quinta-feira, 31 de janeiro de 2008

Professor sofre pra carvalho!

Anos Incríveis - Melhores momentos

Alguns diálogos, algumas falas, são inesquecíveis...

1. Do episódio O lago, quando Kevin tem um amor de verão, mas tem de deixá-la para se encontrar com os pais e partir:
"Eu queria ter ficado lá mais do que qualquer outra coisa que já houvesse desejado. Mas eu não podia. Eu tinha 15 anos, morava na casa de meu pai, dormia numa cama comprada por meu pai. Nada era meu, a não ser os meus sonhos, as minhas esperanças, e a certeza que, a partir dali, nada mais seria como antes."

2. No mesmo episódio, ele diz, ao perceber que nunca mais veria o seu amor de verão:
"Foi a pior coisa que senti na minha vida. E era maravilhoso!"

3. Do episódio "o Rejeitado" quando, no final, Kevin encontra Paul, seu melhor amigo, na rua:
"Acho que, de certa forma, todos somos rejeitados. Isso até que a gente ache alguém que combine com a gente, alguém que nos desafie a ser o melhor que pudermos. Alguém que nos entenda, mesmo quando damos o pior de nós. Foi aí que comecei a perceber como isso era raro..."

4. Kevin entra pro time de beisebol porque deu sorte numa tacada e porque o pai é amigo do treinador, amigo de guerra. Ele se sente intimidado com isso e joga muito mal. Acontece que, no último dia, ele consegue mandar uma boa bola. A cena que sucede parece como final de campeonato. No entanto, ele faz uma jogada espetacular e sai carregado pelos colegas. Ele diz:
"Talvez não seja assim que aconteceu, mas é assim que deveria ter acontecido e é assim que eu gosto de lembrar. Quando as suas lembranças do acontecimento e a realidade se misturam, é porque é para ser assim mesmo, porque todos os garotos merecem ser heróis. Na verdade eles já são."

5. Kevin conhece uma garota bem excêntrica, que colecionava aranhas e gostava de morcegos. Ele tem de dançar quadrilha com ela no colégio. Detesta a idéia e estraga toda a dança com a menina, dizendo que não gostava dela. Mas, no final, a sua voz adulta diz uma frase muito interessante:
"Eu dancei sozinho. Talvez, se tivesse sido mais corajoso, eu poderia ter sido seu amigo, mas a verdade é que, na sétima série, quem você é, é o que seus colegas dizem que você é. O engraçado é que é difícil lembrar o nome das crianças que você gastou tempo tentando impressionar. Mas você não esquece alguém como Margaret Farquhar. Professora de Biologia. Mãe de seis."

6. Sobre seu professor de matemática, que havia morrido:
"Professores nunca morrem. Vivem em suas lembranças para sempre. Estavam lá quando você chegou e também quando foi embora. Como acessórios. Às vezes, lhe ensinavam alguma coisa. Mas não era sempre. Nunca chegava a conhecê-los de verdade, nem eles a você. Ainda assim, por algum tempo, você acreditava neles. E, se desse sorte, talvez um deles acreditasse em você."

7. No mesmo episódio, me lembro de um momento em que Kevin se revolta com o professor por ele não atender a um capricho seu e diz: "Pensei que fôssemos amigos!". E o professor diz: "Eu não sou seu amigo, Sr. Arnold, eu sou seu professor." Ao saber da morte do mestre, ele diz:
"Nunca vou me esquecer de como ele tentou me tratar como um homem, e de como respondi agindo como um menino. "

8. O pai de Kevin vivia brigando com sua irmã Karen, por causa da hora em que ela chegava em casa, por causa da sua ideologia hippie e tudo o mais. As coisas se agravam quando ela diz que não comemorará o aniversário em casa e não deseja bolo nem presentes. No entanto, ela aparece e faz as pazes com pai. Ele a deixa ir e dá a ela uma velha mochila que ele havia usado na guerra da Coréia. O narrador diz:
"Na noite do 18º aniversario de minha irmã, várias coisas aconteceram. Talvez mais do que ela imaginou. Porque, naquela noite, quando meu pai deixou Karen sair, ele deixou Karen ir. E talvez é assim como deve ser - crianças vão... e os pais ficam para atrás. Mesmo assim, algumas coisas são mais profundas do que tempo e distância. E seu pai sempre irá ser seu pai. E sempre irá deixar a luz acesa para você."

9. Episódio "Natal", no finalzinho, quando Kevin está abrindo um presente da Winnie. Tratava-se de um trevo de 4 folhas:
"Naquele ano, o natal deixou de significar pra mim enfeites e presentes e começou a significar recordação. No começo fiquei um pouco desapontado, mas aprendi que a memória é uma maneira de reter as coisas que amamos, as coisas que somos, as coisas que não queremos perder nunca! E o que aprendi com o Winnie foi que num mundo que muda tão depressa o melhor que podemos fazer é desejar aos outros um feliz natal... e muita sorte!

10. "Era o primeiro beijo para nós dois. Nunca falamos sobre isso depois. Mas penso sempre nos acontecimentos daquele dia e, de alguma forma, sei que ela também."

11. "E sempre quando algum espertalhão começa a falar sobre o anonimato do subúrbio ou a inconsciência da geração da tv, sabemos que dentro de cada uma daquelas casas idênticas com seus Dodjes estacionados na frente, seu pão de fôrma sobre a mesa e o azul brilhante do aparelho de tv no cair da noite, vivem pessoas com suas histórias, famílias unidas na dor e na luta do amor. Existiam momento que nos faziam chorar de tanto rir e outros como aquele, de perplexidade e tristeza..." - quando da morte do irmão da sua namorada Winnie no Vietnã.

12. "Acho que todos nós nos arrependemos de desistir de alguma coisa, uma coisa cuja falta sentimos, que desistimos porque fomos preguiçosos demais ou por não persistirmos, ou até porque tivemos medo."

13. "É difícil fazer o curativo com uma mão só, mas uma hora você acaba aprendendo..." - sua mãe vivia constrangendo-o por causa de seus cuidados excessivos até que ele resolve dar um basta. Depois se arrepende...

14. "O amor às vezes é inesperado e imprevísivel, você tem que entrar com o coração e torcer para dar certo."

15. "Às vezes temos que crescer separados para voltar a crescer juntos".

