segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

Fotografei você na minha Rolleiflex

Estou em viagem pelo Atlântico. E tudo o que vejo são máquinas fotográficas. Eu não trouxe a minha. Há muito não a uso. Percebi que, no afã de registrar nossas viagens, nós realmente não aproveitamos o que mais importa: a viagem. Em meio a esse nosso desejo louco por imortalidade, queremos congelar um pedaço do tempo e deixá-lo lá no freezer para alimentar, talvez, algum interessado das gerações procedentes.
O problema é que ficamos preocupados demais em mostrar as fotografias aos amigos, colegas e familiares. Estes, invariavelmente, olham aquelas imagens com enfado e desinteresse. Ou então com mórbida curiosidade (ela engordou? ele está solteiro? ela fez plástica! ele arrumou uma namorada com idade para ser sua filha!). 
Quem teve de enfrentar um vultoso álbum de fotografias de um casal de amigos com imagens do último passeio feito à Europa ou à Disneyworld ou à Ubatuba sabe muito bem do que estou falando. Há também a possibilidade de, por meio das fotos, bisbilhotar nossas vidas através das redes sociais, como forma de saciar o interesse constante pela vida alheia. 
Porém, por que publicamos, na rede, tantas imagens pessoais?
Acredito que o fazemos porque ficamos preocupados demais em mostrar o quanto somos (ou estamos) felizes, viajados e afortunados. Ficamos preocupamos em mostrar como estamos bronzeados, bem vestidos,  bem alimentados. Viajamos não para sentir, mas para mostrar. “Vaidade das vaidades...”
Me parece que, por traz de todos aqueles sorrisos e aquelas poses, há tristeza, solidão, vazio. Há um desejo por carinho, por reconhecimento, por admiração. Há uma vontade de ser querido, idolatrado, invejado. 
Na verdade, aquelas imagens são registros da nossa miséria. Uma miséria risível, no entanto. A tal "comédia humana".
Prefiro minhas memórias dos lugares que vi, das comidas que provei, das pessoas com quem me deparei a copiá-las em papel. É claro que momentos importantes para nós devem ficar registrados. Um abraço fraternal, um filho recém-nascido, um beijo apaixonado, um pôr do sol melancólico. Esses momentos, porém, são relativamente raros. Não resultariam naqueles milhares de fotos que comumente tiramos. Quem, hoje, traz 10 ou 12 fotos de suas viagens? Ou será que a pessoa passou por 30 ou 100 eventos marcantes? Isso é que é ser afortunado...

terça-feira, 4 de janeiro de 2011

Tentativa e erro

ALUNOS AMEAÇAM face a face professores em sala de aula. Ameaçam por quê? - perguntar-se-ia há 50 anos.
Nos meados do século passado, enfrentar um professor era dificilmente concebível. A hierarquia era uma regra que se impunha por si só.
O respeito mútuo - pois o professor também respeitava o aluno - acompanhava a tradição.
Existiam piadas sobre o rato ou o sapo que Juquinha punha no caminho da professora, para assustá-la. Mas, no corpo a corpo, isso não acontecia; nem nos sonhos mais ousados.
Ouvi contar que alunos, escondidos, esvaziavam o pneu do carro de um professor, jogavam água ou tinta em diário de classe.
Em escolas religiosas, esse tipo de manifestação rebelde inexistia ou, pelo menos, era bem mais encoberto.
Queixar-se de professor era comum, mas pelas costas. Disfarçar e dissimular os conflitos e as simpatias era algo comum.
Não estou aqui para defender esses recursos usados pelas gerações passadas. Mas o seu uso contribuía para que fosse exercitada a capacidade de tolerar frustrações e desconfortos, sem levá-los às últimas consequências.
Toda escola tinha uma professora que era a mais amada e aquelas que eram o pesadelo de todos. "Cair com dona Iolanda? Que horror!" Mas dona Iolanda existia e cabia a uns tantos alunos aguentar algum ano com ela.
(Falo, como vocês estão vendo, de um tempo em que os mestres acompanhavam muitas gerações, professores ficavam numa mesma escola por décadas.)
É difícil imaginar um mestre que possa exercer sua competência pedagógica sem autoridade para corrigir erros. Comportamento tem que ser corrigido, assim como caligrafia, apresentação de trabalhos e conteúdos.
Numa época como a nossa, em que ter uma falta ou falha apontada é visto como humilhação, e a repetição e a imitação são um martírio, como ensinar e como aprender?
Impor cânones é visto como autoritarismo. Exigir boa apresentação e cobrar demonstração do que foi aprendido é visto como forma leve de perseguição. A imposição de tarefas não criativas, não inventivas, é tediosa e deveria poder ser evitada.
Assim não se ensina e nem se aprende. Tentativa e erro, repetição, verificação, correção são o caminho para a assimilação.
Para que eu me aproprie de um novo saber, é preciso verificar se o conteúdo (dois e dois são quatro) é correto.
Se isso já foi aprendido, meu saber pode ser colocado à prova, apresentado de forma oral ou por escrito, para verificação.
Professor com medo do aluno, como qualquer ser humano, vai evitar esse desconforto. Vai observar pouco, vai verificar o estritamente necessário, vai fugir do eventual confronto.
Assim não se adquire método de trabalho, não se aprende ordem e conteúdo.
Não se nasce sabendo. Comportamentos se treinam. Num ambiente de medo, o treinamento vira uma série de falhas. Onde domina o medo do erro, onde se evita a falha em vez de corrigi-la, onde se evita o confronto, se aprende pouco.
ANNA VERONICA MAUTNER
Folha de S. Paulo, 4 jan. 2010.

