segunda-feira, 31 de março de 2008

Detrás do rosto

Acho que mais me imagino
do que sou
ou o que sou não cabe
no que consigo ser
..............................e apenas arde
detrás desta máscara morena
que já foi rosto de menino. [...]
Você vai rir se lhe disser
que estou cheio de flor e passarinho
que nada
do que amei na vida acabou:
...............................e mal consigo andar
...............................tanto isso pesa.

Ferreira Gullar

Intertextualidade

Vi esse quadrinho do Larte hoje na Folha de São Paulo.


Imediatamente me lembrei dos versos de Pessoa que, inclusive, postei em janeiro:
"Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.
(...)
Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo
Não estão nesta hora gênios-para-si-mesmos sonhando?
Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas -
Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas -,
E quem sabe se realizáveis,
Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?
O mundo é para quem nasce para o conquistar
E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.
Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo,
Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,
Ainda que não more nela;
Serei sempre o que não nasceu para isso;
Serei sempre só o que tinha qualidades;
Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta,
E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,
E ouviu a voz de Deus num poço tapado.
Crer em mim? Não, nem em nada."

domingo, 30 de março de 2008

Procura-se um amigo

Não precisa ser homem, basta ser humano, basta ter sentimentos, basta ter coração. Precisa saber falar e calar, sobretudo saber ouvir. Tem que gostar de poesia, de madrugada, de pássaro, de sol, da lua, do canto, dos ventos e das canções da brisa. Deve ter amor, um grande amor por alguém, ou então sentir falta de não ter esse amor.. Deve amar o próximo e respeitar a dor que os passantes levam consigo. Deve guardar segredo sem se sacrificar.
Não é preciso que seja de primeira mão, nem é imprescindível que seja de segunda mão. Pode já ter sido enganado, pois todos os amigos são enganados. Não é preciso que seja puro, nem que seja todo impuro, mas não deve ser vulgar. Deve ter um ideal e medo de perdê-lo e, no caso de assim não ser, deve sentir o grande vácuo que isso deixa. Tem que ter ressonâncias humanas, seu principal objetivo deve ser o de amigo. Deve sentir pena das pessoa tristes e compreender o imenso vazio dos solitários. Deve gostar de crianças e lastimar as que não puderam nascer.
Procura-se um amigo para gostar dos mesmos gostos, que se comova, quando chamado de amigo. Que saiba conversar de coisas simples, de orvalhos, de grandes chuvas e das recordações de infância. Precisa-se de um amigo para não se enlouquecer, para contar o que se viu de belo e triste durante o dia, dos anseios e das realizações, dos sonhos e da realidade. Deve gostar de ruas desertas, de poças de água e de caminhos molhados, de beira de estrada, de mato depois da chuva, de se deitar no capim.
Precisa-se de um amigo que diga que vale a pena viver, não porque a vida é bela, mas porque já se tem um amigo. Precisa-se de um amigo para se parar de chorar. Para não se viver debruçado no passado em busca de memórias perdidas. Que nos bata nos ombros sorrindo ou chorando, mas que nos chame de amigo, para ter-se a consciência de que ainda se vive.

Vinícius de Moraes

quinta-feira, 27 de março de 2008

20 coisas que vão fazer falta quando a "indesejada das gentes" chegar

1. Torta de morango da D. Terezinha;
2. Curar ressaca com banho quente, ouvindo Pavarotti, cantando Nessun Dorma, na maior altura;
3. Correr no clube com Frank Sinatra no Mp3;
4. O sol batendo "na janela do meu quarto";
5. Descobrir poesia nas coisas e nas palavras;
6. Observá-la nua dormir o seu sono morno;
7. Digo, Oreia,Tatu e Foca na mesa de bar;
8. Chorar nos finais do Anos Incríveis;
9. Caminhar lendo a piauí;
10. Passar o dedo na pontinha do travesseiro (cada louco com sua mania, pô!);
11. Uma cafeteria. Um romance nas mãos. Um capuchino;
12. Chope cremoso;
13. Você dizendo "Eu te amo";
14. Alunos que aprenderam a amar literatura;
15. Galope. Estrada de terra. Vento no rosto. Liberdade...;
16. Pizza;
17. Acordar: café;
18. Skol Beats com limão dentro;
19. Preparar uma massa tomando vinho (tinto seco!);
20. O Jombatista ("Deste-nos pobreza e amor. A mim me deste / A suprema pobreza: o dom da poesia, e a capacidade de amar / Em silêncio.")

Se isso servia pro séc. XIX, imagine pros dias de hoje!

"A soma de barulho que uma pessoa pode suportar está na razão inversa da sua capacidade mental."

Schopenhauer


"Sendo assim, até o dia fatal de cerrarmos os olhos
não devemos dizer que um mortal foi feliz de verdade
antes dele cruzar as fronteiras da vida inconstante
sem jamais ter provado o sabor de qualquer sofrimento!"
(Sófocles. Édipo Rei, vv. 1807-1810)

If I were a Carpenter - Tim Hardin

Descobri essa música hoje.
Tim Hardin (1941-1980) era um cantor de música folk. A canção é a cara dos anos 60/70. Ele, inclusive, a tocou no lendário festival de Woodstock. A composição é de 1967. Viciado em heróina, morreu de overdose.


If I were a carpenter
and you were a lady,
Would you marry me anyway?
Would you have my baby?

If a tinker were my trade
would you still find me,
carrin' the pots I made,
followin' behind me.

Save my love through loneliness,
Save my love for sorrow,
I'm given you my onliness,
Come give your tomorrow.

If I worked my hands in wood,
Would you still love me?
Answer me babe, "Yes I would,
I'll put you above me."

If I were a miller
at a mill wheel grinding,
would you miss your color box,
and your soft shoe shining?

If I were a carpenter
and you were a lady,
Would you marry me anyway?
Would you have my baby?
Would you marry anyway?
Would you have my baby?

quarta-feira, 26 de março de 2008

Atualíssimo

Modern love is no such thing,
As what those ancient poets sing:
A fire celestial, chaste, refined,
Conceived and kindled in the mind;
Which, having found an equal flame,
Unites, and both become the same,
In different breasts together burn,
Together both, to ashes turn.
But women now feel no such fire,
And only know the gross desire.

