quinta-feira, 10 de setembro de 2009

Que mané Acordo!

" [a] imprensa, (...) ainda insiste em falar das 'mudanças na língua', quando se refere à reforma (sim, reforma, e não acordo - que diabo de acordo é esse, ao qual só o Brasil aderiu?)."
Pasquale Cipro Neto

Difícil

CONTARDO CALLIGARIS


Casamentos possíveis



UMA DAS boas razões para se casar é a seguinte: uma vez casados, podemos culpar o casal por boa parte de nossas covardias e impotências.
O marido, por exemplo, pode responsabilizar mulher, filhos e casamento por ele ter desistido de ser o aventureiro que ainda dorme, inquieto, em seu peito. A decepção consigo mesmo é menos amarga quando é transformada em acusação: "Você está me impedindo de alcançar o que eu não tenho a coragem de querer".
Essas recriminações, que disfarçam nossos fracassos, não são unicamente masculinas.
Certo, os homens são quase sempre assombrados por impossíveis devaneios de grandeza -como se algum destino extraordinário e inalcançável já tivesse sido sonhado para eles (e foi mesmo, geralmente pelas suas mães). Diante de tamanha expectativa, é cômodo alegar que o casal foi o impedimento.
As mulheres, inversamente, seriam mais pé-no-chão, capazes de achar graça nas serventias do cotidiano. Por isso mesmo, aliás, elas encarnariam facilmente, para os homens, os limites que a realidade impõe aos sonhos que eles não têm a ousadia de realizar.
Agora, as mulheres também sonham. Há a dona de casa que acusa o marido, os filhos e o casamento por ela ter desistido de outra vida (eventualmente, profissional), que teria sido fonte de maiores alegrias. E há, sobre tudo, para muitas mulheres, um sonho romântico de amor avassalador e irresistível, do qual, justamente, elas desistem por causa de marido, filhos e casamento.
Com isso, d. Quixote se queixa de que sua mulher esconde seus livros de cavalaria e o impede de sair à cata de moinhos de vento. E Madame Bovary se queixa de que seu marido esconde seus livros de amor e a impede de sair pelos bailes, à cata de paixões sublimes e elegantes.
Pena que raramente eles consigam ter os mesmos sonhos. Um problema é que os sonhos dos homens podem ser de conquista, mas dificilmente de amor, pois eles derivam diretamente das esperanças que as mães depositam em seus filhos, e, claro, uma mãe pode esperar que seu rebento varão seja um dom-juan, mas raramente esperará ser substituída por outra mulher no coração do filho.
Não pense que esse fogo cruzado de acusações seja causa recorrente de divórcio. Ao contrário, ele faz a força do casamento, pois, atrás da acusação ("É por sua causa que deixei de realizar meus sonhos"), ouve-se: "Ainda bem que você está aqui, do meu lado, fornecendo-me assim uma desculpa -sem você, eu teria de encarar a verdade, e a verdade é que eu mesmo não paro de trair meus próprios sonhos".
Ou seja, em geral, a gente casa com a pessoa "certa": a que podemos culpar por nossos fracassos. E essa, repito, não é uma razão para separar-se. Ao contrário, seria uma boa razão para ficar juntos.
Quando a coisa aperta, não é porque sonhos e devaneios teriam sido frustrados "por causa do outro", mas pelas "cobranças", que, elas sim, podem se revelar insuportáveis.
Um exemplo masculino. Uma mulher me permite acreditar que é por causa dela que eu não consigo ser o que quero: graças a Deus, não posso mais tentar minha sorte no garimpo agora que tenho esposa, filhos e tal. Até aqui, tudo bem. Como compensação pelos sonhos dos quais eu desisti, passo as tardes de domingo afogando num sofá e soltando foguetes quando meu time marca um gol, mas eis que, no meio do jogo, minha mulher me pede para brincar com as crianças ou para ir até à padaria e comprar o necessário para o café - logo a mim, que deveria estar explorando as fontes do Nilo ou negociando a paz entre os senhores da guerra da Somália.
Essa cobrança, aparentemente chata, poderia salvar-me da morosa constatação do fracasso de meus sonhos e das ninharias com as quais me consolo. Talvez, aliás, ela me ajudasse a encontrar prazer e satisfação na vida concreta, nos afetos cotidianos. Mas não é o que acontece: o que ouço é mais uma voz que confirma minha insuficiência.
À cobrança dos sonhos dos quais desisti acrescenta-se a cobrança de quem foi (ou é) "causa" de minha desistência e razão de meu "sacrifício": "Olhe só, mesmo assim, ela não está satisfeita comigo." Em suma, não presto, nunca, para mulher alguma -nem para a mãe que queria que eu fosse herói nem para a esposa para quem renunciei a ser herói. E a corda arrebenta.
O ideal seria aceitar que nosso par nos acuse de seus fracassos e, além disso, não lhe pedir nada. Difícil.
 
Folha de S. Paulo, 10/9/09

A impunidade da ignorância

CLÓVIS ROSSI


Pelo choque que me causou, repasso ao leitor o essencial de artigo do escritor espanhol Rafael Argullol para "El País".
Começa relatando que alguns dos melhores professores universitários espanhóis estão se aposentando "precipitadamente". Cita dois motivos: "o desinteresse intelectual dos estudantes e a progressiva asfixia burocrática da vida universitária".
Explico o sentimento de choque: não sei se a situação ocorre também no Brasil, mas sei que o caldo de cultura descrito por Argullol é parecido no Brasil (como, aliás, no resto do mundo).
Os professores, escreve Argullol, "se sentem mais ofendidos pelo desinteresse [dos estudantes] do que pela ignorância". Acrescenta que um amigo lhe disse que "os estudantes universitários eram o grupo com menos interesse cultural da nossa sociedade, e isso explicava que não lessem a imprensa escrita, a não ser que fosse de graça, que não buscassem livros fora das bibliografias obrigatórias, ou que não assistissem a conferências se não fossem premiados com créditos úteis para serem aprovados".
É o triunfo do que o escritor chama de "utilitarismo". Os estudantes são adestrados na "impunidade ante a ignorância", porque o conhecimento é um "caminho longo e complexo" e perde para o imediatismo da posse instantânea.
Não tenho informações para afirmar se essa situação ocorre também no Brasil. É evidente, em todo o caso, que há ou houve recentemente uma discussão sobre a asfixia burocrática.
Gilberto Dimenstein já comentou, tempos atrás, o fato de que professores de universidades públicas estavam se aposentando cedo e passando ao ensino privado.
O utilitarismo e o predomínio do individual são características contemporâneas globais. Estamos nós também cevando "a impunidade ante a ignorância"? 
Folha de S. Paulo, 8/9/09