16. Depois de ouvir uma discussão sobre a guerra do Vietnã entre seu pai, Jack, e o namorado hippie da irmã:
"Quem estaria certo e quem estaria errado? Agora eu sou adulto, e continuo sem saber. Mas em algum momento, tarde da noite, quase ao adormecer, as idéias e desentendimentos se dissipam e restam apenas as pessoas. E as pessoas naquele tempo não eram diferente do que sempre foram e sempre serão. As moças se apaixonam. Os homens e as mulheres sofrem sozinhos pelas escolhas que fizeram. E os meninos, confusos, cheios de medo, de amor e de coragem crescem silenciosamente enquanto dormem."

17. A irmã vai para a faculdade, Kevin vai para a "9ª série" e sua namorada muda para uma outra casa, longe dele:
"As coisas iam ser diferentes agora. Minha irmã ia para a faculdade. Meu irmão... era meu irmão. Minha mãe e meu pai ficariam para trás combatendo os cupins, cortando a grama e envelhecendo juntos. Quanto a mim, eu tinha que percorrer minhas distâncias. Seis quilômetros de Nova York a Paris. Até Winnie ir embora, tudo no mundo estava na frente de minha porta. Agora, talvez o mundo tenha que ficar um pouco maior..."

18. "Seus filhos não são os seus filhos. Eles são os filhos e as filhas da própria vida. Você pode abrigar seus corpos, mas não suas almas. Suas almas habitam o mundo de amanhã. A vida não volta atrás nem permanece no ontem."

19. "A cada dia, mês, ano, cresço como pessoa, com lágrimas e sorrisos."

20. "A gente tem que fazer escolhas na vida e tentar ser feliz com elas."

21. "Existem noites na vida da gente que são regidas por forças incontroláveis: mágica, romance, destino... Noites nas quais o amor nos pega de surpresa e depois disso as coisas nunca mais voltam a ser as mesmas. Tive a sorte de viver uma dessas noites e essa lembrança ficará comigo para sempre."

22. "A mágica não dura para sempre, o destino pode mudar de uma hora para outra e cortar como uma faca."

23. "Algumas pessoas passam pela sua vida e você nunca mais se lembra delas, outras a gente fica imagindo: o que será que aconteceu? O que elas viraram? Talvez dentista? Colunista social?! Não! Advogada especializada em divórcio! Fico imaginando se certas pessoas também se perguntam o que também aconteceu comigo. E há também aquelas pessoas que você desejaria nunca mais lembrar na vida... mas você se lembra."

24. "Talvez fosse uma questão de ajuste. Em um mundo de insegurança, onde crianças de cabelos crespos desejavam cabelos lisos, crianças pesadas queriam perder peso, e os mais magrinhos queriam engordar, e todos queriam ser uma outra pessoa, a única beleza verdadeira era o garoto que simplesmente conhecia a si mesmo. E estava contente com aquilo que conhecia."

25. Muito bom esse. Kevin brigou com a Winnie, porque ela estava mudando, se tornando uma pessoa diferente. Ela saía com um pessoal mais velho, de que ele não gostava. Não gostava de vê-la ela saindo com pessoas que, pra ele, não faziam o tipo de pessoa com que Winnie sempre saiu.
Bem, logo depois da briga ela sofreu um acidente de carro, andando esses caras. Quando soube, saiu correndo e foi vê-la. Ela não quis. Aí, ele fala:
"Foi ai que eu percebi que a Winnie não me queria mais fazendo parte da vida dela, então só me restava ir embora...
[pega sua bicicleta e vai pela rua, mas há um corte brusco e...]
"Mas eu não fui!"
[A proxima cena é dele subindo no telhado pra olhá-la pela janela]
"Eu não fui, eu não podia ir. Há coisas na vida que são importantes. Coisas no passado que não podem ser negadas. Winnie Cooper era parte de mim e eu parte dela. E não importava o que fosse ou o tempo que vivêssemos, eu sabia que eu nunca poderia deixar ela ir."
Ele, olhando-a pelo lado de fora da janela, diz: "Eu te amo."
Ela, deitada na cama, responde: "Eu te amo."

25. Quando Kevin e Winnie estão num celeiro, fugindo da chuva, diz:
"Sempre vou te amar, Winnie." E ele, narrador, completa: "Depois de tanto tempo hoje eu percebo que aquela frase so poderia ser dita por corações muito jovens..."

26. "Depois de tantas vezes que queria ouvir um sim, subestimei nosso amor vendendo muito barato o que várias pessoas passam a vida toda procurando. Queria impressionar pessoas sem importância e acabei separando quem mais importava: nós."

27. "Naquela noite, falamos da vida, do tempo que passamos juntos. Talvez não fôssemos mais aquelas crianças. Mas certas coisas não mudam nunca, certas coisas permanecem. E mesmo que eu não soubesse o que ia acontecer conosco, nem para onde nos dirigíamos, sabia que não podia deixar ela sair da minha vida". - na formatura.

28. Episódio da última pescaria juntos. a pescaria Jack, Waynne e Kevin saem pra pescar num lugar em que Jack havia descoberto há muito tempo.

Jack: Sabe, rapazes? Um dia eu ainda largo tudo e venho morar aqui, sabe? No meio da natureza, sem preocupações. Não preciso de muito. Construo uma pequena cabana e viverei da pesca e de uma horta...
Waynne: E a hipoteca? Isso nunca vai acontecer!
Jack: É... eu sei.

E, ainda, ouvimos Kevin dizer:

"Me lembro dessa pescaria em particular, não por ter sido a melhor nem a pior, mais por ter sido a última ao lado de meu pai."

29. O carro do Vovô. Quando Kevin ganha o carro do avô, que falecera:
"Alguns presentes são simples. Alguns têm seu preço. Alguns você compra por 1 dólar e duram a vida toda. Acho que todos se lembram do primeiro carro. Sei que lembro do meu. Não porque foi o meu primeiro, mas porque foi o último do meu avô."

30. "Afinal de contas, crescer é uma guerra. Esses amigos que crescem junto com você merecem um respeito especial. Aquele que serra fileiras, ombro a ombro com voce numa época que nada é certo quando a vida inteira ainda está pela frente e todas as estradas o levam para casa!"

31. "Crescer é complicado. É uma espécie de corrida contra o tempo, busca de indentidade, de amor. E o resultado é sempre duvidoso... As coisas acontecem muito rápido, às vezes rápido demais."

