica!

sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

Para quem gosta de ler


A vírgula


 Vírgula pode ser uma pausa... ou não.
 Não, espere.
 Não espere.
 
 Ela pode sumir com seu dinheiro.
 23,4.
 2,34.
 
 Pode criar heróis..
 Isso só, ele resolve.
 Isso só ele resolve.

 Ela pode ser a solução.
 Vamos perder, nada foi resolvido.
 Vamos perder nada, foi resolvido.
 
 A vírgula muda uma opinião.
 Não queremos saber.
 Não, queremos saber.
 
 A vírgula pode condenar ou salvar. 
 Não tenha clemência!
 Não, tenha clemência!
 
 Uma vírgula muda tudo.
 

 Detalhes Adicionais:
 
 SE O HOMEM SOUBESSE O VALOR QUE TEM A MULHER ANDARIA DE QUATRO À SUA PROCURA.
 
 
* Se você for mulher, certamente colocou a vírgula depois de MULHER...

 * Se você for homem, colocou a vírgula depois de TEM...

sexta-feira, 27 de novembro de 2009

A vida é doce


BOMBOM DE TRAVESSA
- Ingredientes:

500g de chocolate branco derretido;
400g de chocolate ao leite;
1 lata de creme de leite;
10 bombons sonho de valsa;
1 pote de pasta de amendoim.

    - Preparo:
    Em um refratário médio, coloque o chocolate branco derretido, a pasta de amendoim e o creme de leite. Misture. Alise com uma colher. Espalhe os bombons cortados ao meio. Cubra com o chocolate ao leite derretido. Leve à geladeira por 1h.

    segunda-feira, 23 de novembro de 2009

    O hábito faz o leitor

    A americana Maryanne Wolf é uma das maiores especialistas na área da neurociência que estuda os efeitos da leitura no cérebro, tema sobre o qual já escreveu mais de uma dezena de livros. Hoje, ela se dedica a entender, cientificamente, como as pessoas assimilam conhecimento por meio de novas tecnologias, como o e-book. De Boston, onde comanda um centro de pesquisas na Universidade Tufts, Maryanne falou à repórter Renata Betti. 
     
    Suas pesquisas indicam que ler um livro digital não é o mesmo que no papel. Por quê?
    A observação sistemática mostra que, com o e-book, as pessoas tendem a acelerar o ritmo de leitura e a absorver menos conteúdo. Isso porque a tela remete à ideia de que é preciso vencer etapas a cada instante, antes que a bateria termine ou que se perca a conexão. Ainda faltam, no entanto, evidências baseadas na neurociência, como as que já existem sobre a internet.
    O que já se sabe sobre a leitura na rede?
    Ela é mais superficial, segundo revelam as imagens dos neurônios quando alguém está diante do computador. As fotos mostram, com nitidez, que o circuito formado entre as áreas do cérebro envolvidas na leitura não chega, nesse caso, àquela região em que ela seria processada de maneira mais analítica.
    Por que isso acontece?
    A internet provê um excesso de estímulos que acabam atrapalhando. Enquanto você lê Shakespeare, não param de aparecer na tela pop-ups e e-mails. É naturalmente difícil manter a concentração e fazer uma leitura de padrão mais elevado, que abra espaço para um alto grau de processamento de ideias. A habilidade para ler deve ser treinada.
    Como, exatamente?
    Simples: lendo todo dia. Não existe no cérebro nada como uma estrutura previamente concebida para a leitura – é preciso construí-la e aprimorá-la. Funciona como no esporte: quanto mais se pratica, melhor é o resultado.
    Como a neurociência explica a formação de tal estrutura no cérebro?
    A repetição da leitura faz o cérebro desenvolver um circuito que passa a conectar, em questão de milésimos de segundo, três áreas distintas: a da visão, a da linguagem e uma que se encarrega de dar significado às palavras. Esse mesmo roteiro pode levar até 100 vezes mais tempo, caso a pessoa não tenha o hábito de ler. Seu cérebro fica tomado com a tarefa básica de decodificar o texto – e não consegue ir muito além disso.
    Como alcançar um avançado estágio de leitura por meio das novas tecnologias?
    É preciso enfatizar à atual geração multitarefas que leitura demanda altíssima atenção e não é conciliável com nenhuma outra atividade. Feita a ponderação, novas tecnologias, como o e-book, são mais do que bem-vindas. Elas têm ajudado, afinal, a despertar o interesse pelos livros num momento em que isso nunca foi tão difícil.

    Veja, ed. 2139, 18 nov. 2009.

    quinta-feira, 12 de novembro de 2009

    quinta-feira, 5 de novembro de 2009

    Livros para adolescentes de todas as idades

    Como diria Roland Barthes, são inúmeras as narrativas do mundo. Estas últimas, aliás, não são exclusividade do romance, do conto, do poema épico. Elas aparecem na filosofia, na ciência, no cinema, na pintura etc. Porém, como o meu universo é o da literatura, elaborei uma pequena lista de obras que, quem sabe, poderão despertar o interesse dos iniciantes.
    Optei por destacar - a esmo - os textos de ação. A partir daí, o leitor poderá se aventurar mais tarde pelos  romances de personagem, de espaço, de introspecção psicológica...
    Não me esqueci também do gênero lírico. Na lista, constam alguns livros de poemas.
    Divirtam-se!

    1. A história sem fim - Michael Ende;
    2. Cem anos de solidão - Gabriel Garcia Márquez;
    3. O assassinato de Roger Ackroyd - Agatha Christie;
    4. Fronteiras do Universo - trilogia de Philip Pullman;
    5. Guia do mochileiro das galáxias - Douglas Adams;
    6. O morro dos ventos uivantes - Emily Brönte;
    7. Série Discworld - Terry Pratchett;
    8. Entrevista com o vampiro - Anne Rice;
    9. Não verás país nenhum - Inácio de Loyola Brandão;
    10. Feliz Ano Velho - Marcelo Rubens Paiva;
    11. 1984 - George Orwell;
    12. Comédias da vida privada - Luís Fernando Veríssimo;
    13. Eu, Christiane F., 13 anos, drogada e prostituída -  Horst Rieck e Kai Hermann;
    14. O príncipe feliz e outras histórias - Oscar Wilde;
    15. Pensão Riso da Noite, Rua das Mágoas - José Condé;
    16. Mar Morto - Jorge Amado;
    17. Terras do sem fim - Jorge Amado;
    18. Gabriela, Cravo e Canela - Jorge Amado;
    19. As aventuras de Sherlock Holmes - Arthur Conan Doyle;
    20. Cândido ou O Otimista - Voltaire;
    21. O gênio do crime - João Carlos Marinho;
    22. Horizonte Perdido - James Hilton;
    23. Caderno H - Mário Quintana;
    24. Prosas seguidas de odes mínimas - José Paulo Paes;
    25. Antologia poética - Vinícius de Moraes;
    26. 200 crônicas escolhidas - Rubem Braga;
    27. O mundo de Sofia - Jostein Gaarder;
    28. Toda Mafalda - Quino;
    29. Auto da Compadecida - Ariano Suassuna;
    30. Édipo Rei - Sófocles;
    31. Miguilim - João Guimarães Rosa;
    32. O pequeno Nicolau - Goscinny & Sempé;
    33. Antologia Poética - Manuel Bandeira;
    34. Alguma poesia - Carlos Drummond de Andrade;
    35. A vida como ela é - Nélson Rodrigues;
    36. Pequeno dicionário de palavras ao vento - Adriana Falcão;
    37. O coronel e o lobisomem - José Cândido de Carvalho;
    38. O Chalaça - José Roberto Torero;
    39. O guardador de rebanhos - Fernando Pessoa;
    40. Série Harry Potter - J. K. Rowling;
    41. Menino de Engenho - José Lins do Rego;
    42. O mágico da taberna minhota - Murilo Rubião;
    43. Gota d'água - Chico Buarque e Paulo Pontes;
    44. A insustentável leveza do ser - Milan Kundera.