Jonathan Swift (Cadenus and Vanessa, 1726)

"Odeio quem me rouba a solidão sem em troca me oferecer verdadeiramente companhia". (Nietzsche)


terça-feira, 25 de março de 2008

Antidepressivo

CONSOLO NA PRAIA

Vamos, não chores...
A infância está perdida.
A mocidade está perdida.
Mas a vida não se perdeu.

O primeiro amor passou.
O segundo amor passou.
O terceiro amor passou.
Mas o coração continua.

Perdeste o melhor amigo.
Não tentaste qualquer viagem.
Não possuis casa, navio, terra.
Mas tens um cão.

Algumas palavras duras,
em voz mansa, te golpearam.
Nunca, nunca cicatrizam.
Mas, e o humour?

A injustiça não se resolve.
À sombra do mundo errado
murmuraste um protesto tímido.
Mas virão outros.

Tudo somado, devias
precipitar-te, de vez, nas águas.
Estás nu na areia, no vento...
Dorme, meu filho.

Carlos Drummond de Andrade

Ê, Brasilzão...

De direitos e renúncias

SÃO PAULO - Você certamente já ouviu ou leu recomendações como estas: "Fique calmo e não corra"; "deixe suas mãos visíveis"; "não faça movimentos bruscos".
Lembra? Claro. São as recomendações da polícia para o caso de você trombar com bandidos. Agora, saiu uma nova versão. As recomendações são as mesmas, mas servem para o inverso, ou seja, para o caso de você trombar com a polícia.
Constarão de 1 milhão de folhetos a serem distribuídos por meio da Secretaria Especial de Direitos Humanos do governo federal. Há na iniciativa dois problemas.
Primeiro: equipara policiais a bandidos, como agentes a serem igualmente temidos. Pior: reforça a incontrolável tendência do poder público brasileiro, em todos os seus níveis, de fugir dos problemas, pedindo aos cidadãos que se eduquem para renunciar a direitos.
Menos mal que Rosiana Queiroz, coordenadora nacional do Movimento Nacional de Direitos Humanos, leu corretamente a iniciativa: "A modificação de uma abordagem policial depende de repensar a polícia, sua estrutura, a concepção militaresca, a forma de selecionar policiais, formá-los, orientá-los e dar um bom salário a eles". Mais: "Precisa fazer uma investigação sobre quais policiais estão envolvidos com o crime organizado", disse Rosiana a Eduardo Scolese, da Folha.
Bingo. Pena que a tese de Rosiana seja muito difícil e trabalhosa para implementar. E o poder público foge de tudo o que é difícil. Já que não pode educar policiais a respeitar normas de conduta e direitos individuais básicos, trata de educar o público a não irritar policiais.
Como tampouco pode educar/ prender/punir bandidos, educa a população a não reagir a eles.
Ou seja, educa-a a renunciar a bens e ao direito de ir e vir, sob pena de perder ambos e mais a vida. É um país muito medíocre.

Clóvis Rossi, Folha de São Paulo, 25/3/2008

domingo, 23 de março de 2008

Testamento

O que não tenho e desejo
É que melhor me enriquece.
Tive uns dinheiros - perdi-os...
Tive amores - esqueci-os.
Mas no maior desespero
Rezei: ganhei essa prece.

Vi terras da minha terra.
Por outras terras andei.
Mas o que ficou marcado
No meu olhar fatigado,
Foram terras que inventei.

Gosto muito de crianças:
Não tive um filho de meu.
Um filho!... Não foi de jeito...
Mas trago dentro do peito
Meu filho que não nasceu.

Criou-me, desde eu menino
Para arquiteto meu pai.
Foi-se-me um dia a saúde...
Fiz-me arquiteto? Não pude!
Sou poeta menor, perdoai!

Não faço versos de guerra.
Não faço porque não sei.
Mas num torpedo-suicida
Darei de bom grado a vida
Na luta em que não lutei!

Manuel Bandeira

Feliz Páscoa!

sábado, 22 de março de 2008

sexta-feira, 14 de março de 2008

quinta-feira, 13 de março de 2008

Da série "Samuel na cozinha": Pão de Batata com Frango


1. Ingredientes:

a) Fermento básico:
- 1/2 xíc. (chá) de água morna;
- 30g de fermento biológico;
-1 pitada de açúcar;
- 1/2 xíc. (chá) de farinha de trigo.

b) Massa:
- 2 batatas grandes;
- 1 1/2 xíc. (chá) cebola picada;
- 4 colh. (sopa) de manteiga;
- 1/3 xíc. (chá) de açúcar;
- 2 1/2 colh. (chá) de sal;
- 1/4 xíc. (chá) de água morna;
- 2 ovos;
- 5 xíc. (chá) de farinha de trigo;
- 1 gema para pincelar;
- Salsinha desidratada.

c) Recheio:
- 1 kg de peito de frango desfiado;
- 4 dentes de alho;
- 1/2 xíc. (chá) de manteiga;
- 2 cebolas picadas;
- 2 colh. (chá) de sal;
- 1 colh. (chá) de erva-doce.

2. Preparo:

Faça o fermento básico, misture todos os ingredientes e reserve.
Massa:
Cozinhe as batatas, esprema e reserve. Refogue a cebola em 1 colh. (sopa) de manteiga.
Numa tigela, misture o sal, a manteiga restante e a batata. Adicione a água, os ovos e mexa. Junte o fermento básico e a cebola refogada. Acrescente a farinha, aos poucos, e sove a massa até ficar elástica. Forme uma bola, ponha numa tigela untada, cubra e deixa crescer por 45 min.
Pegue porções da massa, abra em um círculo e coloque um pouco de recheio. Feche e modele as bolinhas.
Coloque numa assadeira untada e deixe crescer por 30 min.
Pincele os pães com a gema e polvilhe a salsinha desidratada.
Asse em forno pré-aquecido (fogo médio) por 35 min.
Recheio:
Refogue a cebola e o alho na manteiga. Junte os demais ingredientes. Cozinhe até o frango ficar macio. Espere esfriar e recheia a massa. Você pode, em cada disco, jogar um pouco de azeite no recheio e ainda colocar um pouco de catupiry. Fica mais gostoso.