32. "Saí para dar uma volta, passei por ruas que conheci, antes quando a vida era simples, quando a vida era... novidade. Eu percebi que os bons tempos tinham terminado, as coisas haviam mudado e nunca mais seriam as mesmas."


quarta-feira, 30 de janeiro de 2008

Fusilli à carbonara


Mais um momento gastronômico!

Ingredientes:

- 500g de fusilli (aquele parafuso);
- 150 g de bacon (já picado);
- 150g de parmesão ralado;
- 3 ovos vermelhos;
- 1 caixinha de creme de leite;
- 1 copo (de dose) de conhaque (é claro que não poderia faltar! rs);
- pimenta-do-reino moída na hora a gosto.

Preparo:

1. Cozinhe a massa, em água fervente, seguindo as recomendações do fabricante;

2. Bata duas gemas e um ovo inteiro. Adicione uma caixinha de creme de leite (melhor fresca) e a metade do queijo (também preferencialmente fresco).

3. Quando a massa estiver quase pronta, doure o bacon.

4. Em seguida, escorra muito bem a massa. Rapidamente, mexa com os ovos batidos e jogue o bacon dourado.

5. No final, acrescente um copinho de conhaque (tira o gosto do ovo e dá um cheirinho gostoso. rs).

6. Mexa e complete com o resto do parmesão e bastante pimenta preta.


terça-feira, 29 de janeiro de 2008

Cantiga para não morrer

Quando você for se embora,
moça branca como a neve,
me leve.

Se acaso você não possa
me carregar pela mão,
menina branca de neve,
me leve no coração.

Se no coração não possa
por acaso me levar,
moça de sonho e de neve,
me leve no seu lembrar.

E se aí também não possa
por tanta coisa que leve
já viva em seu pensamento,
menina branca de neve,
me leve no esquecimento.

Ferreira Gullar. De Dentro da Noite Veloz (1962-1975)

Esse é um poema do Gullar que já me agradou logo de cara, mesmo antes de pensar sobre ele. O título já nos remete às cantigas de amor medievais. E é um título curioso. Abre espaço para três interpretações ao menos.
Deseja-se que a cantiga seja eterna e não morra nunca? Pode ser. Nós passamos pelo mundo, mas a escrita permanece. Trata-se, portanto, da crença no valor e no poder da palavra escrita, capaz de tocar e emocionar. Que sobrevive a nós todos.
Ou, então, poderíamos ter aqui a elipse de um pronome pessoal: "cantiga para 'eu' não morrer". Se, antes, o verbo ligava-se à "cantiga", agora refere-se a um "eu". Embora essa visão pareça resgatar a idéia anterior, o ponto de vista torna-se mais subjetivo.
A literatura é uma das maneiras possíveis de se enganar a morte. Por meio dos nossos escritos, continuamos a viver, mesmo depois de partirmos. George Whasington já dizia que, antes de morrer, o homem deveria plantar uma árvore, ter um filho e... escrever um livro. Ora, todas as opções dão essa ilusão de imortalidade e são extensões de nós mesmos depois do grande mergulho nas trevas. É uma forma de eu deixar minha marca no mundo.
Podemos entender, ainda, o poema como um desabafo. A tentativa de exprimir um estado d'alma, que é o fundamento de toda a lírica. "Morrer" pediria um complemento implícito. "Faço essa cantiga para não me perder; para não morrer de amor, de saudade ou de tristeza". A morte está aqui presente na partida da mulher amada, que é dada como certa. Note que ele não diz "Se você for embora", e sim "Quando você for embora". O amor é visto sob a ótica da perda. Invariavelmente perdemos aqueles que amamos.
Outro dado que o aproxima de uma cantiga de amor é o aspecto formal. Todos os versos são feitos em medida velha (sete sílabas poéticas). À exceção de um: o terceiro verso da primeira estrofe. Por que isso? É referência ao eu-lírico incompleto sem a mulher amada? Ou apenas abre espaço para a gradação que se seguirá ("coração-lembrança-esquecimento")? Não sei.
Não podemos esquecer a presença das anáforas ("moça brança/menina branca", "me leve"), que sugerem um paralelismo típico das cantigas de amigo e, possivelmente, enfatizam o sofrimento amoroso ou a melancolia do poeta.
A partir da segunda estrofe, inicia-se o processo de separação entre eu-lírico e a mulher amada. Ele deseja existir ainda nela, mesmo depois do abandono. Este distanciamento se dá em diferentes níveis, do mais íntimo ao mais impessoal. Porque é apenas um desejo do poeta, não uma certeza. Todo o texto seguinte começa por orações condicionais, que indicam possibilidade. Nada é concreto. Nada garante que a jovem cumpra o que lhe é pedido.
Voltando à idéia do distanciamento, notamos que ele se dá também no plano formal. Partimos de três versos, depois para duas estrofes com quatro e, por fim, uma com cinco. Na primeira, pode-se entrever uma proximidade física. Dada a separação, o eu-lírico deseja que, ao menos, a "menina branca de neve" sinta saudades dele e carregue dentro de si o amor que tiveram.
Não sendo isso possível, que ela ao menos se lembre dele, de alguém que um dia a amou. Sem a carga de sentimento que aparece na segunda estrofe. Estamos no universo da memória, não do sentimento.
Caso isso não aconteça, que ela, enfim, o leve no seu esquecimento. É plano da morte. Lembremos de Camões: a morte é a "lei do esquecimento". E não queremos ser esquecidos. Queremos ser lembrados! Dessa forma, voltamos ao título. "Escrevo essa canção para não ser esquecido por você" ou "Escrevo essa canção para não deixar morrer em você essa lembrança, esse sentimento", parece nos dizer. Temos aí uma quarta interpretação.


segunda-feira, 28 de janeiro de 2008



Texto bem manjado da net.
Eu como meu diploma, dançando rumba e vestido de Carmen Miranda, em cima da fonte da praça, se esse texto for do Willian Shakespeare, mas é bom lembrar certas coisas.