        Religião do acaso

        No inventário dos fracassos humanos, talvez não haja aposta tão malsucedida quanto a de marcar data para o fim do mundo. Falhou 100% das vezes, mas continua a se espalhar, resistindo ao tempo, à razão e à ciência. As tentativas de explicar esse fenômeno são uma viagem fascinante pela alma, pela psique, pelo cérebro humano. Uma das explicações está no fato de que o nosso cérebro é uma máquina programada para extrair sentido do mundo. Assim, somos levados a atribuir ordem e significado às coisas, mesmo onde tudo é casual e fortuito. As constelações no céu, por exemplo, são uma criação mental para organizar o caos estelar. Ao enxergarmos as constelações de Órion ou Andrômeda, encontramos ordem e sentido. O dado complicador é que a vida, no céu e na terra, deve muito mais às contingências do acaso do que ao determinismo. O espermatozoide que fecundou o óvulo que gerou Albert Einstein foi um produto do acaso, resultado de uma disputa entre espermatozoides resolvida por milésimos de segundo. Assim como aconteceu, poderia não ter acontecido.
        Recuando no tempo, a própria humanidade, analisada do ponto de vista científico, é fruto do acaso. Por um acidente, um peixe pré-histórico desenvolveu barbatanas que, à imitação de pernas ou patas, lhe permitiram enfrentar a gravidade da Terra e, assim, por acaso, viabilizou o desenvolvimento de vertebrados fora da água. Bilhões de anos depois, cá estamos nós, bípedes, inteligentes, comendo sorvete de morango, descobrindo a estrela mais antiga e nos deliciando com Elizabeth Taylor deslumbrante como Cleópatra. Tudo por acaso. A preponderância do aleatório sobre o determinado pode dar a sensação de desesperança, de que somos impotentes diante de todas as coisas. Talvez nisso residam a beleza e a complexidade da vida, mas o fato é que o cérebro está mais interessado em ordem do que em belezas complexas. Por isso, quando não vê significado nas coisas naturais, ele salta para o sobrenatural. "Nascemos com o cérebro desenhado para encontrar sentido no mundo", diz o psicólogo Bruce Hood, da Universidade de Bristol, na Inglaterra, autor de Supersense: Why We Believe in the Unbelievable (Supersentido: Por que Acreditamos no Inacreditável). "Esse desenho às vezes nos leva a acreditar em coisas que vão além de qualquer explicação natural."
        O achado de Hood foi descobrir que as crenças talvez não sejam fruto nem da religião nem da cultura, mas uma expressão de como o cérebro humano trabalha. É o que ele chama de "supersentido". É o supersentido que nos leva a bater na madeira, dar valor afetivo a um objeto ou conversar com Deus. A religião seria uma criação mental através da qual o cérebro atende a sua necessidade por sentido. O apocalipse, nesse caso, é uma saída brilhantemente engenhosa. Explica duas questões que atormentam a humanidade desde sempre: o significado da vida e a inevitabilidade da morte. Somos a única espécie com consciência da própria morte e, no entanto, não sabemos o significado da vida. Afinal, por que estamos aqui? A pergunta, em si, revela nossa busca por sentido, devido à nossa dificuldade de conviver com a possibilidade de que, talvez, não estejamos aqui por alguma razão especial. O apocalipse é uma resposta.
        (...)
         Subsidiariamente, o apocalipse atende a outra necessidade humana, a de acreditar num mundo regido por uma ordem moral. Os historiadores atribuem o surgimento da visão apocalíptica ao persa Zoroastro, ou Zaratustra, que viveu uns 1 000, talvez 1 500 anos antes de Cristo. Ele foi o primeiro a falar de uma batalha cósmica entre o bem e o mal, mais tarde aproveitada pelos profetas Ezequiel, Daniel e, principalmente, João. "Num mundo em que, com frequência, os bons sofrem e os maus prosperam, a promessa de um julgamento moral é um consolo profundo", diz Michael Barkun, professor de ciência política da Universidade de Syracuse, que estuda a relação entre violência e religião. Eis por que o fim do mundo aterroriza mas também pode nos consolar


        Revista Veja, 4 nov. 2009.

        Manual de Civilidade

        Manual utilíssimo, publicado pela revista Veja de 4 de novembro.
        Para ler e reler.

        1. Questão de honra

        Houve um tempo em que tudo girava em torno dela: ter honra era ser um legítimo membro da tribo; não ter, preferível morrer. O conceito de honra, na sua interpretação mais tradicional, nasceu na Grécia antiga, foi remodelado em Roma e reemergiu na Idade Média. "Na época feudal, a honra era uma qualidade atribuída aos nobres, essencialmente guerreiros, cuja função social era proteger o rei, as crianças e as mulheres", diz Roberto Romano, professor de ética e filosofia da Unicamp. Hoje, a HONRADEZ pode ser mais relacionada à fidelidade aos próprios princípios ou ao próprio eu. Ou, no popular, ter vergonha na cara. É por isso que o tribunal da própria consciência continua a pesar mesmo quando se alega que "todo mundo faz", a começar dos "caras lá de cima", então "que mal tem" em levar a avozinha para passar na frente na fila de comprar ingresso, desrespeitar a precedência na hora de pegar uma vaga no estacionamento do shopping ou deixar uma toalha guardando lugar o dia inteirinho na espreguiçadeira da piscina disputada? O mal, evidentemente, está em desprezar a própria dignidade.

        2. Os intransigíveis

        O conceito de INTEGRIDADE tem raízes na Grécia antiga, onde o sujeito íntegro era chamado aplos, uma peça só - projetando com esse nome a imagem de inteireza, de alguém que não tem duas palavras, duas lealdades. "Não é íntegro aquele que transige em valores inegáveis de uma sociedade", diz Bolívar Lamounier. Integridade é não abusar do poder, não desmerecer os outros, não tripudiar. E também outras interdições mais prosaicas: não se esgueirar melifluamente na fila de embarque, não "deixar o carro aqui só um minutinho", não dizer que vai atender "só esta chamada" no meio da refeição compartilhada e não começar nenhuma piada dizendo "esta é politicamente incorreta" caso você não trabalhe no Casseta & Planeta.

        3. Obrigado, por favor

        Um dos maiores especialistas do mundo no estudo da civilidade, Piero Massimo Forni acredita que as BOAS MANEIRAS não apenas não são coisa de um passado mítico de galanteria, mas ficaram mais importantes ainda na vida contemporânea. "Até umas três gerações atrás, boa parte da sustentação emocional e material das pessoas vinha dos familiares. Hoje convivemos muito mais com amigos e desconhecidos, e, nesse caso, ser afável é uma vantagem", explica. "A cortesia melhora a autoestima da pessoa a quem ela foi dirigida e, dessa maneira, torna as relações sociais menos tensas", concorda Renato Janine Ribeiro, professor de ética e filosofia política da USP. A regra geral, e não escrita, de decência estabelece que todos devem ser tratados com os requisitos básicos de cortesia - "bom dia", "por favor", "obrigado" e "até logo" -, os quais devem ser redobrados em relação a quem ocupa posições menos destacadas. Ignorar a existência de quem presta serviços como trazer o seu carro ou limpar a sua sala é prova de insensibilidade. Ou boçalidade.

        4. Desafio diário

        Na hora da raiva, das bravas, qual é o primeiro xingamento que lhe vem à cabeça? Em geral, nesses momentos o ser humano não é criativo e invoca diferenças de comportamento sexual, de origem familiar ou de grupo étnico. Pois o treinamento da aceitação das diferenças deve começar exatamente por aí. De todas as virtudes do campo da civilidade, a TOLERÂNCIA é a que mais exige autoaprendizagem. Quem acha que nunca, jamais conseguirá cumprimentar um torcedor do time adversário pode começar com coisas mais simples, como não ter espasmos visíveis diante do abuso do gerúndio ou prometer a si mesmo ao sair de casa que pelo menos naquele dia não vai comparar nenhuma mulher à fêmea de uma famosa ave natalina. "Tolerância tem a ver com comportamentos diferentes daqueles que valorizamos e pelos quais temos repugnância. Exercê-la é importante não só para a convivência social como para a sanidade mental", diz Bolívar Lamounier.