Eu fico assim sem você


Viajar

"Vi um monte de lugares exóticos, no meu trabalho e em todas as minhas viagens. Mas o lugar que ainda quero ver é o que está nos olhos de alguém. Sabe como é: viaje menos, veja mais."

Elvis Costello

quarta-feira, 12 de março de 2008

"Charlie Brown"- Valentine's Day

Como eu te amo


"Como eu te amo.
Vou contar as formas:
Eu te amo até a profundidade, largura e altura que minha alma pode alcançar
Quando sentindo longe dos olhos pelo objetivo de existir e de graça divina.
Eu te amo ao nível da necessidade mais silenciosa de cada dia,
Ao sol e a luz da vela.
Eu te amo livremente como os homens lutam pelo direito.
Eu te amo puramente como eles se afastam do elogio.
Eu te amo como a paixão existente em minhas velhas mágoas
E com a fé da minha infância.
Eu te amo com amor que eu parecia ter perdido com meus entes perdidos.
Eu te amo com a respiração, sorrisos, lágrimas de toda minha vida.
E, se Deus quiser, eu te amarei melhor após a morte."

Perdas


terça-feira, 11 de março de 2008

"In to the wild"


Gostei. Principalmente pelos atores. Belas e honestas interpretações.
Na natureza selvagem (EUA, 2007) é baseado em uma história real e dirigido por um dos raros grandes atores em atividade: Sean Penn. O filme refaz a trajetória de Chris McCandless (Emile Hirsch) que, após terminar a faculdade, resolve largar tudo, cair na estrada e ir ao Alasca. De lá, ele não volta mais.
A atuação de Hirsch tem sido bastante elogiada, mas, pra mim, quem rouba a cena são mesmo os coadjuvantes: o casal de hippies, a jovem cantora, o velho solitário, dão uma humanidade irresistível e triste ao filme.
Impossível não associá-lo à máxima latina fugeret urbem, sequire naturam ("fugir da cidade, seguir a natureza"). Uso muito essa citação quando ensino sobre o Neoclassicismo em minhas aulas de Literatura.
O neoclássicos resgatam, na poesia, a visão grega de que a natureza é exemplo de perfeição e harmonia e que, portanto, devemos nos espelhar nela; imitá-la para nos tornarmos melhores e mais felizes.
Essa nostalgia pela vida no campo é reavivada por filósofos como Rosseau e sua (que, na verdade, nem é dele) "teoria do bom selvagem": o homem é bom por natureza, mas é corrompido pela cidade ou, equivale dizer, pela sociedade. É preciso que voltemos ao nosso estado natural.
Isso será um prato cheio para os românticos do séc. XIX. A natureza é extremamente idealizada. Basta ler, por exemplo, Os sofrimentos do jovem Werther, de Goethe. A natureza é extensão do próprio "eu". Ela varia segundo suas alegrias ou tristezas.
Digo isso porque o filme cita um poema de Byron (o protótipo do escritor romântico) e também porque existe um quê de filosofia romântica nos autores tão admirados pelo protagonista: Jack London e Henry Thoreau.
Nós todos, geralmente, também temos essa visão idealizada da vida no campo. Como se fosse a solução para as nossas angústias ou alívio para o cotidiano massacrante e imediatista da civilização ocidental, cada vez mais urbana.
Ora, quem nunca, na juventude, quis largar tudo e correr o mundo? Ser um mochileiro e percorrer a Europa? Viver numa comunidade hippie? É sintomático que exista uma comunidade no Orkut intitulada: "Se nada der certo, eu largo tudo e viro hippie". É o ideal romântico de liberdade. Um sentimento iconoclasta contra as instituições estabelecidas que nos ensinam que devemos estudar, trabalhar, casar, ter filhos e pagar os impostos.
O caminho de Chris McCandless é um caminho de autoconhecimento, de iluminação. É nele que ele busca respostas para o sentido da vida. Pena é que as tenha encontrado quando era tarde demais.
Nós sempre buscamos a felicidade ou a projetamos em um lugar que está distante de nós: "eu serei feliz quando estiver naquela praia", "eu serei feliz quando atingir o pico daquela montanha", "eu serei feliz quando ganhar muito dinheiro" ou "eu serei feliz quando tiver aquela mulher". Nos esquecemos de ser felizes no aqui e no agora. Nos esquecemos de olhar em torno e buscar a felicidade que está bem aqui do nosso lado.

Acho que o crítico de cinema da Veja, Isabela Boscov, pode dizer melhor do que eu:

"Em 1990, depois de se formar na faculdade com notas que facilmente o credenciariam a cursar direito na Universidade Harvard, o jovem Christopher McCandless doou todo o seu dinheiro – 24 000 dólares – a uma instituição de caridade, encheu uma mochila, entrou em seu carro velho e nunca mais foi visto pela família. Nos primeiros meses, enviou a eles um ou outro cartão-postal. Depois, nem isso. Os McCandless só vieram a saber novamente de seu filho em setembro de 1992, por meio de um relatório de autópsia: era de Christopher o corpo encontrado, já em avançado estado de decomposição, num ônibus velho que servia de abrigo a aventureiros no meio do Alasca. O que Christopher almejava com sua vida de andarilho e por que ele sucumbira durante a temporada como ermitão no Alasca foram as perguntas que o escritor Jon Krakauer começou a se fazer obsessivamente na ocasião. Krakauer, que também atravessara um período de isolamento radical na juventude, primeiro pesquisou a aventura e morte de Christopher para um artigo.
Não foi o bastante para purgar sua inquietação. Ele refez então o percurso tortuoso do rapaz pelo país, entrevistou as pessoas com quem ele cruzara, e nas quais deixara impressões profundas, e ponderou os pequenos azares que culminaram em seu fim solitário. O saldo foi um livro quase hagiográfico na forma como identifica em Christopher um idealismo inflexível e uma coragem ilimitada na busca por seu modelo de pureza. Mais equilibrado, e mais comovente, é o filme homônimo, Na Natureza Selvagem (Into the Wild,Estados Unidos, 2007), que estréia nesta sexta-feira no país.
Dirigida por Sean Penn, esta adaptação destila o espírito que moveu Christopher McCandless: uma espécie de ideal americano de santidade, nascido do cruzamento do puritanismo com o fascínio pela vastidão do território. Um menino complicado e obstinado, filho de pais idem, Christopher desde pequeno revelara talento incomum para viver na natureza. Em algum ponto, passou a enxergar nela a resposta para sua rejeição às faltas dos pais e a seu suposto materialismo. Leitor fanático de Jack London e Henry Thoreau, grandes romantizadores da vida selvagem, meio que se convenceu de que retornar ao estado mais primitivo, sem dinheiro, sem bens e vivendo do que a natureza pudesse lhe oferecer, o faria exterminar seu falso "eu". Desprezou, porém, a lógica que fez a espécie prosperar: o acúmulo de técnica, de conhecimento e de estratégia. Se não tivesse rasgado seu mapa do Alasca, saberia que poderia ter cruzado um rio torrencial em outro ponto e assim retornado à civilização, como pretendia. Sem sabê-lo, teve de estender sua estada no ônibus abandonado até morrer de inanição e provável envenenamento por sementes nativas.
Nas mãos de Penn, e interpretado pelo magnético Emile Hirsch, o protagonista reencontra um âmago mais doce. Christopher, aqui, se parece menos com o profeta do livro e mais com o que provavelmente foi: um menino com muitas questões íntimas por resolver (há indícios de que ele jamais teve um relacionamento sexual, por exemplo), que teve a infelicidade de morrer por excesso de cura para seus males – mas que era capaz de imensa alegria, deslumbramento e generosidade. Essa é a imagem que Penn crava em seu desfecho. E é ela que faz Na Natureza Selvagem doer tanto."


Sexo e outras distrações


Uma das narrativas mais belas e líricas que já li nesses últimos tempos. Tão bem escrito que dá até inveja!