Pedaço de Mim

A palavra "saudade" é comumente considerada uma das mais difícieis de se traduzir. Ela vem do latim solitas, solitatis, que significa "solidão". Daí "solitude" (francês), "solitúdine" (italiano) e "soledad" (espanhol). Mas eles, diferente de nós, não desenvolveram uma palavra diferenciada com a particularidade de "saudade". Esta tem grande flexibilidade na nossa língua: por meio dela podemos extravasar os sentimentos mais profundos, os desejos ou caprichos mais corriqueiros.
Saudade é a recordação nostálgica e suave de pessoas ou coisas distantes ou extintas, acompanhada da vontade de revê-las e tê-las de volta; desejo de um bem que se perdeu, ainda que provisoriamente. É um sentimento de amor e de ausência.
Foi o que me ocorreu ao revisitar essa composição maravilhosa do Chico. Ele cria imagens belas e doloridas para esse sentimento.

Que a saudade dói como um barco
Que aos poucos descreve um arco
E evita atracar no cais.

A saudade é como um barco: ela nunca é saciada, nunca chega ao seu porto. É separação, distanciamento, vagando num mar infinito, carregando aquilo que mais prezamos pra longe da gente. Mas, talvez, as melhores imagens sejam estas:

Que a saudade é o revés de um parto
A saudade é arrumar o quarto
Do filho que já morreu

O parto pressupõe um movimento de dentro para fora, certo? A saudade é justamente o inverso disso: um movimento de fora pra dentro. Aquilo que desejamos já não tem mais existência no mundo físico. Existe - e vive! - dentro de nós.
Agora, vejamos os versos seguintes: "Saudade é arrumar o quarto / do filho que já morreu". Esses versos são os mais pungentes e dolorosos de toda a canção e resgatam a idéia dos versos anteriores. Saudade é a perda de algo que amamos e desejamos reaver, por mais impossível que isso seja, como um filho morto que ainda vive na lembrança dos pais por meio de seus pequenos objetos deixados no quarto vazio. Ele está lá e, ao mesmo tempo, não está. É... a saudade pode ser isso: um quarto vazio, repleto de lembranças. Um quarto que dói.
Além disso, o título, bem como os segundos versos de cada estrofe, lembram-me bastante do filósofo grego Platão:

"Oh, metade afastada de mim..."
"Oh, metade exilada de mim..."
"Oh, metade arrancada de mim..."
"Oh, metade amputada de mim..."

Ele tem um livro chamado O banquete, que é uma grande dissertação sobre o amor. Em uma espécie de piquenique, vários filósofos expõem sua opinião sobre o tema. Um deles, Aristófanes, lança sua teoria sobre as almas gêmeas. Diz ele que, no início dos tempos, o mundo era habitado por seres fabulosos e andróginos, ou seja, não havia gênero masculino ou feminino. Ambos eram um só. E como eram belos e poderosos!
Naturalmente, Zeus, o poderoso chefão dos deuses, não gostou muito disso. Afinal, eles representavam uma ameaça. E se essas criaturas - semelhantes aos deuses do Olimpo - decidissem destituí-lo do trono e tomassem o poder? Astuto, decide enfraquecê-los portanto. Como fez isso? Dividindo-os ao meio.
Dessa forma, nasce o homem e a mulher. O que era um, agora são dois. E Zeus os condena a vagar pela Terra em busca da sua outra metade, na tentativa, inútil, de voltar àquela unidade perdida.
Esses somos nós. Seres mutilados, partidos, condenados a errar pelo mundo em busca daquela parte que nos completa. Daquela parte que, no fundo, somos nós mesmos. Quem já não disse a respeito de uma namorada: "Ah, ela me completa!"?
Conclusão: nossa busca pela "cara metade", pela "alma gêmea", pelo "pedaço de mim", é uma busca pelo autoconhecimento, é uma jornada para encontrarmos a nós mesmos. Só assim - amando - poderemos ser deuses novamente.



Deus

domingo, 27 de janeiro de 2008

Anos Incríveis


Domingo revendo Anos Incríveis.
Pena que a nova geração praticamente desconhece essa torta de morango!
Anos Incríveis (em inglês, The Wonder Years) foi uma série americana de televisão criada por Carol Black e Neal Marlens. Durou seis temporadas na rede americana ABC, de 1988 a 1993. No Brasil, o programa já foi exibido pela TV Cultura, TV Bandeirantes, Multishow e Rede 21, até voltar à TV Cultura.
A abertura já é um show à parte, embalada pela versão de Joe Cocker da música dos Beatles With a Little Help from My Friends, que, inclusive, postei recentemente. A história? Trata da vida de um jovem chamado Kevin Arnold, que vive os dilemas próprios da infância e da adolescência: a primeira namorada, os amigos do peito, a professora linda (pela qual, invariavelmente, todos nós nos apaixonamos um dia), os problemas com os pais, o irmão mala, a irmã hippie, as desilusões, as pessoas que marcam nossa nossa vida e se vão... essa nossa busca por entender o amor e a morte. A vida, enfim. Tudo isso tendo, como pano de fundo, as tensões sociais e os eventos históricos do final dos anos 60 e início dos anos 70.
São temas universais com quais nos identificamos, não importa em que época vivamos. O homem apenas mudou a maneira de se vestir ou de falar, inventou formas de prolongar vida ou acelerar a morte, mas, em geral, continuamos a amar da mesma forma, a odiar da mesma forma. São as mesmas dúvidas, os mesmos sonhos, as mesmas esperanças.
Acho que o grande tema da série é, sobretudo, o da morte. Não o da morte física, embora isso esteja presente também. Ela não se resume ao “fim da vida”, a uma parada mais ou menos brutal da nossa existência. Edgar Allan Poe, num dos seus mais famosos poemas, encarna essa idéia da irreversibilidade do curso da existência num animal sinistro, um corvo empoleirado na beira de uma janela, que só sabe dizer e repetir uma única fórmula: Never more – “nunca mais”.
Poe quer dizer que a morte designa em geral tudo o que pertence à ordem do “nunca mais”. Ela é, no cerne mesmo da vida, o que não voltará mais, o que pertence irreversivelmente ao passado, e que nunca mais poderemos reencontrar. Podem ser as férias da infância, passadas em lugares e com amigos de quem nos afastamos sem possibilidade de volta, o divórcio dos pais, as casas ou as escolas que uma mudança nos obriga a abandonar, e mil outras coisas: mesmo que não se trate sempre do desaparecimento de um ser querido, tudo o que é da ordem do “nunca mais” pertence ao registro da morte. Restam apenas lembranças. E é assim que Anos Incríveis nos ganha. Todos nós vivemos em meio a essas "pequenas mortes diárias" e as relembramos ao longo do nosso caminho, com doçura ou amargor. São elas que nos definem, que dizem quem somos.
Por isso o delicioso tom nostálgico e lírico que encontramos no seriado. Enquanto se passam as histórias, os acontecimentos são narrados em off por um Kevin mais velho e experiente, que descreve o que acontece e conta o que aprendeu de suas experiências. O roteiro, aliás, nunca cai em soluções fáceis e simplistas. O interessante é que as histórias são bem anticlimáticas: quando o protagonista se vê em alguma enrascada, você pode ter certeza de que não acontecerá nenhum milagre para salvá-lo e, se ele tem a chance de consertar as coisas, pode ter certeza de que ele estragará tudo. Somos assim. A vida é assim. Erramos, machucamos, mas somos eternas crianças, tentando aprender.
Já os finais são, geralmente, melancólicos. Mas plenos de poesia. Como o narrador diz no último episódio:

Crescer é algo muito rápido. Um dia você usa fraldas e no outro você vai embora. Mas as memórias da infância permanecem com você. Lembro-me de um lugar, uma cidade, uma casa como várias outras casas, um quintal como vários outros quintais, em uma rua como várias outras ruas. E o fato é que, após todos estes anos, eu ainda olho para trás: foram anos incríveis.

sábado, 26 de janeiro de 2008

AFINIDADE

A afinidade não é o mais brilhante, mas o mais sutil,
delicado e penetrante dos sentimentos.
O mais independente.

Não importa o tempo, a ausência, os adiamentos,
as distâncias, as impossibilidades.
Quando há afinidade, qualquer reencontro retoma a relação,
o diálogo, a conversa, o afeto, no exato ponto em que foi interrompido.
Afinidade é não haver tempo mediando a vida.

É uma vitória do adivinhado sobre o real.
Do subjetivo sobre o objetivo.
Do permanente sobre o passageiro.
Do básico sobre o superficial.
Ter afinidade é muito raro.

Mas quando existe não precisa de códigos verbais para se manifestar.
Existia antes do conhecimento, irradia durante e permanece depois
que as pessoas deixaram de estar juntas.
O que você tem dificuldade de expressar a um não afim, sai simples
e claro diante de alguém com quem você tem afinidade.

Afinidade é ficar longe pensando parecido a respeito dos mesmos
fatos que impressionam, comovem ou mobilizam.
É ficar conversando sem trocar palavra.
É receber o que vem do outro com aceitação anterior ao entendimento.

Afinidade é sentir com.
Nem sentir contra, nem sentir para, nem sentir por, nem sentir pelo.
Quanta gente ama loucamente, mas sente contra o ser amado.
Quantos amam e sentem para o ser amado, não para eles próprios.

Sentir com é não ter necessidade de explicar o que está sentindo.
É olhar e perceber.
É mais calar do que falar.
Ou quando é falar, jamais explicar, apenas afirmar.

Afinidade é jamais sentir por.
Quem sente por, confunde afinidade com masoquismo.
Mas quem sente com, avalia sem se contaminar.
Compreende sem ocupar o lugar do outro.
Aceita para poder questionar.
Quem não tem afinidade, questiona por não aceitar.

Só entra em relação rica e saudável com o outro,
quem aceita para poder questionar.
Não sei se sou claro: quem aceita para poder questionar,
não nega ao outro a possibilidade de ser o que é, como é, da maneira que é.
E, aceitando-o, aí sim, pode questionar, até duramente, se for o caso.
Isso é afinidade.
Mas o habitual é vermos alguém questionar porque não aceita
o outro como ele é. Por isso, aliás, questiona.
Questionamento de afins, eis a (in)fluência.
Questionamento de não afins, eis a guerra.

A afinidade não precisa do amor. Pode existir com ou sem ele.
Independente dele. A quilômetros de distância.
Na maneira de falar, de escrever, de andar, de respirar.
Há afinidade por pessoas a quem apenas vemos passar,
por vizinhos com quem nunca falamos e de quem nada sabemos.
Há afinidade com pessoas de outros continentes a quem nunca vemos,
veremos ou falaremos.

Quem pode afirmar que, durante o sono, fluidos nossos não saem
para buscar sintomas com pessoas distantes,
com amigos a quem não vemos, com amores latentes,
com irmãos do não vivido?

A afinidade é singular, discreta e independente,
porque não precisa do tempo para existir.
Vinte anos sem ver aquela pessoa com quem se estabeleceu
o vínculo da afinidade!
No dia em que a vir de novo, você vai prosseguir a relação
exatamente do ponto em que parou.
Afinidade é a adivinhação de essências não conhecidas
nem pelas pessoas que as tem.

Por prescindir do tempo e ser a ele superior,
a afinidade vence a morte, porque cada um de nós traz afinidades
ancestrais com a experiência da espécie no inconsciente.
Ela se prolonga nas células dos que nascem de nós,
para encontrar sintonias futuras nas quais estaremos presentes.
Sensível é a afinidade.
É exigente, apenas de que as pessoas evoluam parecido.
Que a erosão, amadurecimento ou aperfeiçoamento sejam do mesmo grau,
porque o que define a afinidade é a sua existência também depois.

Aquele ou aquela de quem você foi tão amigo ou amado, e anos depois
encontra com saudade ou alegria, mas percebe que não vai conseguir
restituir o clima afetivo de antes,
é alguém com quem a afinidade foi temporária.
E afinidade real não é temporária. É supratemporal.
Nada mais doloroso que contemplar afinidade morta,
ou a ilusão de que as vivências daquela época eram afinidade.
A pessoa mudou, transformou-se por outros meios.
A vida passou por ela e fez tempestades, chuvas,
plantios de resultado diverso.

Afinidade é ter perdas semelhantes e iguais esperanças,
é conversar no silêncio, tanto das possibilidades exercidas,
quantos das impossibilidades vividas.

Afinidade é retomar a relação do ponto em que parou,
sem lamentar o tempo da separação.
Porque tempo e separação nunca existiram.
Foram apenas a oportunidade dada (tirada) pela vida,
para que a maturação comum pudesse se dar.
E para que cada pessoa pudesse e possa ser, cada vez mais,
a expressão do outro sob a forma ampliada e
refletida do eu individual aprimorado.
Arthur da Távola

quarta-feira, 23 de janeiro de 2008

Bem ao gosto de Camões

Soneto de Carnaval

Distante o meu amor, se me afigura
O amor como um patético tormento
Pensar nele é morrer de desventura
Não pensar é matar meu pensamento

Seu mais doce desejo se amargura
Todo o instante perdido é um sofrimento
Cada beijo lembrando uma tortura
Um ciúme do próprio ciumento.

