sábado, 17 de abril de 2010

No Nada

Malefícios da publicidade

Ótimo para uma proposta de redação!

Pequenas pretensões

IPOD, IPAD, iPhone, Bluetooth: não me perguntem a diferença entre uma coisa e outra. Quase nunca uso o celular e acho isso uma felicidade.
Minha reação varia entre pena, horror, medo e desprezo quando vejo aquelas filas de fanáticos esperando a abertura da loja onde comprarão o mais recente brinquedo eletrônico, que, daqui a pouco, estará completamente obsoleto. Esperar continua a ser uma grande virtude. Eu teria, sem dúvida, me dado mal se tivesse cedido ao impulso de comprar uma TV de plasma há alguns anos atrás; parece que não dá muito certo e, de todo modo, barateia com o passar do tempo.
Em matéria de eletrônicos, minha única política tem sido a de usar até que quebrem. Aí, é claro, não chego ao extremo de mandar para o conserto: isso seria xiita nos dias que correm.
Como meu velho toca-discos ainda funciona, posso até saborear a secreta vingança de ver o vinil voltando à moda; no túmulo, talvez, outros motivos existirão para quem me encontrar sorrindo. Leio, entretanto, meu horóscopo do dia e corrijo o andor deste artigo.
"Capricórnio. Hoje pode ser um daqueles dias em que você ri por dentro da miséria alheia, dos erros e das cabeçadas, que outros, mais empolgados, crentes e ingênuos, cometeram, tentando acertar e viver melhor. Tire esse dedo da cara dos outros e não seja chato achando que sabe tudo." Certo. Tiro o dedo da cara dos outros e deixo-o livre, quem sabe, para tocar algum dia a tela sensível de um iPad, se tal aparelho vier a cair nas minhas mãos.
Por enquanto, a única coisa que vi parecida foi o Kindle, que um amigo trouxe dos Estados Unidos. A vontade de comprar veio na hora; pouco tempo depois, sumiu. O livro eletrônico da Amazon me pareceu bonitinho, elegante, e suas vantagens práticas (em viagem, por exemplo) não me deixaram indiferente. Mas espero.
E, enquanto espero, topo com um novo argumento a favor do livro tradicional. Não aquelas elegias ao cheiro do papel, à rugosidade da encadernação etc., que tendem a esquecer as folhas que se rasgam, que se despregam da lombada, que indelevelmente registram (compro muito livro usado) as marcas de esferográfica, além da coriza de seus antigos donos.
Leio, na edição traduzida do "New York Times", que a Folha trouxe encartada na segunda-feira, um problema mais grave. Coisas como o Kindle e o iPad acabam com as capas dos livros.
Desaparece, diz Motoko Rich na sua reportagem, o prazer bisbilhoteiro de ver o que a outra pessoa está lendo no avião, no metrô ou na sala de espera.
Desaparece também a vaidade de mostrar ao próximo que livro você está lendo. A nova-iorquina Bindu Wiles, por exemplo, ostentou durante um bom tempo, em suas viagens no metrô, o romance "Anna Karenina", de Tolstói. Orgulhava-se disso, e não haverá Kindle folheado a ouro e cravejado de cristais Swarowski que substitua essa pequena pretensão.
Mas há soluções para tudo. Um site chamado "librarything" funciona como uma espécie de Facebook só para leitores de livros. Você põe ali a lista dos livros que andou lendo (o que é um bom registro, aliás, para depois de uns anos perceber o quanto esqueceu das próprias leituras).
A lista inclui automaticamente a capinha do livro e mostra quantas outras pessoas o leem também. É claro que daí surgem indicações de livros parecidos, salas de discussão, tudo o que você quiser.
O caso da americana Bindu Wiles, que gosta de aparecer com um Tolstói a caminho do trabalho, leva a pensar em outro fenômeno. Costumamos achar que toda novidade tecnológica contribui para dissolver a esfera da vida privada.
Celulares, como se sabe, não respeitam a intimidade de ninguém. Eis que o livro eletrônico e também os iPods tornam o ato de ler ou de ouvir música muito mais secreto do que era antigamente. Alguns séculos atrás, só se lia em voz alta; música era acontecimento público. Agora, também o cinema e a televisão se individualizaram em telas portáteis, como joguinhos eletrônicos.
Lamento pelas capas dos livros, tantas vezes lindas. Mas, da oração protestante à leitura de um gibi, é a vida privada que não cessa de se fortalecer ao longo do tempo; talvez todas as invasões de "reality shows" e bisbilhotices na internet não passem, na verdade, dos últimos gritos desesperados de uma coisa prestes a desaparecer: a vida em comum.