        5. Bateu, não levou

        Levar uma fechada, ouvir uma buzinada milésimos de segundo depois que o sinal abre, esperar que o manobrista pegue o carro largado na sua frente com a maior displicência. O stress e o anonimato propiciados pelo trânsito nas grandes cidades se combinam para testar o tempo todo os limites do AUTOCONTROLE. Para não se transformar num ser desatinado em busca de vingança, só existe uma reação possível: olhar tudo aquilo de um ponto de vista distanciado - ou, se preferir, superior. "Podemos aliviar a raiva tomando distância do que está acontecendo. Alguém me xinga, por exemplo, e eu reajo como se a ofensa fosse um pacote que recebo e devolvo fechado, porque não me considero o destinatário. O ato de grosseria está relacionado com o estado mental do agressor, não com o do agredido", ensina Piero Forni. Quem acha que tem temperamento forte, sangue quente ou pavio curto, e usa essas expressões para justificar comportamentos agressivos, deve considerar a hipótese oposta. "A pessoa que não controla a agressividade no fundo tem ego fraco", explica a psicóloga Lidia Aratangy.

        6. Respeito é bom

        O termo CIVILIDADE vem da palavra civitas, que quer dizer cidade. Tem civilidade, portanto, aquele que sabe viver em sociedade, um sistema refinado ao longo dos tempos. No século XVI, por exemplo, o filósofo holandês Erasmo escreveu uma espécie de manual de comportamento. "Ele explicava que não devemos cuspir à mesa nem na mesa, nem beber a sopa direto da sopeira, nem colocar as botas em cima da mesa. Soaria estranho fazer isso hoje, mas houve um tempo em que os nobres precisaram ser educados para melhorar seus modos", diz Renato Janine Ribeiro. Na construção da sociedade ocidental, o mesmo conceito que abrange algo aparentemente acessório, como os bons modos à mesa, inclui o complexo mecanismo do respeito entre as pessoas, base das relações civilizadas. "Hoje, o que entendemos como a ideia central da civilidade é justamente o respeito pelos outros. Os bons modos mostram a nosso próximo que temos estima por ele", diz Ribeiro. Roberto Romano propõe uma pergunta simples para aplicar o conceito de civilidade em diferentes situações da vida cotidiana: o que posso fazer pelo outro para que a vida de todos seja suportável?

        7. Fora, trapaceiros

        Todo mundo quer se dar bem, mas, se fizer qualquer coisa para conseguir isso, o mundo todo vai acabar mal. Não é preciso nem voltar ao estado natural, ou hobbesiano, da guerra de todos contra todos para entender a necessidade de um conjunto de regras comumente aceitas e, dentre elas, a importância da HONESTIDADE. Seja pagar pelo gabarito da prova do Enem, seja levar comissão em obras públicas, quem faz trapaça está roubando um pouco de cada um, não só em termos materiais, mas principalmente pela infração ao pacto social através do qual contemos nossos instintos mais selvagens em troca das garantias da civilização. "Na sociedade ocidental cristã, a figura do trapaceiro é uma das mais odiadas. A trapaça fere várias convenções sociais, entre elas a obediência às regras e a honradez", diz Roberto Romano.

        8. Dobre a língua

        A cultura da permissividade tem enormes vantagens - a começar, naturalmente, pelo abrandamento dos costumes repressivos. A contrapartida também é evidente: a ideia disseminada de que cada um pode, e até deve, fazer e falar o que quiser, mesmo que isso invada o espaço alheio, incluindo os ouvidos. Não dizer o que dá na bola é diferente de contar mentiras. No primeiro caso, quem usa da CONTENÇÃO VERBAL está obedecendo ao mecanismo de freios sociais pelo qual as opiniões próprias são atenuadas de forma a não ofender os sentimentos alheios. No segundo, a verdade é falsificada para tirar algum proveito, nem que seja promover a própria e engrandecida imagem. Quem acha que tem de "pôr para fora" tudo o que pensa e até invoca o pensamento mágico ("Assim não vou ter infarto") na verdade não está no comando de si mesmo. "Viver em sociedade implica abrir mão de certas selvagerias para obter a proteção social que vem da vida em conjunto", diz Roberto Romano. "Nesse contexto, a má-educação, a ganância desmedida, a negligência ao outro, são todos fatores de desagregação social."

        9. Sinto muito, mesmo

        Pressa, pressão, prazos - tudo na vida contemporânea conspira para que o tratamento civilizado seja atropelado mais cedo ou mais tarde. Para isso existe um remédio universal: PEDIR DESCULPAS. O arrependimento sincero, aquele cuja intenção seja menos aliviar a consciência do ofensor e mais dar uma satisfação moral a quem foi ofendido, é um lenitivo de eficácia comprovada através dos tempos. Só os seres altamente evoluídos se desculpam com classe e naturalidade, mas os demais - ou seja, todos nós - também podem desfrutar o sentimento de paz interior que essa atitude desencadeia. É só treinar direitinho. Quanto ao momento e ao método corretos para pedir desculpas, gente com os mecanismos psíquicos em estado de bom funcionamento tem um "vergonhômetro" infalível. "É aquele sangue que sobe ao rosto quando fazemos algo errado, e que sinaliza o respeito pelo outro", diz Roberto Romano. "Sem isso, o pedido de desculpas não vale."

        10. A casa comum

        O comportamento decoroso surgiu na Igreja Católica, a partir da vestimenta dos padres e das freiras, sempre igual em qualquer ambiente e feita para cobrir tudo de forma a não atentar contra o pudor próprio ou alheio. "Com o tempo, o DECORO das vestimentas passou para a linguagem e as atitudes. A fala decorosa é aquela que diz o que tem de dizer sem adular ou ferir. O comportamento decoroso é aquele que não ofende os outros, que não agride, que não é exibicionista ou apelativo", explica Roberto Romano. Pequenos atentados cotidianos ao decoro incluem urrar ao celular em ambientes confinados, ignorar solenemente aquilo que seu cãozinho faz na calçada e ouvir música nas alturas porque "a casa é minha". Ter decoro é entender que a casa é um pouco de todos.

        quinta-feira, 15 de outubro de 2009

        Ao desconcerto do mundo


        MACANUDO. Folha de S. Paulo, 15 out. 2009.

        Ótimo pedido: "um cd do Sinatra"...
        Mas melhor seria pedir ao Papai Noel um cd do Sinatra para consertar/concertar o mundo!
        Sim, porque eu acredito que, ao ouvirmos um cd do Sinatra, o mundo fica melhor.

        terça-feira, 13 de outubro de 2009

        Ao mestre, com desprezo

        RUY CASTRO

        Em março, um professor de história, filho de um amigo meu, foi desacatado em sala por três alunos num colégio em Moema, zona sul de São Paulo. O mestre deu queixa na diretoria. Esta apoiou os desordeiros. O professor pediu demissão e foi para casa, onde teve uma crise nervosa. Passa agora por uma síndrome do pânico. A orientadora da escola, única pessoa a apoiá-lo, foi demitida.
        Este é um colégio de classe média, em que os alunos se sentem com privilégios pelo fato de pagar altas mensalidades. Mas, nas escolas públicas, a realidade é ainda pior. Mais de cem casos de alunos que desrespeitam professores são relatados diariamente à Secretaria Estadual da Educação de São Paulo por um sistema de registro de ocorrências do gênero. A maioria dos casos vem da região metropolitana de São Paulo.
        São alunos que desprezam a liturgia da escola, saem da sala sem autorização do professor e o ofendem verbalmente quando ele ousa protestar contra a zorra. Usam toda espécie de aparelho eletrônico durante a aula, de celular a iPod, e, certos da impunidade, destroem equipamentos ou instalações da escola na frente dos colegas e funcionários. Uma das principais diversões é pôr fogo nas lixeiras.
        É o terror. As escolas cogitam instalar câmeras em suas dependências, para ter provas documentais contra os vândalos e padronizar as informações, o que permitirá estabelecer estratégias de combate à violência. Mas nada impede que os cafajestes - difícil chamá-los de alunos- roubem também as câmeras e riam das estratégias.
        Os jovens valentões que agrediram o professor em Moema (aliás, com o apoio da classe) foram expulsos do colégio meses depois. Mas não por indisciplina. Deixaram-se apanhar traficando drogas dentro das instalações.
        Folha de S. Paulo, São Paulo, 13 out. 2009, p. A2.

