terça-feira, 29 de janeiro de 2008

Cantiga para não morrer

Quando você for se embora,
moça branca como a neve,
me leve.

Se acaso você não possa
me carregar pela mão,
menina branca de neve,
me leve no coração.

Se no coração não possa
por acaso me levar,
moça de sonho e de neve,
me leve no seu lembrar.

E se aí também não possa
por tanta coisa que leve
já viva em seu pensamento,
menina branca de neve,
me leve no esquecimento.

Ferreira Gullar. De Dentro da Noite Veloz (1962-1975)

Esse é um poema do Gullar que já me agradou logo de cara, mesmo antes de pensar sobre ele. O título já nos remete às cantigas de amor medievais. E é um título curioso. Abre espaço para três interpretações ao menos.
Deseja-se que a cantiga seja eterna e não morra nunca? Pode ser. Nós passamos pelo mundo, mas a escrita permanece. Trata-se, portanto, da crença no valor e no poder da palavra escrita, capaz de tocar e emocionar. Que sobrevive a nós todos.
Ou, então, poderíamos ter aqui a elipse de um pronome pessoal: "cantiga para 'eu' não morrer". Se, antes, o verbo ligava-se à "cantiga", agora refere-se a um "eu". Embora essa visão pareça resgatar a idéia anterior, o ponto de vista torna-se mais subjetivo.
A literatura é uma das maneiras possíveis de se enganar a morte. Por meio dos nossos escritos, continuamos a viver, mesmo depois de partirmos. George Whasington já dizia que, antes de morrer, o homem deveria plantar uma árvore, ter um filho e... escrever um livro. Ora, todas as opções dão essa ilusão de imortalidade e são extensões de nós mesmos depois do grande mergulho nas trevas. É uma forma de eu deixar minha marca no mundo.
Podemos entender, ainda, o poema como um desabafo. A tentativa de exprimir um estado d'alma, que é o fundamento de toda a lírica. "Morrer" pediria um complemento implícito. "Faço essa cantiga para não me perder; para não morrer de amor, de saudade ou de tristeza". A morte está aqui presente na partida da mulher amada, que é dada como certa. Note que ele não diz "Se você for embora", e sim "Quando você for embora". O amor é visto sob a ótica da perda. Invariavelmente perdemos aqueles que amamos.
Outro dado que o aproxima de uma cantiga de amor é o aspecto formal. Todos os versos são feitos em medida velha (sete sílabas poéticas). À exceção de um: o terceiro verso da primeira estrofe. Por que isso? É referência ao eu-lírico incompleto sem a mulher amada? Ou apenas abre espaço para a gradação que se seguirá ("coração-lembrança-esquecimento")? Não sei.
Não podemos esquecer a presença das anáforas ("moça brança/menina branca", "me leve"), que sugerem um paralelismo típico das cantigas de amigo e, possivelmente, enfatizam o sofrimento amoroso ou a melancolia do poeta.
A partir da segunda estrofe, inicia-se o processo de separação entre eu-lírico e a mulher amada. Ele deseja existir ainda nela, mesmo depois do abandono. Este distanciamento se dá em diferentes níveis, do mais íntimo ao mais impessoal. Porque é apenas um desejo do poeta, não uma certeza. Todo o texto seguinte começa por orações condicionais, que indicam possibilidade. Nada é concreto. Nada garante que a jovem cumpra o que lhe é pedido.
Voltando à idéia do distanciamento, notamos que ele se dá também no plano formal. Partimos de três versos, depois para duas estrofes com quatro e, por fim, uma com cinco. Na primeira, pode-se entrever uma proximidade física. Dada a separação, o eu-lírico deseja que, ao menos, a "menina branca de neve" sinta saudades dele e carregue dentro de si o amor que tiveram.
Não sendo isso possível, que ela ao menos se lembre dele, de alguém que um dia a amou. Sem a carga de sentimento que aparece na segunda estrofe. Estamos no universo da memória, não do sentimento.
Caso isso não aconteça, que ela, enfim, o leve no seu esquecimento. É plano da morte. Lembremos de Camões: a morte é a "lei do esquecimento". E não queremos ser esquecidos. Queremos ser lembrados! Dessa forma, voltamos ao título. "Escrevo essa canção para não ser esquecido por você" ou "Escrevo essa canção para não deixar morrer em você essa lembrança, esse sentimento", parece nos dizer. Temos aí uma quarta interpretação.


9 comentários:

carlos santos jacinto disse...

Maravilhoso,sou conterrâneo de Goulart,
muito boa sua interpretação desse lindo poema.

rosi que saber disse...

muito bom

rosi que saber disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Na França Tem Conto disse...

Perfeito!

Guilherme Araujo disse...

Qual é a situação imaginada pelo eu lírico?

Jhully Any disse...

achei muito boa sua interpretação, eu gostaria de usa-la em meu trabalho, porém é muito longo, mas irei fazer o máximo para que suas palavras sejam usadas de uma boa forma.

Unknown disse...

Jhully Anu Você estuda a onde pq tbm tenho trabalho disso

Unknown disse...

Sua interpretação do poema é linda e emociona. É um poema do poema!

Unknown disse...

Belíssimo poema,uma interpretação que toca nossa alma!