Em 1957, Peyton Place, o filme mais quente dos últimos tempos, ou pelo menos assim os trailers candidamente nos convidavam a imaginar, foi lançado para uma nação expectante, e minha irmã decidiu que iríamos assistir. Por que eu era considerado parte da aventura, não faço idéia. Talvez fornecesse algum tipo de álibi. Talvez o único momento em que ela podia dar uma saidinha despercebida de casa fosse quando me pajeava. Só sei que fui informado de que iríamos caminhar até o cinema Ingersoll, no sábado depois do almoço, e que era para eu não dizer a ninguém. Era muito excitante.
No caminho, minha irmã disse que muitos personagens do filme — provavelmente a maioria — estariam fazendo sexo. Minha irmã àquela altura era a principal autoridade mundial em assuntos sexuais, pelo menos no que me dizia respeito. Sua especialidade particular era detectar celebridades homossexuais. Sal Mineo, Anthony Perkins, Sherlock Holmes e o dr. Watson, Batman e Robin, Charles Laughton, Randolph Scott, Liberace, é claro, e um homem na terceira fileira da Orquestra de Lawrence Welk que me parecia bem normal — foram todos desmascarados pelo seu olhar penetrante. Ela me disse que Rock Hudson era gay em 1959, muito antes que qualquer um tivesse adivinhado. Ela sabia que Richard Chamberlain era gay antes dele, acho. Ela era do outro mundo.
“Você sabe o que é sexo?”, perguntou, assim que passamos para o recesso do bosque, caminhando em fila indiana pelas árvores, ao longo da trilha estreita. Era um dia invernal e eu lembro com clareza que ela usava um casaco novo de lã vermelha, bacana e um chapéu branco felpudinho, amarrado no queixo. Eu a achava muito bacana e madura. “Não, acho que não sei” — eu disse, ou algo similar.
Então ela contou, em tom grave e com o tipo de fraseado cuidadoso, que deixava claro tratar-se de informações privilegiadas tudo o que havia para saber sobre sexo, embora, como ela tivesse apenas 11 anos naquela época, seu conhecimento talvez fosse um tantinho menos enciclopédico do que me pareceu. Enfim, a essência do negócio, como eu entendi, era que o homem botava a coisa dele na coisa dela, deixava lá um tempinho e daí eles tinham um bebê. Lembro de matutar o que seriam essas coisas inespecíficas — dedo dele na orelha dela? Chapéu dele na caixa dela? Como saber? Enfim, faziam essa coisa nus, e quando você se dava conta, eram pais.
Para falar a verdade, eu não dava muita bola para o modo como os bebês eram feitos. Estava bem mais interessado na aventura secreta, empreendida às escondidas de nossos pais, e pela andança no bosque. Aos 6 anos, dava para me aventurar discretamente no bosque, de quando em quando, brincar de guerra à vista da rua e sair novamente com uma sensação de contentamento — ou de franco alívio — por adentrar o dia claro e a luz do sol. O bosque dava aflição. O ar lá era mais denso, mais sufocante; os barulhos, diferentes. Podia-se entrar no bosque e não sair mais. Nunca se consideraria usá-lo como passagem. Era vasto demais para esse propósito. Ser conduzido através dele, então, por uma confidente toda bacana, enquanto recebia informação privada, ainda que esta fosse de todo inexpressiva para mim, era de arrepiar. Passei a maior parte da longa caminhada admirando a majestade sombria do bosque e atento a lobos e casinhas feitas de doces.
Como se não fosse excitação bastante, quando chegamos à avenida Grand minha irmã me levou para um caminho secreto, entre dois prédios de apartamentos, passando pelos fundos da Drogaria Bauder, na Ingersoll — nunca me ocorrera que a Drogaria Bauder tivesse fundos —, de onde emergimos quase do lado oposto ao do cinema. Isso era tão impossivelmente estiloso que eu mal podia suportar. Sendo a Ingersoll uma rua muito movimentada, minha irmã pegou-me a mão e nos guiou com habilidade para o outro lado — tarefa que também me pareceu incrível. Duvido que jamais eu tenha ficado tão orgulhoso em estar associado a outro ser humano.
No guichê, quando a moça dos ingressos hesitou, minha irmã disse-lhe que tínhamos um primo da Califórnia fazendo um papel no filme e que havíamos prometido à nossa mãe, uma mulher ocupada, de certa importância (“ela é colunista do Register, né?”), que iríamos assistir ao filme como representantes dela, e que providenciaríamos um relatório completo depois. Talvez não fosse a mais convincente das histórias, mas minha irmã tinha um rosto de anjo, jeito sagaz e aquele chapéu felpudinho e inocente — uma combinação da qual não se podia duvidar. Então a vendedora, após um momento de incerteza alvoroçada, deixou-nos entrar. Também fiquei orgulhosíssimo de minha irmã por isso.
Depois de tanta aventura, a fita em si foi um pouco anticlimática, especialmente quando minha irmã contou que não tínhamos na verdade um primo no filme, ou mesmo na Califórnia. Ninguém ficava pelado e não havia dedos em orelhas ou dedos do pé em caixas de chapéu, nem nada. Apenas montes de gente infeliz falando com abajures e cortinas.
Logo depois, por acaso, tive uma experiência adicional que lançou mais uma luzinha no assunto sexo. Chegando da brincadeira certo sábado, e descobrindo minha mãe ausente de seus domínios costumeiros, decidi impulsivamente recorrer a meu pai. Naquele dia ele acabara de voltar de uma longa viagem à costa Oeste — o Campeonato Mundial entre White Sox e Dodgers, se bem me lembro — e tínhamos bastante coisa para botar em dia. Então, corri para o quarto dele, esperando encontrá-lo desarrumando a mala. Para minha surpresa, as venezianas estavam abaixadas e meus pais estavam na cama engalfinhando-se sob os lençóis. Mais espantoso ainda, minha mãe vencia. Meu pai estava obviamente em algum apuro. Fazia um ruído, como um animalzinho preso.
- O que você está fazendo?, perguntei.
- Ah, Billy, sua mãe está examinando meus dentes — meu pai respondeu rápido, ainda que de modo não muito convincente.
Ficamos todos quietos por um momento.
- Vocês estão nus aí debaixo?, perguntei.
- Ora essa, sim, estamos.
- Por quê?
- Bem, — disse meu pai, como se essa fosse uma história que iria longe, — ... ficamos com calor. Dá calor isso de dentes, gengivas, coisa e tal. Olha, Billy, estamos quase acabando aqui. Por que não vai para baixo? Já, já descemos.
Acho que é para ficar traumatizado com essas coisas. Não lembro de ficar nem um pouco perturbado, embora lá se fossem alguns anos até eu deixar minha mãe olhar a minha boca de novo. Foi uma surpresa, quando eu enfim me liguei, perceber que meus pais faziam sexo — sexo entre os pais sempre parece levemente inacreditável, claro —, mas também senti uma espécie de alívio, porque fazer sexo não era fácil nos anos 50.
No casamento, com o homem por cima e a mulher rangendo os dentes era legalmente admissível, mas quase todo o resto era proibido na América daqueles tempos. Quase todo estado tinha leis proibindo qualquer forma de sexo considerada remotamente fora dos padrões: sexo oral e anal, evidente; homossexualidade, óbvio; até sexo normal e polido entre casais aquiescentes, porém não casados. Em Indiana, dava até catorze anos de prisão ajudar, ou instigar um menor de 21 anos, a “cometer masturbação”. A Arquidiocese Católica Romana do mesmo estado declarou, mais ou menos na mesma época, que sexo fora do casamento não apenas era pecaminoso, sujo e favorecia a reprodução, mas também fomentava o comunismo. Nunca se especificou como uma transa no monte de feno ajudava a marcha incansável do marxismo, mas pouco importava. A questão era que, uma vez que uma ação fosse considerada fomentadora do comunismo, não dava para chegar nem perto.