E vivemos partindo, ela de mim
E eu dela, enquanto breves vão-se os anos
Para a grande partida que há no fim

De toda a vida e todo o amor humanos:
Mas tranqüila ela sabe, e eu sei tranqüilo
Que se um fica o outro parte a redimi-lo.

Vinícius de Moraes

Camões

Busque Amor novas artes, novo engenho
para matar-me, e novas esquivanças;
que não pode tirar-me as esperanças,
que mal me tirará o que não tenho.

Olhai de que esperanças me mantenho
Vede que perigosas seguranças!
Que não temo contrastes, nem mudanças,
andando em bravo mar, perdido o lenho.

Mas, conquanto não pode haver desgosto
onde esperança falta, lá me esconde
Amor um mal que mata e não se vê.

Que dias há que na alma me tem posto
um não sei quê, que nasce não sei onde,
vem não sei como e dói não sei porquê.

terça-feira, 22 de janeiro de 2008

Gostar é tão fácil que ninguém aceita aprender

Talvez seja tão simples, tolo e natural que você nunca tenha parado para pensar: aprenda a fazer bonito o seu amor. Ou fazer o seu amor ser ou ficar bonito. Aprenda, apenas, a tão difícil arte de amar bonito. Gostar é tão fácil que ninguém aceita aprender.
Tenho visto muito amor por aí, Amores mesmo, bravios, gigantescos, descomunais, profundos, sinceros, cheios de entrega, doação e dádiva, mas esbarram na dificuldade de se tornar bonito. Apenas isso: bonitos, belos ou embelezados, tratados com carinho, cuidado e atenção. Amores levados com arte e ternura de mãos jardineiras.
Aí esses amores que são verdadeiros, eternos e descomunais de repente se percebem ameaçados apenas e tão somente porque não sabem ser bonitos: cobram; exigem; rotinizam; descuidam; reclamam; deixam de compreender; necessitam mais do que oferecem; precisam mais do que atendem; enchem-se de razões. Sim, de razões. Ter razão é o maior perigo no amor.
Quem tem razão sempre se sente no direito (e o tem) de reinvindicar, de exigir justiça, eqüidade, equiparação, sem atinar que o que está sem razão talvez passe por um momento de sua vida no qual não possa ter razão. Nem queira. Ter razão é um perigo: em geral enfeia o amor, pois é invocado com justiça mas na hora errada. Amar bonito é saber a hora de ter razão.
Ponha a mão na consciência. Você tem certeza que está fazendo o seu amor bonito?
De que está tirando do gesto, da ação, da reação, do olhar, da saudade, da alegria do encontro, da dor do desencontro, a maior beleza possível? Talvez não. Cheio ou cheia de razões, você espera do amor apenas aquilo que é exigido por suas partes necessitadas, quando talvez dele devesse pouco esperar, para valorizar melhor tudo de bom que de vez em quando ele pode trazer.
Quem espera mais do que isso sofre, e sofrendo deixa de amar bonito. Sofrendo, deixa de ser alegre, igual criança. E sem soltar a criança, nenhum amor é bonito.
Não tema o romantismo. Derrube as cercas da opinião alheia. Faça coroas de margaridas e enfeite a cabeça de quem você ama. Saia cantando e olhe alegre. Recomendam-se: encabulamentos; ser pego em flagrante gostando; não se cansar de olhar, e olhar; não atrapalhar a convivência com teorizações; adiar sempre, se possível com beijos, “aquela conversa importante que precisamos ter”, arquivar se possível, as reclamações pela pouca atenção recebida. Para quem ama toda atenção é sempre pouca. Quem ama feio não sabe que pouca atenção pode ser toda atenção possível. Quem ama bonito não gasta o tempo dessa atenção cobrando a que deixou de ter.
Não teorize sobre o amor (deixe isso para nós, pobres escritores que vemos a vida como criança de nariz encostado na vitrine, cheia de brinquedos dos nossos sonhos): não teorize sobre o amor, ame. Siga o destino dos sentimentos aqui e agora.
Não tenha medo exatamente de tudo o que você teme, como: a sinceridade; não dar certo; depois vir a sofrer (sofrerá de qualquer jeito); abrir o coração; contar a verdade do tamanho do amor que sente.
Jogue pro alto todas as jogadas, estratagemas, golpes, espertezas, atitudes sabidamente eficazes (não é sábio ser sabido): seja apenas você no auge de sua emoção e carência, exatamente aquele você que a vida impede de ser. Seja você cantando desafinado, mas todas as manhãs. Falando besteiras, mas criando sempre. Gaguejando flores. Sentindo o coração bater como no tempo do Natal infantil. Revivendo os carinhos que instruiu em criança. Sem medo de dizer, eu quero, eu gosto, eu estou com vontade.
Talvez aí você consiga fazer o seu amor bonito, ou fazer bonito o seu amor, ou bonitar fazendo seu amor, ou amar fazendo o seu amor bonito (a ordem das frases não altera o produto), sempre que ele seja a mais verdadeira expressão de tudo o que você é e nunca, deixaram, conseguiu, soube, pôde, foi possível, ser.
Se o amor existe, seu conteúdo já é manifesto. Não se preocupe mais com ele e suas definições. Cuide agora da forma. Cuide da voz. Cuide da fala. Cuide do cuidado. Cuide do carinho. Cuide de você. Ame-se o suficiente para ser capaz de gostar do amor e só assim poder começar a tentar fazer o outro feliz.