        O Bote Salva-Vidas

        Organizando meus velhos arquivos, me deparei com a transcrição de um capítulo do ótimo O porco filósofo. Devo tê-lo usado em uma das minhas aulas de argumentação. Recomendo a leitura!


        "— Certo – disse Roger, autonomeado capitão do bote salva-vidas – Há doze de nós neste barco, o que é ótimo, porque a capacidade dele é de até vinte pessoas. E temos bastantes provisões para durar até que alguém chegue para nos resgatar, o que não vai demorar mais que 24 horas. Então, eu acho que isso significa que podemos nos permitir com segurança um biscoito de chocolate extra e uma dose de rum para cada um. Alguma objeção?
        — Por mais que eu, sem dúvida, desfrutasse do biscoito extra – disse o Sr. Mates –, nossa prioridade agora não deveria ser levar o barco até ali e pegar a pobre mulher que está se afogando e há meia hora está gritando para nós?
        Algumas pessoas baixaram os olhos para o fundo do barco, envergonhadas, enquanto outras sacudiam a cabeça sem acreditar.
        — Achei que tínhamos concordado – disse Roger – Ela não está se afogando por nossa culpa, e, se a pegarmos, não podemos desfrutar de nossas rações extras. Porque deveríamos perturbar esse esquema aconchegante e confortável que temos aqui? – Grunhidos de aprovação foram ouvidos.
        — Por que nós podemos salvá-la e, se não salvarmos, ela vai morrer. Isso não é razão suficiente?
        — A vida é mesmo uma merda – respondeu Roger – Se ela morrer, não vai ser porque nós a matamos. Alguém aceita um digestivo?
        ***
        É muito fácil traduzir a metáfora do bote salva-vidas. O barco é o Ocidente abastado, e a mulher que está afogando, as pessoas que estão morrendo de desnutrição e doenças evitáveis no mundo em desenvolvimento. E a atitude do mundo desenvolvido é, sob esse ponto de vista, tão insensível quanto a de Roger. Temos comida e remédios o bastante para todos, mas preferimos desfrutar do luxo e deixar os outros morrer do que desistir de nosso “biscoito extra” e salvá-los. Se as pessoas no bote salva-vidas são grosseiramente imorais, então também somos.
        A imoralidade é ainda mais impressionante em outra versão da analogia, na qual o bote salva-vidas representa a totalidade do planeta Terra e algumas pessoas se recusam a distribuir comida aos outros que já estão a bordo. Se para eles parece cruel não fazer um esforço para botar outra pessoa no barco, parece ainda mais cruel negar provisões àqueles que já foram tirados da água.
        A imagem é forte e a mensagem, chocante. Mas a analogia resiste? Alguns podem dizer que a situação do bote salva-vidas despreza a importância dos direitos de propriedade. Os bens são postos em um bote salva-vidas para aqueles que precisarem dele, e ninguém tem mais direitos a eles que outra pessoa. Então partidos do pressuposto de que qualquer coisa além da distribuição igualitária de acordo com as necessidades é injusta até que se prove o contrário.
        Entretanto, no mundo real, a comida e outros produtos não estão simplesmente ali parados à espera de serem distribuídos. A riqueza é criada e tem de ser ganha. Então se eu me recusar a dar meu excedente a outra pessoa, não estou me apropriando indevidamente do seu quinhão, estou apenas guardando o que é meu por direito.
        Mas se a analogia for alterada para refletir esse fato, a imoralidade aparente não desaparece. Vamos imaginar que todos os alimentos e provisões do barco pertencessem aos indivíduos dentro dele. Ainda assim, uma vez no barco, e uma vez reconhecida a necessidade da mulher que está se afogando, não continuaria a ser errado dizer 'Deixe-a se afogar. Os biscoitos são meus!'? Enquanto houver excedente para abastecê-la, também, o fato de ela estar morrendo nos devia fazer abrir mão por ela da propriedade privada de nossas provisões.
        As Nações Unidas estabeleceram uma meta para os países desenvolvidos darem 0,7% de seu PIB para ajuda externa. Poucos cumpriram isso. Para a maioria das pessoas, dar mesmo 1% de sua renda para ajudar os pobres teria um efeito desprezível em sua qualidade de vida. A analogia do bote salva-vidas sugere que não seríamos pessoas boas se o fizéssemos, mas que estamos terrivelmente errados em não fazê-lo."

        (BAGGINI, Julian. O porco filósofo. Rio de Janeiro: Relume Dumará, p. 71-73.)

        segunda-feira, 12 de outubro de 2009

        O silêncio é uma virtude


        Bardolatria

         Shakespeare é mestre em monólogos e solilóquios. Muitos deles são famosíssimos, como o solilóquio de Hamlet ("to be or not to be"...). Ou, então, aquele de Macbeth que já havia postado aqui no blog. Hoje, peguei-me recordando um dos meus favoritos.  Trata-se do monólogo de Otelo quando este tenta convencer o doge de Veneza de que não havia seduzido Desdêmona por meio de feitiçaria (o que era alegado pelo pai dela, inconformado com a união dos dois).
        Me lembro de ter feito um curso, na USP, intitulado "O teatro de Shakespeare" e ministrado por um professor legitimamente inglês: John Milton. Ele próprio uma figura que parecia ter saído de uma das comédias do bardo. Barba por fazer. Cabelo desgrenhado. Uma barriga em constante batalha com os botões da camisa. E o sotaque característico, é claro. Uma espécie de Falstaff climatizado aos trópicos (digitem "Falstaff" no Google Imagem e verão que ele é a cara do John Milton!).
        De qualquer forma, seu trabalho de conclusão de curso consistia em encenar um fragmento de Shakespeare a gosto do aluno. E lá fui eu com este monólogo de Otelo (em português, é claro!):

        OTHELLO
        Her father loved me; oft invited me;
        Still question'd me the story of my life,
        From year to year, the battles, sieges, fortunes,
        That I have passed.
        I ran it through, even from my boyish days,
        To the very moment that he bade me tell it;
        Wherein I spake of most disastrous chances,
        Of moving accidents by flood and field
        Of hair-breadth scapes i' the imminent deadly breach,
        Of being taken by the insolent foe
        And sold to slavery, of my redemption thence
        And portance in my travels' history:
        Wherein of antres vast and deserts idle,
        Rough quarries, rocks and hills whose heads touch heaven
        It was my hint to speak, — such was the process;
        And of the Cannibals that each other eat,
        The Anthropophagi and men whose heads
        Do grow beneath their shoulders. This to hear
        Would Desdemona seriously incline:
        But still the house-affairs would draw her thence:
        Which ever as she could with haste dispatch,
        She'ld come again, and with a greedy ear
        Devour up my discourse: which I observing,
        Took once a pliant hour, and found good means
        To draw from her a prayer of earnest heart
        That I would all my pilgrimage dilate,
        Whereof by parcels she had something heard,
        But not intentively: I did consent,
        And often did beguile her of her tears,
        When I did speak of some distressful stroke
        That my youth suffer'd. My story being done,
        She gave me for my pains a world of sighs:
        She swore, in faith, twas strange, 'twas passing strange,
        Twas pitiful, 'twas wondrous pitiful:
        She wish'd she had not heard it, yet she wish'd
        That heaven had made her such a man: she thank'd me,
        And bade me, if I had a friend that loved her,
        I should but teach him how to tell my story.
        And that would woo her. Upon this hint I spake:
        She loved me for the dangers I had pass'd,
        And I loved her that she did pity them.
        This only is the witchcraft I have used...

        quinta-feira, 10 de setembro de 2009

        Que mané Acordo!

