terça-feira, 29 de abril de 2008

Aquela noite

Hoje, senti saudades do filme Antes do pôr-do-sol (Before Sunset). E me lembrei da Julie Delpy cantando "A Walts for a Night".

Anotação mental: "Preciso comprá-lo, urgente, em DVD".

Dois jovens se encontram, em Paris, nove anos depois de passarem uma noite apaixonados pelas ruas de Viena (vejam Antes do amanhecer).

Adoro casos de amor mal-resolvidos com final feliz.



Let me sing you a waltz
Out of nowhere, out of my thoughts
Let me sing you a waltz
About this one night stand

You were for me that night
Everything I always dreamt of in life
But now you're gone
You are far gone
All the way to your island of rain

It was for you just a one night thing
But you were much more to me
Just so you know

I don't care what they say
I know what you meant for me that day
I just wanted another try
I just wanted another night
Even if it doesn't seem quite right
You meant for me much more
Than anyone I've met before

One single night with you little Jesse
Is worth a thousand with anybody

I have no bitterness, my sweet
I'll never forget this one night thing
Even tomorrow, another arms
My heart will stay yours until I die

Let me sing you a waltz
Out of nowhere, out of my blues
Let me sing you a waltz
About this lovely one night stand.

Ode ao gato

Tava procurando um exemplo de ode pra usar com meus alunos e me deparei com essa daqui do Pablo Neruda, bem traduzida pela Eliane Zagury.

Os animais foram
imperfeitos,
compridos de rabo, tristes
de cabeça.
Pouco a pouco se foram
compondo,
fazendo-se paisagem,
adquirindo pintas, graça vôo.
O gato,
só o gato apareceu completo
e orgulhoso:
nasceu completamente terminado,
anda sozinho e sabe o que quer.

O homem quer ser peixe e pássaro,
a serpente quisera ter asas,
o cachorro é um leão desorientado,
o engenheiro quer ser poeta,
a mosca estuda para andorinha,
o poeta trata de imitar a mosca,
mas o gato
quer ser só gato
e todo gato é gato do bigode ao rabo,
do pressentimento à ratazana viva,
da noite até os seus olhos de ouro.

Não há unidade
como ele,
não tem
a lua nem a flor
tal contextura:
é uma coisa
só como o sol ou o topázio,
e a elástica linha em seu contorno
firme e sutil é como
a linha da proa de uma nave.
Os seus olhos amarelos
deixaram uma só
ranhura
para jogar as moedas da noite .

Oh pequeno imperador sem orbe,
conquistador sem pátria,
mínimo tigre de salão, nupcial
sultão do céu
das telhas eróticas,
o vento do amor
na intempérie
reclamas
quando passas
e pousas
quatro pés delicados
no solo,
cheirando,
desconfiando
de todo o terrestre,
porque tudo
é imundo
para o imaculado pé do gato.

Oh fera independente
da casa, arrogante
vestígio da noite,
preguiçoso, ginástico
e alheio,
profundíssimo gato,
polícia secreta
dos quartos,
insígnia
de um
desaparecido veludo,
certamente não há
enigma na tua maneira,
talvez não sejas mistério,
todo o mundo sabe de ti e pertences
ao habitante menos misterioso
talvez todos acreditem,
todos se acreditem donos,
proprietários, tios
de gato, companheiros,
colegas,
discípulos ou amigos do seu gato.

Eu não.
Eu não subscrevo.
Eu não conheço o gato.
Tudo sei, a vida e o seu arquipélago,
o mar e a cidade incalculável,
a botânica
o gineceu com os seus extravios,
o pôr e o menos da matemática,
os funis vulcânicos do mundo,
a casca irreal do crocodilo,
a bondade ignorada do bombeiro,
o atavismo azul do sacerdote,
mas não posso decifrar um gato.
Minha razão resvalou na sua indiferença,
os seus olhos têm números de ouro.