Arthur da Távola

Contrato de Casamento

Na semana passada, comemorei trinta anos de casamento. Recebemos dezenas de congratulações de nossos amigos, algumas com o seguinte adendo assustador: "Coisa rara hoje em dia". De fato, 40% de meus amigos de infância já se separaram, e o filme ainda nem terminou. Pelo jeito, estamos nos esquecendo da essência do contrato de casamento, que é a promessa de amar o outro para sempre. Muitos casais no altar acreditam que estão prometendo amar um ao outro enquanto o casamento durar. Mas isso não é um contrato. Recentemente, vi um filme em que o mocinho terminava o namoro dizendo "vou sempre amar você", como se fosse um prêmio de consolação. Banalizamos a frase mais importante do casamento. Hoje, promete-se amar o cônjuge até o dia em que alguém mais interessante apareça. "Eu amarei você para sempre" deixou de ser uma promessa social e passou a ser simplesmente uma frase dita para enganar o outro. Contratos, inclusive os de casamento, são realizados justamente porque o futuro é incerto e imprevisível. Antigamente, os casamentos eram feitos aos 20 anos de idade, depois de uns três anos de namoro. A chance de você encontrar sua alma gêmea nesse curto período de pesquisa era de somente 10%, enquanto 90% das mulheres e homens de sua vida você iria conhecer provavelmente já depois de casado. Estatisticamente, o homem ou a mulher "ideal" para você aparecerá somente, de fato, depois do casamento, não antes. Isso significa que provavelmente seu "verdadeiro amor" estará no grupo que você ainda não conhece, e não no grupinho de cerca de noventa amigos da adolescência, do qual saiu seu par. E aí, o que fazer? Pedir divórcio, separar-se também dos filhos, só porque deu azar? O contrato de casamento foi feito para resolver justamente esse problema. Nunca temos na vida todas as informações necessárias para tomar as decisões corretas. As promessas e os contratos preenchem essa lacuna, preenchem essa incerteza, sem a qual ficaríamos todos paralisados à espera de mais informação. Quando você promete amar alguém para sempre, está prometendo o seguinte: "Eu sei que nós dois somos jovens e que vamos viver até os 80 anos de idade. Sei que inexoravelmente encontrarei centenas de mulheres mais bonitas e mais inteligentes que você ao longo de minha vida e que você encontrará dezenas de homens mais bonitos e mais inteligentes que eu. É justamente por isso que prometo amar você para sempre e abrir mão desde já dessas dezenas de oportunidades conjugais que surgirão em meu futuro. Não quero ficar morrendo de ciúme cada vez que você conversar com um homem sensual nem ficar preocupado com o futuro de nosso relacionamento. Nem você vai querer ficar preocupada cada vez que eu conversar com uma mulher provocante. Prometo amar você para sempre, para que possamos nos casar e viver em harmonia". Homens e mulheres que conheceram alguém "melhor" e acham agora que cometeram enorme erro quando se casaram com o atual cônjuge esqueceram a premissa básica e o espírito do contrato de casamento. O objetivo do casamento não é escolher o melhor par possível mundo afora, mas construir o melhor relacionamento possível com quem você prometeu amar para sempre. Um dia, vocês terão filhos e, ao colocá-los na cama, dirão a mesma frase: que irão amá-los para sempre. Não conheço pais que pensam em trocar os filhos pelos filhos mais comportados do vizinho. Não conheço filho que aceite, de início, a separação dos pais e, quando estes se separam, não sonhe com a reconciliação da família. Nem conheço filho que queira trocar os pais por outros "melhores". Eles aprendem a conviver com os pais que têm. Casamento é o compromisso de aprender a resolver as brigas e as rusgas do dia-a-dia de forma construtiva, o que muitos casais não aprendem, e alguns nem tentam aprender. Obviamente, se sua esposa se transformou numa megera ou seu marido num monstro, ou se fizeram propaganda enganosa, a situação muda. Para aqueles que querem ter vantagem em tudo na vida, talvez a saída seja postergar o casamento até os 80 anos. Aí, você terá certeza de tudo.
KANITZ, Stephen. "Ponto de Vista". VEJA, Rio de Janeiro, 29 set. 2004. p.22. (Texto adaptado)

Um dos quadrinhos mais inteligentes que já vi!

segunda-feira, 21 de janeiro de 2008



"How happy is the blameless Vestal’s lot!
The world forgetting, by the world forgot:
Eternal sunshine of the spotless mind!
Each player accepted, and each wish resign’d."
Alexander Pope

Um exemplo


Professor de português sofre, gente!

Sobre a auto-ajuda

Ajude-se
O gênero literário que mais cresce no mundo causa polêmica entre especialistas. Afinal, a auto-ajuda pode mesmo ajudar você?
Alexandre Petillo e Allyson de Sousa

Houve um tempo em que as listas de livros mais vendidos de jornais e revistas dividiam-se em 2 categorias. Na primeira, estavam os livros de ficção: romances, novelas, coletâneas de contos. Na segunda, os livros de não-ficção: memórias, biografias, ensaios literários. Mas lá pelos anos 60, a lista de não-ficção passou a exibir títulos bem diferentes. Eram manuais de autoconhecimento, dicas para um casamento mais feliz, fórmulas para que o leitor pudesse ser bem-sucedido. Os editores dos suplementos e seções especializadas se apavoraram. Afinal, aquelas obras, vistas como um gênero menor, começaram a não deixar espaço nem para trabalhos de inegável qualidade literária. Assim, em 1983, o New York Times criou uma lista exclusiva para o que foi chamado de "livros de aconselhamento". No texto que explicava a mudança, os editores avisaram que "sem essa nova categoria, até mesmo o trabalho mais atrativo de autêntica não-ficção poderia nunca mais aparecer na lista de mais vendidos".
Jornais e revistas do mundo seguiram o exemplo - e pelos mesmos motivos. De 2000 a 2004, o mercado americano desses livros cresceu 50%. No Brasil, a cifra é ainda mais impressionante. Enquanto o mercado editorial cresceu 35% na última década, o filão de auto-ajuda acumulou impressionantes 700% de aumento.
O arrebatamento de leitores pelo mundo foi acompanhado por um proporcional aumento das críticas. Nenhum outro gênero literário sofre tantos bombardeios: os livros são chamados de pobres, superficiais e até de alienadores. Mas o que a demanda por eles diz sobre a sociedade em que vivemos? E é possível tirar algum proveito da ajuda oferecida por eles?

Como tudo começou?