        " [a] imprensa, (...) ainda insiste em falar das 'mudanças na língua', quando se refere à reforma (sim, reforma, e não acordo - que diabo de acordo é esse, ao qual só o Brasil aderiu?)."
        Pasquale Cipro Neto

        Difícil

        CONTARDO CALLIGARIS


        Casamentos possíveis



        UMA DAS boas razões para se casar é a seguinte: uma vez casados, podemos culpar o casal por boa parte de nossas covardias e impotências.
        O marido, por exemplo, pode responsabilizar mulher, filhos e casamento por ele ter desistido de ser o aventureiro que ainda dorme, inquieto, em seu peito. A decepção consigo mesmo é menos amarga quando é transformada em acusação: "Você está me impedindo de alcançar o que eu não tenho a coragem de querer".
        Essas recriminações, que disfarçam nossos fracassos, não são unicamente masculinas.
        Certo, os homens são quase sempre assombrados por impossíveis devaneios de grandeza -como se algum destino extraordinário e inalcançável já tivesse sido sonhado para eles (e foi mesmo, geralmente pelas suas mães). Diante de tamanha expectativa, é cômodo alegar que o casal foi o impedimento.
        As mulheres, inversamente, seriam mais pé-no-chão, capazes de achar graça nas serventias do cotidiano. Por isso mesmo, aliás, elas encarnariam facilmente, para os homens, os limites que a realidade impõe aos sonhos que eles não têm a ousadia de realizar.
        Agora, as mulheres também sonham. Há a dona de casa que acusa o marido, os filhos e o casamento por ela ter desistido de outra vida (eventualmente, profissional), que teria sido fonte de maiores alegrias. E há, sobre tudo, para muitas mulheres, um sonho romântico de amor avassalador e irresistível, do qual, justamente, elas desistem por causa de marido, filhos e casamento.
        Com isso, d. Quixote se queixa de que sua mulher esconde seus livros de cavalaria e o impede de sair à cata de moinhos de vento. E Madame Bovary se queixa de que seu marido esconde seus livros de amor e a impede de sair pelos bailes, à cata de paixões sublimes e elegantes.
        Pena que raramente eles consigam ter os mesmos sonhos. Um problema é que os sonhos dos homens podem ser de conquista, mas dificilmente de amor, pois eles derivam diretamente das esperanças que as mães depositam em seus filhos, e, claro, uma mãe pode esperar que seu rebento varão seja um dom-juan, mas raramente esperará ser substituída por outra mulher no coração do filho.
        Não pense que esse fogo cruzado de acusações seja causa recorrente de divórcio. Ao contrário, ele faz a força do casamento, pois, atrás da acusação ("É por sua causa que deixei de realizar meus sonhos"), ouve-se: "Ainda bem que você está aqui, do meu lado, fornecendo-me assim uma desculpa -sem você, eu teria de encarar a verdade, e a verdade é que eu mesmo não paro de trair meus próprios sonhos".
        Ou seja, em geral, a gente casa com a pessoa "certa": a que podemos culpar por nossos fracassos. E essa, repito, não é uma razão para separar-se. Ao contrário, seria uma boa razão para ficar juntos.
        Quando a coisa aperta, não é porque sonhos e devaneios teriam sido frustrados "por causa do outro", mas pelas "cobranças", que, elas sim, podem se revelar insuportáveis.
        Um exemplo masculino. Uma mulher me permite acreditar que é por causa dela que eu não consigo ser o que quero: graças a Deus, não posso mais tentar minha sorte no garimpo agora que tenho esposa, filhos e tal. Até aqui, tudo bem. Como compensação pelos sonhos dos quais eu desisti, passo as tardes de domingo afogando num sofá e soltando foguetes quando meu time marca um gol, mas eis que, no meio do jogo, minha mulher me pede para brincar com as crianças ou para ir até à padaria e comprar o necessário para o café - logo a mim, que deveria estar explorando as fontes do Nilo ou negociando a paz entre os senhores da guerra da Somália.
        Essa cobrança, aparentemente chata, poderia salvar-me da morosa constatação do fracasso de meus sonhos e das ninharias com as quais me consolo. Talvez, aliás, ela me ajudasse a encontrar prazer e satisfação na vida concreta, nos afetos cotidianos. Mas não é o que acontece: o que ouço é mais uma voz que confirma minha insuficiência.
        À cobrança dos sonhos dos quais desisti acrescenta-se a cobrança de quem foi (ou é) "causa" de minha desistência e razão de meu "sacrifício": "Olhe só, mesmo assim, ela não está satisfeita comigo." Em suma, não presto, nunca, para mulher alguma -nem para a mãe que queria que eu fosse herói nem para a esposa para quem renunciei a ser herói. E a corda arrebenta.
        O ideal seria aceitar que nosso par nos acuse de seus fracassos e, além disso, não lhe pedir nada. Difícil.
         
        Folha de S. Paulo, 10/9/09

        A impunidade da ignorância

        CLÓVIS ROSSI


        Pelo choque que me causou, repasso ao leitor o essencial de artigo do escritor espanhol Rafael Argullol para "El País".
        Começa relatando que alguns dos melhores professores universitários espanhóis estão se aposentando "precipitadamente". Cita dois motivos: "o desinteresse intelectual dos estudantes e a progressiva asfixia burocrática da vida universitária".
        Explico o sentimento de choque: não sei se a situação ocorre também no Brasil, mas sei que o caldo de cultura descrito por Argullol é parecido no Brasil (como, aliás, no resto do mundo).
        Os professores, escreve Argullol, "se sentem mais ofendidos pelo desinteresse [dos estudantes] do que pela ignorância". Acrescenta que um amigo lhe disse que "os estudantes universitários eram o grupo com menos interesse cultural da nossa sociedade, e isso explicava que não lessem a imprensa escrita, a não ser que fosse de graça, que não buscassem livros fora das bibliografias obrigatórias, ou que não assistissem a conferências se não fossem premiados com créditos úteis para serem aprovados".
        É o triunfo do que o escritor chama de "utilitarismo". Os estudantes são adestrados na "impunidade ante a ignorância", porque o conhecimento é um "caminho longo e complexo" e perde para o imediatismo da posse instantânea.
        Não tenho informações para afirmar se essa situação ocorre também no Brasil. É evidente, em todo o caso, que há ou houve recentemente uma discussão sobre a asfixia burocrática.
        Gilberto Dimenstein já comentou, tempos atrás, o fato de que professores de universidades públicas estavam se aposentando cedo e passando ao ensino privado.
        O utilitarismo e o predomínio do individual são características contemporâneas globais. Estamos nós também cevando "a impunidade ante a ignorância"? 
        Folha de S. Paulo, 8/9/09

        quarta-feira, 26 de agosto de 2009

        Auto-estima

        eu não preciso
        que você goste
        de mim

        auto-estima
        é isso?

        Nicolas Behr

        We're bachelors, baby!