domingo, 2 de janeiro de 2011

O Ter e o Nada

Folha de S. Paulo, 27 dez. 2010

Nomenclatura ou uso?

A UNESP ACABA DE realizar a primeira fase de seu vestibular de 2011. Aplicada no último domingo, a prova de conhecimentos gerais apresentou muitas questões interessantes, que de fato exigem do candidato conhecimentos gerais. Afinal, já está mais do que na hora de desembrutecer o nosso ensino e os nossos alunos, muitas vezes "treinados" apenas para decorar meia dúzia de bobagens, com total desprezo pela efetiva capacidade de leitura e, sobretudo, da percepção do que se lê.
Um fato, no entanto, chamou a atenção: a elaboração de questões que privilegiaram mais a nomenclatura gramatical do que o uso da língua propriamente dito, o que de certo modo entra em choque com o que se apregoa hoje em dia nos estudos linguísticos autoproclamados ultramodernos, pós-modernos, pós-advento do suprassumo da quintessência da modernidade linguística etc. Nesses estudos, costuma-se dizer que se deve desprezar a nomenclatura gramatical e, consequentemente, privilegiar o conhecimento do efetivo uso linguístico.
O leitor habitual deste espaço sabe que fico no meio-termo: nem supervalorizo a nomenclatura, nem a desprezo; quando a emprego, tento explicá-la, traduzi-la. Como consultar um dicionário sem saber o que é um substantivo, um adjetivo, uma preposição? Como saber pontuação sem um mínimo de noção de sintaxe? Como ler um texto clássico sem um mínimo de noção de certos processos da tradição gramatical? Como entender Machado quando o grande escritor diz "Esqueceu-me apresentar-lhe minha mulher" sem um mínimo de noção da regência "clássica" de certos verbos?
O mais interessante de tudo isso é que boa parte de certas teorias sai justamente das universidades cujos vestibulares cobram o oposto do que se prega em seus cursos de letras... O que dizer aos alunos? O que fazer no ensino da língua no ciclo fundamental e no médio? Não teremos passado da hora de falar seriamente sobre isso, sem devaneios ou posturas esquizofrênicas?
Posto isso, vamos a um exemplo do que fez a Unesp domingo. Com base num excerto de "Vidas Secas", de Graciliano Ramos, formulou-se esta questão: "No fragmento apresentado, as formas verbais mais frequentes se enquadram em dois tempos do modo indicativo. Marque a alternativa que indica, pela ordem, o tempo verbal predominante no segundo parágrafo e o que predomina no quinto parágrafo".
No segundo parágrafo do excerto escolhido, o tempo predominante é o pretérito imperfeito do indicativo (recorria, cedia, resmungava, rezingava, engasgava-se, engolia, receava, rendia-se, aceitava etc.); no quinto, é o pretérito perfeito (ajustou, arrependeu-se, deixou, foi, mandou, sentou-se, concentrou-se, distribuiu, realizou, voltou etc.). Até aí, tudo bem, mas... O que significa o predomínio desses tempos em cada uma das passagens?
O mais interessante é que a Fuvest já fez questão "semelhante", a partir da mesma obra (e, salvo engano, de uma parte do mesmo excerto). E no que a questão da Fuvest diferia da feita pela Unesp? Justamente na abordagem. Enquanto esta se limitou a cobrar o conhecimento nomenclatural, aquela quis saber o que o predomínio de certo tempo verbal significa na narrativa.
O imperfeito designa fatos passados corriqueiros, habituais; o perfeito se refere a fatos não duradouros, situados num ponto específico do passado, em geral marcado por expressões temporais precisas ("daquela vez", "no dia seguinte"). Numa narrativa, isso faz toda a diferença. Uma coisa é dizer que a criança passava fome; outra coisa é dizer que ela passou fome. É isso.
(NETO, Pasquale Cipro. Nomenclatura ou uso. Folha de S. Paulo, 18 nov. 2010, p. C2.)
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O ensino da norma culta da língua tem sido muito criticado nos últimos anos. Como disse o professor Pasquale, somos orientados para desprezar "a nomenclatura gramatical" e "privilegiar o conhecimento do efetivo uso linguístico". Tal atitude, sob a minha ótica, tem feito com que formemos alunos totalmente depreparados para utilizar a linguagem em situações formais e incapazes de interpretar um texto escrito. Afinal, noções como as de sujeito, objeto direto, complemento nominal - para ficarmos apenas na Sintaxe - são fundamentais para compreendermos como as ideias foram articuladas para produzir sentido.
Hoje vemos instituições como Fisk e CCAA, famosas pelos seus cursos de inglês, oferecendo, nos grandes centros, cursos de língua portuguesa para empresários. Vemos universidades instituindo aulas de português instrumental para todas as áreas de graduação. Vemos pessoas perdendo oportunidades de emprego devido ao desempenho pífio no ler, escrever e interpretar.
Recentemente, durante minha qualificação de mestrado, na Universidade de São Paulo, ouvi de um dos futuros integrantes da minha banca que um texto bem escrito tem se tornado raridade nas dissertações da instituição (estamos falando, note-se bem, da mais renomada universidade brasileira!). Quando surge um bom exemplo de escrita, o autor é extremamente valorizado, elogiado e incentivado. E isso, cabe lembrar, no curso de Letras, em que supõe-se o domínio do idioma por parte do aluno!