sábado, 26 de abril de 2008

Dica literária


Comprei, recentemente, o livro O triste fim do pequeno menino ostra e outras histórias. É um livro infanto-juvenil de poemas escrito por um dos diretores de cinema mais criativos da história: Tim Burton. Autor de filmes como Edward Mãos-de-tesoura (que eu adoro).
Ele ilustra e leva pro papel todo aquele seu universo gótico de seres desajustados (no caso, crianças). O título já dá uma boa idéia do que eu estou falando.
O gostoso é que trata-se de um livro inusitado, lírico, engraçado e melancólico ao mesmo tempo. O autor nos poupa da poesia adocicada e pegajosa que reina nesse tipo de publicação. Sem moralismos. Ou finais felizes.
Um dos meus poemas favoritos é "O menino robô", que reproduzo aqui (depois eu coloco mais). Primeiro, a versão original, porque muiita coisa se perde na tradução. Depois, a versão feita pelo Márcio Suzuki (pra quem não lê inglês).

ROBOT BOY

"Mr. and Mrs. Smith had a wonderful life.
They were a normal, happy husband and wife.
One day they got news that made Mr. Smith glad.
Mrs Smith would be a mom,
which would make him a dad!
But something was wrong with their bundle of joy.
It wasn't human at all,
it was a robot boy!
He wasn't warm and cuddly
and he didn't have skin.
Instead, there was a cold, thin layer of tin.
There were wires and tubes sticking out of his head.
He just lay there and stared,
not living or dead.

The only time he seemed alive at all
was with a long extension cord
plugged into the wall.

Mr. Smith yelled at the doctor,
'What have you done to my boy?
He's not flesh and blood,
he's aluminium alloy!'

The doctor said gently,
'What I'm going to say
will sound pretty wild.
But you're not the father
of this strange-looking child.
You see, there still is some question
about the child's gender,
but we think that its father
is a microwave blender.'

The Smiths' lives were now filled
with misery and strife.
Mrs. Smith hated her husband,
and he hated his wife.
He never forgave her unholy alliance:
a sexual encounter
with a kitchen appliance.

And Robot Boy
grew to be a young man.
Though he was often mistaken
for a garbage can."

***
Senhor e senhora Silva levavam uma vida
sossegada.
Vida de gente normal, feliz e bem casada.
Um dia tiveram uma notícia
Que encheu o marido de contentamento:
A mãe esperava um filho,
E ele ia ser pai do rebento!
Mas algo deu errado naquele mar de felicidade.
A criança era... um robô!
Não parecia gente de verdade.
Um bebê nem quente nem fofo, que estranho!
A pele: uma fina e fria chapa de estanho.
Da cabeça lhe saíam antenas e fios.
E ele ficava largado, sempre com olhos parados,
Nem morto nem animado.

Quando até a tomada um longo fio
Elétrico se estendia,
Este era o único momento do dia
Em que ele ficava cheio de energia.

O senhor Silva não conteve os berros:
"O doutor não cometeu um grave erro?
Nem sangue nem carne tem o menino,
Mas é uma simples liga de alumínio!"

O doutor, gentil, lhe respondeu:
"O que vou lhe dizer
Pode parecer extravagante
Mas o senhor não é o pai
Desse garoto mutante.
Veja bem, a questão não é simples
E requer investigação profunda,
Mas achamos que o pai dele
É o forno microondas."

Agora a vida dos Silva
Tornou-se um fardo pesado.
A senhora odiava seu marido,
E ele já não se via mais casado.
Não perdoou a esposa por aquela
Ligação mesquinha:
A união carnal
Com um aparelho de cozinha.

Apesar de tudo, o menino cresceu
E se tornou um robô jovem.