        segunda-feira, 24 de agosto de 2009

        Hedonismo

        Sim, sim, eu sei, cigarro faz mal e sexo pode ser perigoso. Mas uma estranha e perturbadora epidemia parece ter tomado conta do país ultimamente na forma de uma absurda premissa: “se você evitar tudo que é agradável, terá uma vida longa e feliz.” Mas será possível mesmo encontrar a felicidade numa corrida vertiginosa, num ambiente onde é proibido fumar, de Palm Pilot na mão, atrás do ideal capitalista? Semanas de sessenta horas de trabalho, volumosas carteiras de ações e uma agenda abarrotada de compromissos são realmente a chave para se viver bem? Eu acho que não.
        Nestes últimos anos, o mundo ocidental virou um pastiche caleidoscópico de luzes intensas, manipulações pela mídia, fofocas globais e desesperada competição. As pessoas passam o dia inteiro com os olhos pregados na tela dos computadores, almoçam nas suas mesas de trabalho, planejam suas programações diárias em aparelhinhos portáteis e marcam “dias de folga” para brincar com os filhos. Obcecados com a idéia de ficarmos mais ricos, mais magros, mais bem-sucedidos e, por incrível que pareça, mais jovens, milhões de nós nos privamos todos os dias daquilo que, iludidos, acreditamos estar correndo atrás – viver bem. Depois de um longo dia de trabalho, queremos chegar logo em casa e assistir pela televisão àquilo que é curiosamente conhecido como reality shows, só para voltar ao escritório no dia seguinte e discutir as surpreendentes reviravoltas das realidades pré-fabricadas de estranhos, ficando as nossas próprias vidas reduzidas a um segundo plano. Esse ritmo febril é às vezes compensado com exercícios físicos cronometrados, dietas sem carboidratos, um espesso copo de suco de clorofila e duas semanas de “férias” cuidadosamente planejadas on-line. Felicidade, percebe?
        Somadas a esse encantador coquetel de confusões, encontram-se leis cada vez mais caprichosas que fazem os fumantes se agruparem nas calçadas, as lanchonetes revelarem a chocante novidade de que a comida que estão servido pode deixar você mais gordo, os e-mails serem monitorados, os bancos das praças terem divisórias para que ninguém se deite neles e criando várias restrições à linguagem e ao estilo de vida em geral. Dá a impressão de que nós – as massas – nos tornamos pouco mais do que patinhos gordos que precisam ser pastoreados ao longo da vida para não nos desviarmos para o perigoso terreno da responsabilidade pessoal e do livre-arbítrio.
        Num determinado momento, “viver bem” torna-se um objetivo imaginado num ponto muito distante a que se chega apenas com um esforço psicótico e uma obstinada determinação. Como hamsters cafeinados numa roda, começamos a correr, a suar, aceitar sacrifícios e entrar em pânico. Pode-se perder peso, mas a insatisfação pessoal permanece. A promoção pode ser conquistada, mas as despesas continuam crescendo. Em apesar e todo o nosso sucesso aparente, no íntimo o sentimento de inadequação e o desaprovador sarcasmo dos vizinhos parecem ampliados. Alguma coisa estaria errada neste plano mestre? Existe alguma coisa, alguma chave perdida para o reino da felicidade que está sendo esquecida? Pode apostar que sim.
        FLOCKER, Michael. Manual do hedonista: dominando a esquecida arte do prazer. Rio de Janeiro: Rocco, 2004. p. 13-15.

        Um adivinho me disse

        Era um vez um feirão de livros que ocorreu em um supermercado na cidade de Alfenas. Acontecimento mais surrealista impossível. Dada a cidade. E dado o supermercado, local tão pouco afeito à elucubrações lítero-culturais.
        Afinal, quem poderia imaginar que encontraria uma delícia como "Um adivinho me disse", de Tiziano Terzani, num lugar onde normalmente me preocupo apenas com embutidos, sabonetes e sacos de lixo de 15 litros?
        Nosso primeiro encontro [entre mim e o livro] não foi dos mais auspiciosos. Lendo a orelha, parecia mais um desses augustoscurys da vida.
        Não comprei.
        Surpreendentemente, no dia subseqüente àquele pequeno flerte, havia dois (repito: dois!) exemplares em cima da mesa de jantar da casa de meus pais. Ambos [meus pais] haviam, indvertidamente, comprado o mesmo título no mesmo feirão mercadológico.
        Certamente, Terzani interpretaria tal coincidência como um aceno do destino.
        Ainda bem!
        Terzani era um jornalista italiano [faleceu em 2004] apaixonado pelo Oriente. Nos anos 70, em Hong Kong, um adivinho havia predito que o autor correria um risco de acidente aéreo em 1993. Esse foi um belo pretexto para ele - conforme o malfadado ano se aproximava - decidir percorrer o Oriente utilizando qualquer meio de transporte que não fosse o avião.
        E é um prazer acompanhá-lo pela Tailândia, pelo Camboja, pela Birmânia, pela Malásia e tantos outros lugares ainda então transbordantes de misticismo, de velhas lendas, antigos mitos, crenças ancestrais. Um universo que, apesar do canto da sereia do mundo ocidental e do afã nivelador do progresso, ainda teima em existir.


        Raramente a humanidade esteve, como nesses tempos, privada de figuras essenciais, de personagens-luz. Onde está um filósofo, um grande pintor, um grande escritor, um grande escultor? Os poucos que vêm à mente são sobretudo fenômenos da publicidade e de marketing.
        A política, mais que qualquer outro setor da sociedade, em especial a ocidental, está na mão de medíocres. A causa é precisamente a democracia, que virou uma aberração da idéia original quando se tratava de votar para ir ou não à guerra contra Esparta e, depois..., de ir de verdade, de ir pessoalmente, talvez para morrer. Hoje, democracia significa, no máximo, ir a cada quatro ou cinco anos colocar uma cruz sobre um pedaço de papel e eleger alguém que, porque deve satisfazer a tantos, tem necessariamente de ficar em cima do muro, medíocre e banal como são sempre todas as maiorias. Se por acaso aparecesse uma pessoa excepcional, alguém com idéias fora do comum, com algum projeto que não fosse sossegar todos prometendo felicidade, não seria jamais eleito. Muitos nunca lhe dariam um voto.
        E o que dizer da arte, àquele atalho à percepção de grandeza? Ela tampouco tem ajudado as pessoas a entender a essência das coisas. A música parece feita para chegar aos ouvidos e não à alma; a pintura é com freqüência uma ofensa aos olhos; a literatura também é sempre mais dominada pelas leis do "mercado". E quem ainda lê poesia? Seu valor de exaltação foi esquecido! Mesmo assim uma poesia pode acender no peito um calor forte como o amor. Uma poesia, mais que todos os uísques, mais que o Valium e o Prozac, pode "levantar o astral", aliviar a alma, porque eleva o ponto de vista para o qual olhamos para o mundo. Quando a gente se sente só, seria melhor encontrar companhia no ler belos versos do que ligar a televisão!
        Angela diz que, se tivesse de eliminar uma das invenções deste século, antes da bomba atômica eliminaria a televisão. Pensando bem, ela tem razão. A televisão reduz nossa capacidade de concentração, embota as nossas paixões, nos impede de refletir, impondo-se como o mais importante - quase único - veículo de consciência. Ocorre que nenhuma verdade é mais falsa que a da televisão. Ela transforma casa acontecimento, cada emoção em um espetáculo, como resultado de que ninguém consegue mais se comover ou se indignar com nada. Por meio da televisão depositamos milhares de informações, mas nos tornamos moralmente ignorantes. A televisão distrai, faz passar o tempo! Mas é isso que realmente queremos?
        Quanto mais olhamos à nossa volta, mais nos damos conta de que o nosso modo de viver se torna sempre mais insensato. Todos correm, mas para onde? Por quê? Muitos sentem que esse correr não corresponde a nós e que nos faz perder tantos velhos prazeres. Mas quem tem coragem de dizer: "Parem! Mudemos a rota"? Se estivéssemos perdidos em uma floresta ou em um deserto, nos obrigaríamos a procurar uma saída! Por que não fazer o mesmo com esse bendito progresso que alonga a nossa vida, nos torna mais ricos, mais sadios, mais belos, mas no fundo nos dá sempre menos felicidade?
        Não é de estranhar que a depressão tenha virado um mal tão comum. É quase encorajador. É um sinal de que dentro das pessoas resta um desejo de humanidade.

        TERZANI, Tiziano. Um adivinho me disse. Rio de Janeiro: Globo, 2005, p. 269-270.

        Lendo "O herói de mil faces"

        Confesso que me interessei por Joseph Campbell ao descobrir ter sido ele o grande inspirador para a criação da trilogia cinematográfica "Guerra nas estrelas", do George Lucas.
        Mas me viciei mesmo ao ler "O poder do mito": uma daquelas obras que dão um nó na cabecinha da gente.
        Certos livros têm o efeito psicotrópico de algumas drogas. Depois de lê-los, as portas fechadas de uma realidade, outrora desconhecida, se abrem. E passamos a ver o mundo com outros olhos.
        O poder do mito foi um deles. "As máscaras de Deus: mitologia primitiva", foi outro.

        Agora tô lendo "O herói de mil faces".
        Não é tão bom quanto os anteriores, mas, mesmo assim, é possível aprender muito sobre o ser humano através das narrativas arquetípicas da humanidade, repletas de uma sabedoria ancentral, apresentadas por esse mitólogo fantástico.

        Estudar essas histórias é aprender a viver.