COELHO, Marcelo. Leituras privadas, livros públicos. Folha de S. Paulo, 14 abr. 2010.

quarta-feira, 14 de abril de 2010

segunda-feira, 5 de abril de 2010

Um cão, apenas

Hoje estava elaborando uma proposta de redação para o 3º ano e, subitamente, me lembrei de um conto da Cecília Meireles. Havia lido esse texto uma única vez em minha infância, há muito tempo, e nunca me esqueci dele. 
Acabei por inseri-lo na minha proposta:


Subidos, de ânimo leve e descansado passo, os quarenta degraus do jardim — plantas em flor, de cada lado; borboletas incertas; salpicos de luz no granito —, eis-me no patamar. E a meus pés, no áspero capacho de coco, à frescura da cal do pórtico, um cãozinho triste interrompe o seu sono, levanta a cabeça e fita-me. E um triste cãozinho doente, com todo o corpo ferido; gastas, as mechas brancas do pelo; o olhar dorido e profundo, com esse lustro de lágrima que há nos olhos das pessoas muito idosas. Com um grande esforço, acaba de levantar-se. Eu não lhe digo nada; não faço nenhum gesto. Envergonha-me haver interrompido o seu sono. Se ele estava feliz ali, eu não devia ter chegado. Já que lhe faltavam tantas coisas, que ao menos dormisse: também os animais devem esquecer, enquanto dormem...
Ele, porém, levantava-se e olhava-me. Levantava-se com a dificuldade dos enfermos graves: acomodando as patas da frente, o resto do corpo, sempre com os olhos em mim, como à espera de uma palavra ou de um gesto. Mas eu não o queria vexar nem oprimir. Gostaria de ocupar-me dele: chamar alguém, pedir-lhe que o examinasse, que receitasse, encaminhá-lo para um tratamento... Mas tudo é longe, meu Deus, tudo é tão longe. E era preciso passar. E ele estava na minha frente, inábil, como envergonhado de se achar tão sujo e doente, com o envelhecido olhar numa espécie de súplica.
Até o fim da vida guardarei seu olhar no meu coração. Até o fim da vida sentirei esta humana infelicidade de nem sempre poder socorrer, neste complexo mundo dos homens.
Então, o triste cãozinho reuniu todas as suas forças, atravessou o patamar, sem nenhuma dúvida sobre o caminho, como se fosse um visitante habitual, e começou a descer as escadas e as suas rampas, com as plantas em flor de cada lado, as borboletas incertas, salpicos de luz no granito, até o limiar da entrada. Passou por entre as grades do portão, prosseguiu para o lado esquerdo, desapareceu.
Ele ia descendo como um velhinho andrajoso, esfarrapado, de cabeça baixa, sem firmeza e sem destino. Era, no entanto, uma forma de vida. Uma criatura deste mundo de criaturas inumeráveis. Esteve ao meu alcance, talvez tivesse fome e sede: e eu nada fiz por ele; amei-o, apenas, com uma caridade inútil, sem qualquer expressão concreta. Deixei-o partir, assim, humilhado, e tão digno, no entanto; como alguém que respeitosamente pede desculpas de ter ocupado um lugar que não era o seu.
Depois pensei que nós todos somos, um dia, esse cãozinho triste, à sombra de uma porta. E há o dono da casa e a escada que descemos, e a dignidade final da solidão.
MEIRELES, Cecília. Janela mágica. São Paulo, Moderna, 1982, p. 16-17.

Páscoa