Mas muitas vezes ainda o confundem
Com a lata de lixo da garagem.



sexta-feira, 25 de abril de 2008

Uma gota de Dostoiévski

A respeito dos óculos óculos ridículos do velhinho feliz, narrado abaixo, lembrei-me de um momento d' Os irmãos Karamázov em que o protagonista, Aliócha, diz:

— E que é o ridículo? Sabe-se quantas vezes um homem é ou parece ridículo? Além do mais, atualmente, quase todas as pessoas que têm capacidade temem extremamente o ridículo, o que as torna infelizes. Admiro-me somente de que experimente você isso a tal ponto, se bem que o observe desde muito tempo e não unicamente em sua casa. Atual­mente, adolescentes estão atingidos por esse mal. É quase uma loucura. O diabo encarnou-se no amor-próprio, para apoderar-se da geração atual, sim, o diabo — insistiu Aliócha sem sorrir, como pensava Kólia, que o fixava. — Você é como todos — concluiu ele —, isto é, como mui­tos, somente não se deve ser como todos.

quinta-feira, 24 de abril de 2008

Cenas de um shopping

CENA 1: Já havia visto esse velhinho na Praça de Alimentação do shopping. É a cara do Jaguar. Cartunista e boêmio. Um dos mitos cariocas. Todo mundo diz que, quando ele morrer, irão doar o fígado dele pra ciência.
Mas, bem... Eu falava do velhinho... Longilíneo (nunca pensei que usaria essa palavra na vida), barba branca... Usava uns óculos escuros que... hum... como eu vou falar? Os óculos dele eram óculos "rabo-de-peixe". Como o daqueles cadillacs antigos que levam esse nome. É um tipo de óculos que só vemos em filmes dos anos 50 ou nessas festinhas de formatura, quando distribuem esse tipo de coisa entre os convidados.
Ele estava sentado, tomando um café, todo sorridente, com um garoto que, certamente, era o seu neto.
Três garotinhas passaram por eles. Começaram a rir.
Tadinhas.
Eu gostaria de ser um velhinho assim.
Um velho de olhos com barbatanas. Tomando café com o filho do seu filho. Sem me importar com o que as pessoas pensam de mim para ser feliz.

***

CENA 2: Fui assistir ao filme "Super-heróis" (fazer o que, eu precisava ocupar o tempo até chegar a hora de pegar meu ônibus. Era o que tava a mão, pô!).
Fundo do poço intelectual.
E o pior era que a cópia era dublada!
Mas não vamos falar dos meus pecadilhos (significa pecado pequeno, leitor!) cinematográficos. Quero falar do que se passou durante a projeção.
À minha esquerda, estava a maior criançada, devidamente acompanhada dos pais.
A garotinha que sentou-se ao meu lado - pude ouvir - chamava-se Yasmin. Devia ter uns 9 anos.
Em certo momento do filme, um sargento de polícia disse:
- Nós não precisamos de super-heróis. Nossa cidade precisa de mais policiais. E de um BORDEL!
O menino que estava sentado junto a ela e que deveria ter a mesma idade perguntou:
- Que que ele disse?
A Yasmin respondeu:
- Que a cidade precisa de mais QUARTEL!

segunda-feira, 21 de abril de 2008

Hexagrama 65


Nenhuma dor pelo dano.
Todo dano é bendito.
Do ano mais maligno,
nasce o dia mais bonito.
1 dia, 1 mês, 1 ano.

(Paulo Leminski)

Perguntas


Quero lhe implorar para que seja paciente com tudo o que não está resolvido em seu coração e tente amar. As perguntas são como quartos trancados e como livros escritos em língua estrangeira. Não procure respostas que não podem ser dadas porque não seria capaz de vivê-las. E a questão é viver tudo. Viva as perguntas agora.Talvez assim, você, gradualmente, sem perceber, viverá a resposta num dia distante. (Rilke)

domingo, 20 de abril de 2008

A família está acabando

Gostei da matéria na Veja dessa semana com idéias do psicanalista francês Charles Melman. Algumas delas:

FIM DA FAMÍLIA – Assistimos hoje a um acontecimento que talvez não tenha precedente na história, que é a dissolução do grupo familiar. Pela primeira vez a instituição familiar está desaparecendo, e as conseqüências são imprevisíveis. Impressiona-me que os sociólogos e antropólogos não se interessem muito por esse fenômeno. Nesse processo, podemos constatar que o papel de autoridade do pai foi definitivamente demolido. Antes, o menino tinha na figura do pai um rival e um modelo. Um rival que despertava nele o gosto pela competição e um modelo na busca do prazer sexual. Já para a menina, tratava-se de um homem em quem ela procurava se completar. Hoje, com o declínio da figura paterna, nossos jovens podem estar menos propensos a batalhar pelo sucesso, a estabelecer um ideal de vida e até a descobrir o gosto pelo sexo.