        A mulher representa, na linguagem pictórica da mitologia, a totalidade do que pode ser conhecido. O herói é aquele que aprende. À medida que ele progride, na lenta iniciação que é a vida, a forma da deusa passa, aos seus olhos, por uma série de transfigurações: ela jamais pode ser maior que ele, embora sempre seja capaz de prometer mais do que ele já é capaz de compreender. Ela o atrai e guia e lhe pede que rompa os grilhões que o prendem. E se ele puder alcançar-lhe a importância, os dois, o sujeito do conhecimento e o seu objeto, serão libertados de todas as limitações. A mulher é o guia para o sublime auge da aventura sensual. Vista por olhos inferiores, é reduzida a condições inferiores; pelo olho mau da ignorância, é condenada à banalidade e à feiúra. Mas é redimida pelos olhos da compreensão. O herói que puder considerá-la tal como ela é, sem comoção indevida, mas com a gentileza e a segurança que ela requer, traz em si o potencial do rei, do deus encarnado, do seu mundo criado.
        Conta-se por exemplo a história dos "cinco filhos do rei irlandês Eochaid": fala-se de como, tendo ido caçar, num certo dia, viram-se eles perdidos, afastados de tudo e de todos. Sedentos, puseram-se, um por um, a buscar água. Fergus foi o primeiro: "E ele encontra um poço, junto ao qual há uma velha mulher, de sentinela. Tem a velha a seguinte aparência: mais negras que o carvão eram todas as suas juntas e partes, da cabeça aos pés; comparável ao rabo de um cavalo selvagem era a dura massa cinzenta que ocupava a parte superior da cabeça; com o golpe de uma presa esverdeada que dali saía, encurvada até tocar-lhe a orelha, ela podia cortar o verdejante galho de um carvalho em plena pujança; tinha olhos escurecidos e esfumaçados; nariz torto, com amplas narinas; barriga pintalgada e encarquilhada, acometida de todo tipo de doenças; canelas horrivelmente deformadas, guarnecidas de maciços tornozelos e de pés que pareciam grandes pás; tinha nodosos joelhos e unhas cor de chumbo. Com efeito, todos os traços da megera eram desagradáveis. 'É aqui, não é?', disse o rapaz; 'Justamente', respondeu ela. 'Estás guardando o poço?', perguntou ele; e ela disse: 'Sim'. 'Permites que eu leve um pouco de água?' 'Claro', consentiu ela, 'mas terei de receber de ti um beijo na face.' 'Nada disso', disse ele. 'Então não te darei água.' 'Dou-te minha palavra', ele prosseguiu, 'que, antes de dar-te um beijo, possa eu morrer de sede!' E o jovem partiu para o local onde estavam seus irmãos e lhes disse que não havia conseguido água".
        Olioll, Brian e Fiachra, que foram buscar água em seguida, um após outro, também chegaram ao mesmo poço. Todos pediram à velha que lhes desse água, mas lhe negaram o beijo.
        Por fim, chegou a vez de Niall, que chegou ao mesmo poço. "'Deixa-me tomar água, mulher!', exclamou. 'Por certo', disse ela, 'e tu me darás um beijo.' Ele respondeu: 'Além do beijo, dou-te também um abraço!' E ele se inclina para abraçá-la e lhe dá um beijo. Feito isso, ele a olha e eis que não havia no mundo uma jovem mais graciosa, de aparência mais bela que a dela: semelhante à última neve a cair, espalhada em valas, era cada uma de suas partes, do topo da cabeça à sola dos pés; antebraços roliços e majestosos, dedos longos e delgados, pernas bem-torneadas de cor agradável; duas sandálias de um belo bronze se interpunham entre os lisos e suaves pés e a terra; havia sobre ela uma ampla manta da melhor lã, puro carmesim, e, sobre suas vestes, um broche de prata branca; tinha ela brancos dentes perolados, grandes olhos magnificentes, a boca rubra como a sorva. 'Há aqui, mulher, uma galáxia de encantos', disse o jovem rapaz. 'É de fato verdade.' 'E quem és?', prosseguiu. 'Sou a Regra Real', respondeu ela, e disse:
        " 'Rei de Tara! Sou a Regra Real. . .'
        " 'Vai agora', disse ela, 'para ter com teus irmãos e leva água contigo; doravante, de ti e dos teus filhos para sempre o reino e o poder supremo serão... E tal como me viste antes feia, embrutecida, repugnante — e, no final, bela —, assim é a regra real: pois, sem batalhas, sem implacável conflito, ela não pode ser ganha; mas, no final, aquele [que ganha] é rei de tudo de atraente e belo que resulte.' "
        É assim a regra real? Assim é a própria vida. A deusa guardiã do poço inesgotável (...) requer que o herói seja dotado daquilo que os trovadores e menestréis denominavam "coração gentil".
        CAMPBELL, Joseph. O herói de mil faces.

        "... se as pessoas comessem a música que a mídia lhes serve para ouvir, já estariam mortas há muito tempo."

        Muitos fatores contribuíram para o ritmo avassalador tomado pela música popular nas últimas décadas - um ritmo que não condiz com o batimento cardíaco e que, para ser tolerado, exige o uso de substâncias que acelerem tal batimento. Um deles é a nossa omissão. Deixamo-nos vergar pela tecnologia sonora, pela mídia e por essa exótica categoria "artística": os DJs.
        Fast food é junk food, como se sabe, e há uma relação óbvia entre junk food e junk music: se as pessoas comessem a música que a mídia lhes serve para ouvir, já estariam mortas há muito tempo.


        CASTRO, Ruy. O ritmo do coração. Folha de S. Paulo, São Paulo, 12 ago. 2009, p. A-2.

        quinta-feira, 20 de agosto de 2009

        Vai sê bão lá diãtche!

        Meu Ranking das Cervejas

        1º Lugar: Corona (México)

        2º Lugar: Skol Beats (Brasil)

        3º Lugar: Baden Baden Cristal (Brasil)

        4º Lugar: Stella Artois (Bélgica)

        5º Lugar: Erdinger Dunkel (Alemanha)

        6º Lugar: Baden Baden Red Ale (Brasil)

        7º Lugar: Norteña (Uruguai)

        8º Lugar: Heineken (Países Baixos)

        9º Lugar: Devassa (Brasil)

        10º Lugar: Brahma (Brasil)

        quinta-feira, 13 de agosto de 2009

        Reflexão

        Passamos a adolescência tentando nos comportar como adultos e passamos a idade adulta nos comportando como adolescentes.

        quarta-feira, 5 de agosto de 2009

        terça-feira, 14 de julho de 2009

        Barrigudos

        PARA OS (nossos) BARRIGUDINHOS
        (MANIFESTO DE DANUZA LEÃO)