Além do Bem e do Mal


 Há pouco, recebi, por e-mail, a seguinte narrativa:

Alemanha - Início do século XX 
(Esta é uma história real)


Durante uma conferência com vários universitários, um professor da Universidade de Berlim desafiou seus alunos com esta pergunta: 
- Deus criou tudo o que existe?"
Um aluno respondeu com grande certeza:
 - Sim, Ele criou!
- Deus criou tudo?
Perguntou novamente o professor.
- Sim, senhor - respondeu o jovem.
O professor indagou:
- Se Deus criou tudo, então Deus fez o mal? Pois o mal existe, e, partindo do preceito de que nossas obras são um reflexo de nós mesmos, então Deus é mau?
O jovem ficou calado diante de tal resposta e o professor, feliz, se regozijava de ter provado mais uma vez que a fé era uma perda de tempo.
Outro estudante levantou a mão e disse:
- Posso fazer uma pergunta, professor?
- Lógico -  foi a resposta do professor.
O jovem ficou de pé e perguntou:
- Professor, o frio existe?
- Que pergunta é essa? Lógico que existe, ou por acaso você nunca sentiu frio?
Com uma certa imponência o rapaz respondeu:
- De fato, senhor, o frio não existe. Segundo as leis da Física, o que consideramos frio, na realidade é a ausência de calor. Todo corpo ou objeto é suscetível de estudo quando possui ou transmite energia, o calor é o que faz com que este corpo tenha ou transmita energia. O zero absoluto é a ausência total e absoluta de calor, todos os corpos ficam inertes, incapazes de reagir, mas o frio não existe. Nós criamos essa definição para descrever como nos sentimos se não temos calor.
- E existe a escuridão? - Continuou o estudante.
O professor respondeu temendo a continuação do estudante: 
- Existe!
O estudante respondeu:
- Novamente comete um erro, senhor, a escuridão também não existe. A escuridão na realidade é a ausência de luz. A luz pode-se estudar, a escuridão não! Até existe o prisma de Nichols para decompor a luz branca nas várias cores de que está composta, com suas diferentes longitudes de ondas. A escuridão, não!
Continuou:
- Um simples raio de luz atravessa as trevas e ilumina a superfície onde termina o raio de luz. Como pode saber quão escuro está um espaço determinado? Com base na quantidade de luz presente nesse espaço, não é assim?! Escuridão é uma definição que o homem desenvolveu para descrever o que acontece quando não há luz presente.
Finalmente, o jovem perguntou ao professor:
-Senhor, o mal existe?
Certo de que para esta questão o aluno não teria explicação, professor respondeu:
-Claro que sim! Lógico que existe. Como disse desde o começo, vemos estupros, crimes e violência no mundo todo, essas coisas são do mal!
Com um sorriso no rosto o estudante respondeu:
-O mal não existe, senhor, pelo menos não existe por si mesmo. O mal é simplesmente a ausência do bem, é o mesmo dos casos anteriores, o mal é uma definição que o homem criou para descrever a ausência de Deus. Deus não criou o mal. Não é como a fé ou como o amor, que existem como existem o calor e a luz. O mal é o resultado da humanidade não ter Deus presente em seus corações. É como acontece com o frio quando não há calor, ou a escuridão quando não há luz.
Por volta dos anos 1900, este jovem foi aplaudido de pé, e o professor apenas balançou a cabeça, permanecendo calado… Imediatamente o diretor dirigiu-se àquele jovem e perguntou qual era seu nome.
E ele respondeu:
- ALBERT EINSTEIN, senhor!"
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Normalmente, não me oponho a parábolas. E até gosto de muitas delas. Não suporto, porém, quando são usadas para transmitir ideias que se organizam em torno de uma série de falácias. Muitos desses textos passam a impressão de transmitir algo valioso, pois quase sempre acabamos por concordar com as noções que passam. É o caso do exemplo acima, que, ardilosamente, manipula o leitor.