JOVENS NO DIVÃ – Fico surpreso quando constato que, se há uma clientela interessada e engajada na psicanálise hoje em dia, é a dos jovens dos 18 aos 30 anos. Eles não procuram o psicanalista pelo fato de reprimirem seus desejos, mas porque não sabem o que desejam. É uma situação totalmente original em relação a Freud. Antes, a pessoa recorria à psicanálise porque não ousava realizar seus desejos. Hoje, principalmente no caso dos jovens, é por não saber o que desejar. Isso acontece porque nossos jovens foram criados em condições que promovem a busca rápida do prazer máximo e sem obrigações. O problema é que essa forma de lidar com o desejo produz situações de dificuldade para os jovens. Isso os leva ao divã.

BUSCA DO PRAZER – Muitos jovens encontram dificuldade para desenvolver plenamente uma vida sexual. Isso parece paradoxal, porque hoje em dia o sexo é muito acessível. Mas na verdade essa facilidade leva à busca de uma vida sexual sem compromisso, que proporcione um prazer ocasional, como o cinema, a bebida ou a dança. Há aí uma mudança interessante, talvez uma tentativa de se proteger em relação ao compromisso que uma vida sexual pode evocar. A idéia é aproveitar sem se engajar, mas isso impõe uma questão: eles aproveitam plenamente? Esse é o fenômeno que chamei de nova economia psíquica. Ele é fundado sobre o princípio da busca imediata de prazer máximo, sem freios nem restrições. Esses momentos de prazer, que proporcionam uma satisfação profunda, são vividos, mas não organizam a existência, nem o futuro. Ou seja, a existência é feita de uma sucessão de momentos sem nenhuma projeção no futuro, de momentos que podem desaparecer porque não terão continuidade.

EXISTÊNCIA VIRTUAL – O mundo virtual proporcionado pela internet faz sucesso por se tratar de um mundo lúdico. É um mundo coerente com a maneira de viver dos jovens, não exige engajamento nem compromisso. Ali qualquer um pode viver uma série de vidas sucessivas sem nenhum compromisso definitivo. As pessoas querem se distanciar da realidade não porque ela seja assustadora ou sem-graça, mas porque ela implica sempre um limite. Além disso, a realidade requer uma identidade, um objetivo mais ou menos claro na vida, ao passo que esses exercícios virtuais não pressupõem nenhuma identidade, nenhuma perspectiva e ainda derrubam todos os limites, incluindo os do pudor e da polidez.

sábado, 19 de abril de 2008

Foto Grafia

A câmara fotográfica
é uma câmara frigorífica
de sentimentos.

Alguns,
como as carnes,
perdem a validade.

Outros,
duram o espaço
de uma vida.

Poema de bar

Tua beleza é algo certo,
esperto,
deserto.

O mundo desperto.

Um céu aberto...