Já que os legisladores não se punham a discutir esses assuntos às claras, volta e meia não era possível saber o que, exatamente ,estava sendo banido. Kansas tinha (e pelo que sei, ainda tem) um estatuto dedicado a punir, severamente, qualquer um “condenado pelo crime detestável e abominável contra a natureza cometido com humano ou com animal”, sem indicar, sequer de maneira vaga, que crime detestável e abominável contra a natureza poderia ser esse. Terraplanar uma floresta? Chicotear a mula? Não havia jeito de saber.
Quase tão mau quanto fazer sexo era pensar em sexo. Quando Lucille Ball, em I love Lucy, ficou grávida por quase toda a temporada de 1952-3, o programa não pôde usar a palavra “grávida”, com medo de incitar espectadores suscetíveis à ginástica isométrica de sofá. Em vez disso, descrevia-se Lucy como “esperando” — uma palavra, parece, menos emocional. Mais perto de casa, em 1953, em Des Moines, a polícia invadiu o Ruthie’s Lounge e acusou a dona, Ruthie Lucille Fontanini, de entregar-se a um ato obsceno. Era um ato tão perturbador que dois suboficiais e um capitão da polícia fizeram uma viagem especial para vê-lo, como na verdade fazia a maioria dos homens em Des Moines, vez por outra, ou assim parecia. O ato obsceno de Ruthie, descobriu-se, é que ela, com o devido estímulo de um recinto cheio de beberrões felizes, equilibrava dois copos no seu peitoril de blusa justíssima, enchia-os com cerveja e os conduzia sem entornar até uma mesa de admiradores.
Tudo indicava que Ruthie, em seus bons tempos, era jogo duro. “Foi casada dezesseis vezes com nove homens”, segundo George Mills, ex-repórter do Des Moines Register, num maravilhoso livro de memórias. Um dos casamentos de Ruthie terminou apenas dezesseis horas depois, quando Ruthie acordou e encontrou o novo marido vasculhando sua bolsa em busca da chave do cofre. Seu hábito de usar o peito como bandeja pareceria um talento menor numa época em que o correio era entregue por foguete, mas tornou-a nacionalmente famosa. Um par de montanhas na Coréia foi chamado “as Ruthies” em sua homenagem e o diretor hollywoodiano Cecil B. De Mille visitou o Ruthie’s Lounge para observá-la em ação.
A história tem final feliz. O juiz Harry Grund retirou as acusações de obscenidade. Ruthie, por fim, casou-se com um bom homem chamado Frank Bisignano e estabeleceu-se numa pacata vida de dona de casa. As últimas informações davam conta de que foram casados e felizes por mais de trinta anos. Gostaria de imaginá-la trazendo-lhe ketchup, mostarda e outros condimentos no peito toda noite, mas é claro que é só conjectura.
Para aqueles de nós que tinham interesse em ver mulher pelada, é claro que havia fotos na Playboy e em outros periódicos masculinos de reputação inferior, mas estes era quase impossível adquirir legalmente, mesmo se você pedalasse até uma das mercearias caidaças no lado leste, abaixasse a voz duas oitavas e jurasse por Deus ao funcionário impassível que nascera em 1939.
Às vezes, na drogaria, se seu pai estivesse ocupado com o farmacêutico, você podia dar uma rápida folheada nas páginas. Era uma operação aflitiva, pois a estante das revistas era vista de muitos cantos da loja. Além disso, ficava logo na entrada e visível da rua através de uma grande vidraça, o que o deixava vulnerável em todas as frentes. Uma das amigas da sua mãe podia passar, vê-lo e dar o alarme — havia uma linha para a polícia num orelhão bem na frente, talvez colocado ali com esse objetivo. Ou um empacotador de supermercado espinhento segurar seu ombro por trás e denunciá-lo em alto e bom som. Ou seu próprio pai alcançá-lo de forma inesperada, enquanto você estava distraído, tentando freneticamente localizar as páginas em que Kim Novak era vista relaxando num tapete felpudo — então, na prática, havia quase nenhum prazer e pouquíssimo esclarecimento nesse exercício. Essa era uma época, não se esqueça, na qual se podia ser preso por carregar cerveja embaixo da camisa ou cometer um crime inespecífico contra a natureza. Inconcebíveis, então, as conseqüências de te pegarem segurando fotografias de mulher pelada numa drogaria de família, mas você podia ter certeza de que envolveria o espocar de flashes, manchetes no jornal e muitos milhares de horas de serviço comunitário.
No geral, portanto, era preciso se virar com propagandas de roupa íntima, ou com anúncios lustrosos em revistas. Maideoform, um fabricante de sutiãs, divulgou nos anos 50 uma série bem conhecida de anúncios, nos quais mulheres se imaginavam semivestidas em lugares públicos. “Sonhei que estava em uma joalheria vestindo o meu sutiã Maidenform”, dizia o cabeçalho dum, acompanhado por uma foto mostrando uma mulher que usava chapéu, saia, sapatos, jóias e um sutiã Maidenform — tudo, em suma, menos uma blusa — numa vitrine da Tiffany, ou um lugar desses. Havia algo profundamente erótico — e, suponho, nada saudável — nessas fotos. Era lamentável, mas Maidenform tinha um instinto infalível para escolher modelos um tanto entradas em anos e não superatraentes, e, em todo caso, os sutiãs da época estavam mais para utensílios cirúrgicos do que para incitações à fantasia. O desperdício de um conceito erótico tão promissor dava desespero.
Apesar das deficiências, a proposta era muitíssimo imitada. Sarong, um fabricante de cintas tão pesadonas que pareciam à prova de bala, seguiu linha similar com uma série de anúncios mostrando mulheres apanhadas por golpes de vento inesperados, revelando suas cintas in situ, para espanto horrorizado delas, mas para deleite furtivo de todos os machos num raio de cinqüenta metros. Tenho um anúncio de 1956, mostrando uma mulher que acaba de desembarcar de um vôo da Northwest Airlines, e cujo casaco de pele se abriu de forma inconveniente com uma lufada e revelou-a vestindo um modelo 124 da cinta Sarong em náilon (disponível em todas as casas do ramo por 13,95 dólares). Mas — e eis o que me perturba, desde 1956 — a mulher claramente não usa saia ou nenhuma outra coisa entre a cinta e o casaco, o que levanta questões prementes relativas ao modo como estava vestida quando embarcou no avião. Terá voado sem saia todo o trajeto de (digamos, para fins de argumentação) Tulsa a Minneapolis, ou terá tirado a saia no caminho — e por quê?
Por acaso, tínhamos em Des Moines a estátua mais erótica do país. Fazia parte do grande monumento estadual à Guerra Civil. Chamada Iowa, mostrava uma mulher sentada, segurando os seios desnudos nas mãos, colhidos por baixo, de um jeito espantosamente provocante. Diziam que o gesto procurava representar um oferecimento simbólico de alimento, mas o que ela faz mesmo é convidar todo homem que passa a ter vontade de escalar a mulher e agarrá-la. Às vezes íamos de bicicleta até lá nos sábados para encará-la por baixo. “Erguida em 1890”, dizia uma placa na estátua. “E os deixando erguidos desde então”, costumávamos zombar.