Em primeiro lugar, a ideia central baseia-se num falso "argumento de autoridade". Ao usar o nome do renomado físico Albert Einstein, a história (e as ideias nela contidas) adquire credibilidade e impõe respeito. No entanto, é impossível que o fato tenha acontecido com o cientista. Impossível porque Einsten concluiu a graduação em Física em 1900. E na Suíça, não em Berlim!
O argumento de autoridade é normalmente usado quando citamos uma pessoa de renomada sabedoria e especialista na área de discussão que possui o mesmo ponto de vista que nós. São óbvias as implicações argumentativas no sentido de se reforçar uma tese e de se convencer um interlocutor. No entanto, como vimos, o argumento é inválido, pois não factual. Por isso é falacioso.
Quer um exemplo de argumento de autoridade? Tenho um que, à luz da discussão religiosa, tem de ser aceita pelos crentes, pois parte da Bíblia, vista como a "palavra de Deus". Por meio dela, é possível criarmos um contra-argumento para a premissa de que Ele não criou o Mal: “Eu formo a luz, e crio as trevas, eu faço a paz, e crio o mal; eu, o Senhor, faço todas essas coisas”(Is 45:7).
Além disso, é longa a discussão sobre a crença de Einstein em Deus. Ao menos no Deus pertencente à tradição judaico-cristã. Foi divulgada, recentemente, uma carta escrita, em 1954, pelo pai da Teoria da Relatividade com o seguinte trecho: “A palavra Deus para mim é nada mais que a expressão e produto da fraqueza humana, a Bíblia é uma coleção de lendas honradas, mas ainda assim primitivas, que são bastante infantis” . É, no entanto, reconheço, um assunto polêmico e não pretendo me aprofundar nele, porque isso não contempla, propriamente, o mérito da questão.
Outro problema do texto é de base conceitual. O autor anônimo, astutamente, mistura definições conceituais da Física, como as de "frio" e "luz", com algo do qual essa ciência não se ocupa: as definições abstratas de Bem e de Mal. Valores estes que são imateriais, subjetivos e, muitas vezes, relativos. Qualquer aluno de Ensino Médio sabe que a Física é a ciência que estuda a natureza e seus fenômenos em seus aspectos mais gerais. Ao dizer que as  ideias de frio e de escuridão são idênticas às de Bem e Mal corresponde ao que os retóricos chamam de "analogia imprópria". Mais uma falácia.
Discutir a natureza do Bem e do Mal é um tema mais filosófico que científico. Posso usar um raciocínio lógico para tentar mostrar que o Bem transcende Deus. O filósofo Julian Baggini, ao discutir a possibilidade de moralidade sem Deus, em O porco filósofo, diz que, em geral, sabemos diferenciar o que é bom do que é ruim. Justamente por sabermos o que é bom, podemos dizer que Deus é bom. Por outro lado, se Deus defendesse a tortura sem sentido, saberíamos que Ele não é bom. E isso é uma prova de que podemos entender a narureza do Bem independente de Deus.
Ademais, a oposição Bem x Mal é um fenômeno histórico, dado ter florescido no séc. III com um tal de Maniqueu (daí o termo maniqueísmo para respresentar a eterna luta entre o Bem e o Mal). Um ótimo exemplo dessa discussão está em A viagem de Théo, de Catherine Clément. Ela conta que hoje é um lugar-comum dizer que Jesus é Deus feito homem. No entanto, isso não era óbvio para os primeiros cristãos. Deus feito homem?! Qual era a parte do homem e qual era a parte de Deus em Jesus? Se a natureza humana era cheia de defeitos, o que prevaleceria em Cristo? Na tentativa de resolver esse impasse, alguns teólogos passarm a afirmar, então, que o homem é o mal e Deus é o bem.
Por fim, uma pessoa religiosa que compra a ideia de que o Mal não existe não pode, portanto, crer no Demônio. Mas, se ele é visto como a encarnação do Mal (assim como Cristo é a encarnação de Deus), como aceitar o raciocínio exposto sem se contradizer?! O Diabo seria uma invenção do homem? Então, porque Deus também não poderia sê-lo?