        Meninas de todo o Brasil, tenho um conselho valioso para dar aqui: se você acabou de conhecer um rapaz, ficou com ele algumas vezes e já está começando a imaginar o dia do seu casamento e o nome dos seus filhos, pare agora e me escute!
        Na próxima vez que encontrá-lo, tente (disfarçadamente) descobrir como é sua barriga. Se for musculosa, torneada, estilo "tanquinho", fuja!
        Comece a correr agora e só pare quando estiver a uma distância segura. É fria, vai por mim.
        Homem bom de verdade precisa, obrigatoriamente, ostentar uma barriguinha de chopp. Se não, não presta. Veja bem, não estou falando daqueles gordos suados, que sentam horas na frente da televisão com um balde de frango frito e que, quando se abaixam, mostram um cofre peludo.
        Não! Estou me referindo àqueles que, por não colocarem a beleza física acima de tudo (como fazem os malditos metrossexuais), acabaram cultivando uma pancinha adorável. Esses, sim, são pra manter por perto.
        E eu digo por quê. Você nunca verá um homem barrigudinho tirando a camisa dentro de uma boate e dançando como um idiota, em cima do balcão.
        Se fizer isso, é pra fazer graça pra turma - e provavelmente será engraçado, mesmo.
        Já os "tanquinhos" farão isso esperando que todas as mulheres do recinto caiam de amores - e eu tenho dó das que caem.
        Quando sentam em um boteco, numa tarde de calor, adivinha o que os pançudos pedem pra beber? Cerveja! Ou Coca-cola, tudo bem também. Mas você nunca os verá pedindo suco ou coca-light. Ou, pior ainda, um copo com gelo pra beber a mistura patética de vodka com "clight" que trouxe de casa.. E você não será informada sobre quantas calorias tem no seu copo de cerveja, porque eles não sabem e nem se importam com essa informação.
        E no quesito comida, os homens com barriguinha também não deixam a desejar. Você nunca irá ouvir um "ah, amor, 'Quarteirão' é gostoso, mas você podia provar uma 'McSalad' com água de coco". Nunca! Esses homens entendem que, se eles não estão em forma perfeita o tempo todo, você também não precisa estar. Mais uma vez, repito: não é pra chegar ao exagero total e mamar leite condensado na lata todo dia! Mas uma gordurinha aqui e ali não matará seu relacionamento.
        Se ele souber cozinhar, então, bingo! Encontrou a sorte grande, amiga.
        Ele vai fazer pra você todas as delícias que sabe, e nunca torcerá o nariz quando você repetir o prato. Pelo contrário, ficará feliz.
        Outra coisa fundamental: homens barrigudinhos são confortáveis!
        Experimente pegar a tábua de passar roupas e deitar em cima dela. Pois essa é a sensação de se eitar no peito de um musculoso besta. Terrível!
        Gostoso mesmo é se encaixar no ombro de um fofinho, isso que é conforto.
        E na hora de dormir de conchinha, então? Parece que a barriga se encaixa perfeitamente na nossa lombar, e fica sensacional.
        Homens com barriga não são metidos, nem prepotentes, nem donos do mundo. Eles sabem conquistar as mulheres por maneiras que excedem a barreira do físico. E eles aprenderam a conversar, a ser bem humorados, a usar o olhar e o sorriso pra conquistar. É por isso que eu digo que homens com barriguinha sabem fazer uma mulher feliz.

        segunda-feira, 6 de julho de 2009

        sound and fury

        Macbeth:
        To-morrow, and to-morrow, and to-morrow,
        Creeps in this petty pace from day to day,
        To the last syllable of recorded time;
        And all our yesterdays have lighted fools
        The way to dusty death. Out, out, brief candle!
        Life's but a walking shadow, a poor player,
        That struts and frets his hour upon the stage,
        And then is heard no more. It is a tale
        Told by an idiot, full of sound and fury,
        Signifying nothing.

        Macbeth Act 5, scene 5, 19–28

        segunda-feira, 29 de junho de 2009

        Letícia faz um ano


        Vai, Letícia, pelo mundo, em teu cavalinho de [madeira...
        Porque, no mundo, há tanta coisa pra ver:
        Guerra de travesseiro,
        Torta de morango,
        Abraço apertado,
        Guimarães Rosa.

        Vai, Letícia, pelo mundo, entre pirulitos, balas e bolachas.
        Enche teus bolsos de doces.
        Porque a vida, às vezes, é amarga.

        Vai, Letícia, pelo mundo, com tuas fantasias.
        Índia. Urso. Caipira.
        Porque precisamos de fantasias e, às vezes,
        As usamos pra nos escondermos atrás delas.

        Vai, Letícia, pelo mundo, ver o mar.
        Esse mar que vive nos teus olhos.
        Enfrenta as ondas e o vento.
        Ama o Sol.
        Faça castelos de areia para aprender
        Que eles nunca duram muito tempo.

        Vai, Letícia, pelo mundo, com esses pontos de interrogação azuis.
        Supreende-te com o supremo milagre da vida.
        Nunca deixes de ser criança.
        Nunca deixes de te encantar
        Com o formato das nuvens,
        Com os cantos dos pardais,
        Com o barulho do mar,
        Com a gota do orvalho,
        Com a formiga diligente que lhe oferta uma folha.

        Olha sempre pro mundo como essa eterna novidade.
        Sempre novo.
        Sempre diferente.
        Como se estivesse rasgando o embrulho de um presente que não sabes ainda o que é.
        E nunca deixes de sorrir.
        Porque teu nome significa alegria.

        sábado, 20 de junho de 2009

        Mas viveremos

        Já não há mãos dadas no mundo.
        Elas agora viajarão sozinhas.
        Sem o fogo dos velhos contatos,
        que ardia por dentro e dava coragem.

        Carlos Drummond de Andrade

        C'est la vie

        sexta-feira, 5 de junho de 2009

        Leituras extracurriculares do 1º semestre

        1. ABREU, Antônio Suárez. A arte de argumentar: gerenciando razão e emoção. ***
        2. PROSE, Francine. Para ler como um escritor. *****
        3. DAVIES, Norman. Europa em guerra: 1939-1945. *****
        4. RIORDAN, Rick. O ladrão de raios. ***
        5. ZUSAK, Markus. A menina que roubava livros. **
        6. MÁRQUEZ, Grabiel García. O amor nos tempos do cólera. ****
        7. BLOOM, Harold. Como e por que ler. ***
        8. MEYER, Stephenie. Crepúsculo. **
        9. WERNECK, Humberto. O santo sujo. ***
        10. FLOCKER, Michael. Manual do hedonista: dominando a esquecida arte do prazer. ***
        11. GIBBINS, David. Atlantis. **
        12. DUNCAN, Paul, SILVER, Alain, URSINI, James. Film noir. ***
        13. LARSSON, Stieg. A menina que brincava com fogo. ***
        14. LORENTINO, Eduardo. 1808. ***
        15. BRANDRETH, Gyles. Oscar Wilde e os Assassinatos à Luz de Velas. *
        16. GABLER, Neal. Walt Disney: O Triunfo da Imaginação Americana. ****
        17. TEZZA, Cristovão. O filho eterno. ***
        18. CASTRO, Marcos de. A imprensa e o caos na ortografia. ***

        B.S. RAJNEESH, no livro "A semente da Mostarda"

        Olhe ao seu redor - as pessoas que você acha boas, quase sempre são fracas. A bondade delas não vem da força, vem da fraqueza. Elas são boas porque não ousam ser más. Mas que tipo de bondade é essa que vem da fraqueza? A bondade tem de surgir de uma força transbordante, só então é boa porque ela é vida, um fluxo de vida. Assim, sempre que um pecador se torna santo, sua santidade tem sua própria glória. Mas sempre que um homem comum se torna santo por causa da sua fraqueza, sua santidade é pálida e morta, não existe vida nela. Um homem que é bom porque não pode ser mau, não é realmente bom. No momento em que se tornar forte, será mau; dê-lhe o poder e imediatamente estará corrompido (p. 125-126).

        domingo, 31 de maio de 2009

        Fim de semana no teatro

        Aproveitei esse fim de semana pra assistir a duas peças. A primeira é:


        Autor de Quem Tem Medo de Virginia Woolf?, o dramaturgo americano é provocador. Nessa tragicomédia, a melhor montagem de 2008, ele descarta os valores morais. Dirigidos por Jô Soares, José Wilker e Denise Del Vecchio interpretam o casal Martin e Stella. Felizes e cúmplices, eles vivem em harmonia com o filho gay (Gustavo Machado) e têm a admiração dos amigos. Tamanha estabilidade desmorona quando Martin encontra uma amante: Sylvia, a cabra! Entre o absurdo e a tragédia, o espetáculo transforma riso em inquietação e traz referências a pedofilia, zoofilia e incesto. E está aí o principal mérito do texto: expor a perda da razão.

        A segunda:

        Inspirada em personagens dos contos de fada, a montagem mostra como a dupla de diretores consegue atingir a superação a partir da originalidade. No musical, o destino de Amélia (Alessandra Maestrini) se cruza com o de outras seis mulheres. Trocada por uma jovem mais bela, a protagonista procura uma cartomante (Zezé Motta) e inicia uma jornada para recuperar seu amor em sete dias. Num cinzento Rio de Janeiro, a história é costurada por dezoito músicas compostas por Ed Motta e com letras de Botelho. Subvertendo o gênero, a peça privilegia o texto e, numa encenação soturna, desconstrói com ironia as conhecidas narrativas infantis. Entre seis instrumentistas e um coro de cinco vozes, ainda sobressaem as performances de Suzana Faini, Alessandra Verney e Rogéria.