A outra única opção era espionar as pessoas. Um menino chamado Rocky Koppell, cuja família fora transferida de Columbus para Des Moines, morou um tempo num apartamento do Hotel Commodore. Ele descobriu, nos fundos do quarto de dormir, um buraco na parede, através do qual ele podia observar a empregada no cômodo ao lado se vestindo e, vez por outra, participando de uma honesta troca de fluidos com um dos zeladores. Koppell cobrava 25 centavos para espiar pelo buraco.
Um lugar onde, sabia-se, nunca se veria carne feminina nua era nos filmes. As mulheres se despiam nos filmes de tempos em tempos, mas elas sempre passavam para trás de um biombo para fazê-lo, ou vagavam para outro quarto depois de tirar os brincos e, distraídas, soltar o botão de cima da blusa. Mesmo se a câmera acompanhasse a mulher, sempre baixava o enquadramento timidamente no momento crítico, daí tudo o que se via era um roupão caindo pelos tornozelos e um pé entrando na banheira. Não dá sequer para dizer que era decepcionante, porque não havia expectativas a serem decepcionadas.
Quem tinha irmãos mais velhos, ouvira falar de um filme chamado Mau Mau, lançado em 1955. Era um documentário respeitável sobre o levante Mau Mau, no Quênia. Mas o distribuidor decidiu que o filme não era comercial o bastante. Contratou um time de atores e técnicos locais, e filmou cenas adicionais num laranjal, do sul da Califórnia. Elas mostravam mulheres “nativas” de topless, esquivando-se de homens com facões. Ele emendou as cenas extras mais ou menos a esmo na fita. O resultado foi uma sensação comercial, particularmente entre os garotos de 12 a 15 anos. Infelizmente, eu só tinha 4 anos, em 1955.
Certa vez, quando eu tinha uns 9 anos, construímos uma casa na árvore dentro do bosque e mais ou menos automaticamente, a usamos para tirar tudo na frente uns dos outros. Isso não era lá muito excitante, visto que o grupo consistia em uns 24 menininhos e só uma garota, Patty Hefferman, que já aos 7 anos pesava mais que uma escavadeira das grandes, e não era a idéia de Madame Eros de ninguém. Ainda assim, por uns biscoitos Oreo, estava disposta a ser examinada, de qualquer ângulo, pelo tempo que qualquer um quisesse, o que lhe conferia certo valor antropológico.
A única garota na vizinhança que todos queriam ver nua era Mary O’Leary. Era a criança mais linda em milhões de milhões de galáxias, mas não tirava a roupa. Brincava conosco alegremente na casa da árvore enquanto a diversão fosse saudável, mas, quando as coisas ficavam suculentas, partia escada abaixo e dizia, com uma fúria contida, que era quase de chorar, que éramos grosseiros e odiosos. Isso me fez admirá-la muito, muito mesmo. Com freqüência, eu largava a brincadeira também (pois, na verdade, não dava para encarar a Patty Hefferman muito tempo e depois ainda comer a comida da minha mãe) e a acompanhava até em casa, louvando-a com ênfase por sua virtude e modéstia.
“Esses caras são nojentos”, eu dizia, convenientemente, não admitindo que eu mesmo era um desses caras.
A recusa dela em participar era, dum jeito esquisito, a coisa mais estimulante em toda aquela experiência. Eu adorava, venerava Mary O’Leary. Costumava sentar ao seu lado no sofá quando ela assistia a tevê e encará-la em segredo. Era a coisa mais perfeita que eu já tinha visto — tão macia, limpa, sorriso em flor, cheia de luz rósea. E não havia nada mais perfeito e jubiloso na natureza do que aquele rosto no micro-instante anterior à sua risada.
Naquele verão, minha família foi passar o Quatro de Julho na casa dos meus avós, onde mais uma vez eu viveria a experiência desanimadora de observar tio Dee transformar comida em reboco voador. Pior ainda, a televisão dos meus avós estava fora de combate, aguardando uma peça nova — o bobo-alegre do homem do conserto dali era incapaz de ver lógica em manter válvulas sobressalentes no estoque — então eu tive de passar o longo fim de semana lendo na modesta biblioteca dos meus avós, que consistia, na maior parte, de Seleções, romances de Warwick Deeping e uma caixona de papelão cheia de Ladies’ Home Journals. Foi um fim de semana árduo.
Quando voltei, Buddy Doberman e Arthur Bergen estavam esperando perto de casa. Mal cumprimentaram meus pais, tão ansiosos estavam para uma conversa particular comigo. Esbaforidos, disseram que na minha ausência a Mary O’Leary fora para a casa da árvore e tirara a roupa — cada pedaço de pano. Fizera-o livremente, até mesmo com uma espécie de despojamento sonhador.
- Foi como se ela estivesse em transe — disse Bergen, carinhosamente.
- Um transe feliz — acrescentou Buddy.
- Foi legal mesmo — disse Bergen, com seu estoque de memórias carinhosas nem de longe esgotado.
É claro que me recusei a acreditar numa palavra sequer. Tiveram de jurar por Deus uma dúzia de vezes, e pela morte da mãe, em uma pilha de bíblias, antes que eu estivesse preparado para suspender um pouquinho a minha descrença natural. Acima de tudo, tiveram de descrever cada etapa do acontecimento, algo que Bergen foi capaz de fazer com clareza admirável. (Ele tinha, como se gabaria anos depois, uma memória pornográfica.)
- Ora, vamos pegá-la e fazer de novo, disse eu.
- Ah, não, Buddy explicou. Ela disse que não iria fazer mais. Tivemos de jurar que nunca pediríamos de novo. Esse foi o trato.
- Mas isso não é justo, eu disse, espumando e horrorizado,
- O “engraçado”, continuou Bergen, é que ela disse que vinha pensando em fazer isso há um tempão, mas um dia em que você não estivesse, porque não queria te ver zangado.
- Zangado? Zangado? Você está de gozação? Zangado? Tá de gozação? Tá de gozação?
Fiel à palavra, Mary O’Leary nunca mais chegou perto da casa da árvore.
Pouco depois, num momento inspirado, tirei todas as gavetas do armário do meu pai para ver o que havia, se é que havia, nos fundos. Eu costumava desmantelar seu quarto duas vezes por ano — quando ele ia para o treinamento de primavera e para o Campeonato Mundial — à cata de cigarros perdidos, dinheiro solto e provas de que eu era mesmo do planeta Electro; talvez uma carta do Rei Volton ou do Congresso de Electro, prometendo alguma recompensa polpuda por me criar em segurança e confirmando que meus menores caprichos deveriam ser realizados.
Nessa ocasião, como eu tinha mais tempo disponível que de hábito, tirei as gavetas até o fim para ver se havia algo embaixo ou atrás, e então achei a modesta muamba de mulhas do meu pai, compreendendo duas revistas finas, uma chamada Dude, a outra Nugget. Eram superbregas. As mulheres pareciam Pat Nixon ou Mamie Eisenhower — o tipo de mulher que você paga para não ver pelada. Fiquei horrorizado, não porque meu pai tivesse revistas masculinas — um progresso completamente bem-vindo, a ser encorajado de todas as maneiras possíveis —, mas porque escolhera muito mal.
Ainda assim, eram melhores do que nada e mostravam, afinal, mulheres despidas. Levei-as à casa da árvore, onde, na ausência de Mary O’Leary, foram muito valorizadas. Quando as devolvi ao lugar de origem, dez dias depois, logo antes que ele voltasse para casa, estavam visivelmente manuseadas. Era difícil não perceber que haviam sido desfrutadas por um público mais amplo. Faltava a página de uma, e quase todas as ilustrações agora traziam comentários à margem ou balõezinhos, muitos de natureza cândida, feitos por uma multiplicidade de mãos jovens. Nos anos que se seguiram, muitas vezes imaginei o que meu pai fazia com essas emendas espirituosas, mas, por alguma razão, nunca parecia a hora certa para perguntar.