segunda-feira, 14 de abril de 2008

Ciência e Filosofia

Experimento consegue "prever" decisão cerebral

Grupo alemão questiona limites do livre arbítrio

DA REPORTAGEM LOCAL

As decisões atribuídas ao livre arbítrio humano podem ser formadas inconscientemente vários segundos antes de o cérebro tomar consciência delas. Essa é a conclusão defendida por um estudo publicado ontem pela revista "Nature Neuroscience". O trabalho se baseou em um experimento no qual voluntários tiveram seus cérebros monitorados por ressonância magnética.
No teste, elaborado por cientistas do Instituto Max Planck para Cognição Humana e Ciências Cerebrais, de Leipzig (Alemanha), pessoas tinham de decidir livremente por apertar um de dois botões em um controle. Ao mesmo tempo ficavam olhando uma seqüência de letras projetada numa tela, que não deveria influir na decisão. Os voluntários tinham apenas de dizer que letra estavam observando quando finalmente decidiam qual botão apertar.
Comparando o momento em que as pessoas se diziam conscientes de suas decisões com padrões de atividade cerebral registrados no aparelho de ressonância magnética, os cientistas tiraram sua conclusão.
"Descobrimos que o resultado de uma decisão pode ser codificado como atividade cerebral nos córtices pré-frontal e parietal [regiões na superfície do cérebro] até dez segundos antes de entrarem na consciência", escrevem os autores do estudo, liderado por John-Dylan Haynes. "A impressão de que podemos escolher livremente entre duas possíveis linhas de ação é essencial para nossa vida mental. Contudo, é possível que essa experiência subjetiva de liberdade não seja mais do que uma ilusão e nossas ações sejam iniciadas por processos mentais inconscientes bem antes de tomarmos consciência de nossa intenção de agir."
Folha de São Paulo, 14/4/2008

domingo, 13 de abril de 2008

Paulista

A vi.
Ave.
Avenida.
A paulista.
A alegria das coisas há muito guardadas.
As estrelas não estavam naquele céu sujo de São Paulo.
As estrelas estavam aqui dentro.

Das crenças

Eu não acredito
no amor, porque
o amor
nunca acreditou
em mim.

sexta-feira, 11 de abril de 2008

Adulto

Aprendi a ser adulto,
E deste crime
Tenho a recompensa trágica
De andar sendo seguido pela sombra
Do menino de mim assassinado.

Álvaro Alves de Faria. Noturno maior.

A gente até tenta

quinta-feira, 10 de abril de 2008

Marginal

.................................Você.
Esse amor-perfeito
.................................trancado
.................na gaveta
.................................do tempo.

...........................Cadê as chaves?

domingo, 6 de abril de 2008

Bruna Caram

Sábado, dei um pulo no Tom Jazz lá na Av. Angélica em Sampa. A casa foi aberta pelos donos do Tom Brasil e do Bourbon Street.
É um oásis de boa música nesse deserto de mediocridade.
Era show da Bruna Caram. Uma jovem cantora de Avaré (SP) que tem conquistado espaço no cenário musical. Não custava nada tentar e dar uma conferida.
Fui com a cara e a coragem. Sozinho.
Resultado: encantadora! O repertório é muito bom também e ela tem ótima presença cênica. Não é à toa que a jovem disse ser fã da Piaf.
Valeu a pena! E olha que nem foi minha melhor noite nesse fim de semana...
Recomendo.

Gostei do comentário do jornalista Kiko Ferreira, d' O Estado de Minas:

"A nova promessa da música brasileira não recicla bossa nova, não imita o funk carioca, não flerta com o hip hop nem com o mangue bit. Nem recicla o samba rock, não faz pose para a semana de moda, não é eclética, não tem atitude rock'n'roll, não apareceu em reality show nem foi revelada pela Malhação. Ainda bem..."

Quem tiver curiosidade, o site dela é:

http://www.brunacaram.com.br/

Ainda coloquei uma palinha aí em cima! Confiram.