Bill Bryson


Nossa história

Na história de nosso amor, um foi sempre
Uma tribo nômade, outro uma nação em seu próprio solo.
Quando trocamos de lugar, tudo tinha acabado.
O tempo passará por nós, como paisagens
Passam por trás de atores parados em suas marcas
Quando se roda um filme.
As palavras
Passarão por nossos lábios, até as lágrimas
Passarão por nossos olhos.
O tempo passará
Por cada um em seu lugar.
E na geografia do resto de nossas vidas,
Quem será uma ilha e quem uma península.
Ficará claro para cada um de nós no resto de nossas vidas
Em noites de amor com outros.

Yehuda Amichai (1924-2000), poeta israelense.
(Trad.: Millôr Fernandes)


Pérolas aos poucos

Artigo fantástico publicado pela revista piauí (com "i" minúsculo mesmo)! Vale a pena ler... Basta clicar no título e você encontra essa matéria escrita por Gene Weingarten.

sábado, 8 de março de 2008

"Cândido" - Voltaire

"- Também sei - disse Cândido - que é preciso cultivar nosso jardim.
- Tens razão - disse Pangloss, - pois quando o homem foi posto no jardim do Éden, ali foi posto ut operaretur eum, para que trabalhasse; o que prova que o homem não nasceu para o repouso.
- Trabalhemos sem filosofar - disse Martinho, - é a única maneira de tornar a vida suportável.
Todo o grupo se compenetrou desse louvável desígnio. A pequena propriedade rendeu bastante.
Cunegundes estava, na verdade, muito feia, mas tornou-se uma excelente doceira. Paquette bordava. A velha costurava. Nem mesmo o Irmão Giroflée se furtou ao trabalho; revelou-se um bom marceneiro; e até se tornou honesto.
- Todos os acontecimentos - dizia às vezes Pangloss a Cândido - estão devidamente encadeados no melhor dos mundos possíveis; pois, afinal, se não tivesses sido expulso de um lindo castelo, a pontapés no traseiro, por amor da senhorita Cunegundes, se a Inquisição não te houvesse apanhado, se não tivesses percorrido a América a pé, se não tivesses mergulhado a espada no barão, se não tivesses perdido todos os teus carneiros da boa terra do Eldorado, não estarias aqui agora comendo doce de cidra e pistache.
- Tudo isso está muito bem dito - respondeu Cândido, - mas devemos cultivar nosso jardim."

quarta-feira, 5 de março de 2008

Oração da Serenidade

Deus, conceda-me serenidade
para aceitar as coisas
que não posso modificar,
coragem para modificar
aquelas que posso,
e sabedoria para reconhecer
a diferença entre uma e outra.

Que que tem? Ateu não pode achar oração bonita?!


W.B. Yeats

HAD I the heavens’ embroidered cloths,
Enwrought with golden and silver light,
The blue and the dim and the dark cloths
Of night and light and the half light,
I would spread the cloths under your feet:
But I, being poor, have only my dreams;
I have spread my dreams under your feet;
Tread softly because you tread on my dreams.

sábado, 1 de março de 2008

Maysa - "Ne me quitte pas"

Maysa... a rainha da b(f)ossa!
Tá meio sem sincronia, mas tem a tradução da letra.
Uma das mais famosas (e belas!) canções francesas.

Roberta Sá e Trio Madeira Brasil - "A Flor e o Espinho"

Roberta Sá. Maravilhosa. Meu samba favorito do mestre Nélson Cavaquinho. Sem esquecer o grande Guilherme de Brito, né?!
Nas minhas andanças pelas rodas de samba paulistanas, nunca deixo de pedir essa canção.
Clássico!

Ode de Ricardo Reis

Para ser grande, sê inteiro: nada
Teu exagera ou exclui.

Sê todo em cada coisa. Põe quanto és
No mínimo que fazes.

Assim em cada lago a lua toda
Brilha, porque alta vive

Seis coisas tipicamente femininas

Maitena - "Mulheres alteradas 1"

Samuel na Cozinha

Bauruzinho!

Ingredientes:

MASSA:
- 50g de fermento biológico;
- 1 colher (sopa) de açúcar;
- 1 colher (sopa) de sal;
- 1 copo (americano) de leite;
- 3 ovos;
- 2 colheres (sopa) de manteiga;
- 600 g de farinha de trigo (aproximadamente);
- 1 gema de ovo para pincelar.

RECHEIO:
- 200g de mozarela picada;
-200g de presunto picado;
- 2 tomates picadinhos sem sementes;
- orégano a gosto.





PREPARO:
Numa vasilha, acrescente o fermento e o dissolva com o açúcar e o sal. Acrescente o leite, os ovos e a manteiga.
Vá colocando farinha aos poucos até a massa soltar da mão (entre 600 e 700g já é suficiente).
Deixe a massa crescer até dobrar de volume (aproximadamente 30 min).
Apanhe um bom punhado de massa, abra-a e coloque o suficiente de queijo, presunto e tomate. Polvilhe com orégano.
Boleie a massa, deixando folga para o recheio.
Pincele gema e leve para assar em fogo médio até corar.