terça-feira, 1 de abril de 2008

Maktub

não discuto
com o destino

o que pintar
eu assino

Paulo Leminski

Nós nunca mentimos

Nós nunca mentimos. Quando mentimos, é para o bem de vocês. Verdade. Começa na infância, quando a gente diz para a mãe que está sentindo uma coisa estranha, bem aqui, e não pode ir à aula sob pena de morrer no caminho. Se fôssemos sinceros e disséssemos que não tínhamos feito a lição de casa e por isso não podíamos enfrentar a professora, a mãe teria uma grande decepção. Assim, lhe dávamos a alegria de se preocupar conosco, que é a coisa que mãe mais gosta, e a poupávamos de descobrir a nossa falta de caráter. Melhor um doente do que um vagabundo. E se ela não acreditasse, e nos mandasse ir à escola de qualquer jeito, ainda tínhamos um trunfo sentimental. ‘Então vou ter que inventar uma história para a professora’, querendo dizer vou ter que mentir para outra mulher como se ela fosse você. ‘Está bem, fica em casa. Mas estudando!’ E ficávamos casa, fazendo tudo menos estudar, dando-lhe todas as razões para dizer que não nos agüentava mais, que é outra coisa que mãe também adora.
A primeira namorada. Mentíamos para preservar nosso orgulho, certo?
— Não, não, eu estava passando por acaso. Você acha que eu fico rondando a sua casa o dia inteiro, é?
Mas o que vocês pensariam se disséssemos: ‘Sim, sim, não posso ficar longe de você, penso em você o dia inteiro, aqueles telefonemas que você atende e ninguém fala,sou eu! Confesso, sou eu! Vamos nos casar! Eu sei que eu só tenho 12 anos e você tem 11, mas temos que nos casar! Senão eu morro. Senão eu morro!’? Vocês se assustariam, claro. A paixão nessa idade pode ser um sumidouro. Mentíamos para nos proteger do sumidouro.
Outras namoradas. Outras mentiras.
— Eu só quero ver, juro. Não vou tocar.
Vocês não queriam ser tocadas, mas ao mesmo tempo se decepcionariam se a gente nem tentasse. Nem desse a vocês a oportunidade de afastar a nossa mão, indignadas. Ou de descobrir como era ser tocada.
Namorar — pelo menos no meu tempo, a Renascença — era uma lenta conquista de territórios hostis, como a dos desbravadores do Novo Mundo. Avançávamos no desconhecido, centímetro a centímetro, mentira a mentira.
— Pode, mas só até aqui.
— Está bem. Não passo daí.
— Jura?
— Juro.
— Você passou! Você mentiu!
— Me distraí!
Dávamos a vocês todos os álibis, todas as oportunidades para dizer depois que tudo acontecera devido à nossa calhordice e não à vontade que vocês também sentiam. Não mentíamos para vocês, mentíamos por vocês. Os verdadeiros cavalheiros eram os que enganavam as mulheres. Os calhordas diziam, abjetamente, a verdade. Não faziam o que juravam que não iam fazer, transferindo toda a iniciativa a vocês. É ou não é?
Mas isso tudo mudou, desgraçadamente bem quando eu deixei para trás as tentações do mundo e entrei para uma ordem (a dos monógamos). A revolução sexual, que um dia ainda vai ser comemorada como a Revolução Francesa, com a invenção da pílula anticoncepcional correspondendo à queda da Bastilha e o fim dos sutiãs ao fim da monarquia — e o termo sans culotte, claro, adquirindo novo significado —, tornou o relacionamento entre homens e mulheres mais franco e desobrigou os homens de mentir para as mulheres para salvar a honra delas. Aliás, dizem que a coisa virou de tal maneira que hoje a mentira mais comum dita pelos homens é ‘Esta noite não, querida, estou com dor de cabeça.’ Não sei. Mas continuamos mentindo a vocês para o bem de vocês.
‘Rmmwlmnswl’ não significa que nós estamos fingindo dormir com medo de ir ver que barulho é aquele na sala. Significa que estamos fingindo dormir para que você vá ver com seus próprios olhos que não é nada e pare com esses temores ridículos, e se for mesmo ladrão nos avise a tempo de pular a janela.
‘Fiquei fazendo companhia ao Almeidinha, coitado, ele ainda não se refez’ significa que a nova gata do Almeidinha só saía com ele se ele conseguisse um par para a prima dela, e nós fazemos tudo por um amigo, mas não queremos estragar a ilusão de vocês de que a separação deixou o Almeidinha arrasado, como ele merecia.
‘Está quase igual ao da mamãe’ significa que não chega aos pés do que a mamãe fazia, ou então que está muito melhor, mas que o importante é vocês não se sentirem nem tão ressentidas que decidam atirar o doce na nossa cabeça e depois se arrependam, nem tão confiantes de parem de tentar ser iguais à mamãe, e no dia que a gente disser que está sentindo uma coisa estranha bem aqui, só para não ir trabalhar e ficar vendo o programa da Xuxa, vocês não digam ‘Comigo essa não pega’ e nos botem para a rua.

Luís Fernando Veríssimo