Uma das acusações formuladas contra o gênero de auto-ajuda diz que os livros criam pessoas alienadas, incapazes de tomar atitudes. Assim, não deixa de ser irônico que o pioneiro do gênero, o cara que inclusive cunhou o termo para o qual os literatos torcem o nariz hoje em dia, tenha sido o médico escocês Samuel Smiles. Smiles (cujo sobrenome significa sorrisos em português, dando um tom ainda mais irônico à história) abandonou a medicina em 1830 para se tornar uma das figuras mais engajadas da política de sua época. Foi um dos principais defensores de idéias como o sufrágio universal, o voto secreto e a abolição da comprovação de renda para candidatos a cargos legislativos.
Mas na década de 1850, ele começou a se decepcionar com a vida pública. "Uma reforma meramente política não curará os males que hoje atingem a sociedade", começou a dizer. No lugar de tentar mudar a sociedade, passou a promover idéias que pudessem transformar as pessoas. Em 1859, publicou Self-Help (lançado no Brasil sob o título Ajuda-te, mas cuja tradução mais fiel seria o conhecido termo "auto-ajuda"), uma coletânea de biografias de trabalhadores comuns. Smiles escolheu pessoas cujas trajetórias de vida, marcadas pela persistência e capacidade de lutar contra as adversidades, poderiam servir de exemplo a outros. Estava inaugurada a cultura de auto-ajuda.
Mas foi só em 1936 que o gênero ganhou os contornos de hoje, com o sucesso instantâneo Como Fazer Amigos e Influenciar Pessoas. O livro do vendedor Dale Carnegie foi concebido como um guia para comerciantes, mas se tornou um dos maiores sucessos na história do mercado editorial. O segredo? Dar dicas práticas, de maneira direta e usando exemplos do cotidiano para ilustrar as situações. "Evite criticar ou condenar as pessoas ao seu redor", "encoraje os outros a falar deles mesmos" e "dramatize suas idéias quando for contá-las a alguém" são exemplos dos conselhos que já foram lidos por mais de 15 milhões de pessoas em todo o mundo.
Os ensinamentos de Dale Carnegie acabaram se transformando em uma rede internacional de treinamento profissional, que conta com 2 mil unidades espalhadas por mais de 70 países, inclusive o Brasil, e não vive só de livros. Ela oferece cursos, organiza palestras e vende produtos. É uma prova de que, à medida que conquistava o mercado, a cultura de auto-ajuda se espalhava também para fora das livrarias.

Como reconhecer um?

Se você entrar em uma livraria, não vai ter grandes problemas em reconhecer os livros de auto-ajuda. Basta se dirigir à maior prateleira da loja. Mas talvez não seja tão fácil definir o que faz e o que não faz parte do gênero. A obra de Paulo Coelho, por exemplo, costuma receber a etiqueta. "É a temática esotérica que o aproxima do gênero de auto-ajuda. Mas não há dúvidas de que os livros de Paulo Coelho são romances, ou novelas", diz o historiador gaúcho Mario Maestri, autor de Por Que Paulo Coelho Teve Tanto Sucesso.
Ao contrário dos títulos de Paulo Coelho, livros de auto-ajuda não são romances, mas ensaios: textos analíticos sobre um assunto específico. Eles se dirigem diretamente ao leitor, tratando-o de forma pessoal. Falam com "você". Não é à toa que, em inglês, receberam a denominação "livros de aconselhamento". O objetivo deles é servir, ainda que temporariamente, como um amigo ou professor que sempre tem uma palavra de apoio na ponta da língua. Aliás, e apesar de não haver estudos específicos sobre reações cerebrais e livros de auto-ajuda, alguns psicanalistas acreditam que as mensagens contidas neles atuam no cérebro da mesma forma que uma conversa com pessoas em que confiamos: estimulam o lado direito do cérebro, responsável pelas emoções, e ativam a área responsável pelo prazer.
É para que esse "papo" tenha ainda mais efeito que os livros costumam usar letras grandes, tabelas e recapitulações. A idéia é facilitar o quanto puderem a leitura. Nesse sentido, outro trunfo do gênero são as metáforas. "Jogue o jogo da vida como um centroavante" ou "Tudo o que você precisa é lapidar o diamante bruto que há dentro de você" são exemplos de mensagens de alguns dos best sellers do gênero. Essas comparações podem ajudar o leitor a entender mais claramente algo que ele já intuía, ajudando-o a modificar comportamentos. Mas há quem diga que o uso recorrente deste artifício não passa de uma tentativa de maquiar idéias óbvias. "A retórica adotada pela cultura da auto-ajuda me lembra uma frase que Larry Bird (jogador de basquete) disse certa vez a um repórter. 'Tudo o que sei é que nós ganhamos 100% dos jogos em que terminamos com mais pontos no placar'", escreveu Steve Salerno no livro Sham: How the Gurus of the Self-Help Movement are Making us Helpless ("Fraude: Como os Gurus do Movimento de Auto-Ajuda Estão nos Tornando Inúteis"), que acaba de ser lançado nos EUA.
Outra característica típica é a promoção da idéia de que você é o único responsável por sua felicidade e pode se aprimorar confiando única e exclusivamente em seus poderes interiores. "Quando as pessoas se voltam à cultura de auto-ajuda, elas estão apostando em sua invencibilidade - e negando a vulnerabilidade e fragilidade humana", diz a socióloga Micki McGee, da Universidade de Nova York.
Mas o contorno mais definitivo do que é a literatura de auto-ajuda está, sem dúvida, no objetivo dos livros. Todos eles - seja pelo sucesso profissional, pela educação dos filhos ou pela capacidade de fazer sexo como uma atriz pornô - prometem fazer de você uma pessoa mais feliz. Ou melhor, uma pessoa 100% feliz. "Os livros destinados a mulheres são a prova disso. Eles costumam dizer que é possível ser ao mesmo tempo mãe, empresária e esposa de sucesso. Isso é impossível", diz Marcelo Caixeta, especialista em psicologia médica familiar pela Universidade de Paris e autor do livro Psiquiatria Clínica. "Em algum momento, ela terá de renunciar a alguma coisa pela outra. Na vida é assim: sacrifícios são necessários."

Por que tanto sucesso?

A explicação mais recorrente é exatamente a promessa de que podemos, sim, driblar os sacrifícios, romper os paradigmas e ser felizes - moeda, aliás, das mais valiosas nos dias de hoje. "A burguesia, a classe social que conduz a era moderna, acabou com o sofrimento e impôs a felicidade como regra", escreveu o filósofo Pascal Bruckner em A Euforia Perpétua. Para Bruckner, essa obrigação nos coloca em condições ideais de consumir fórmulas milagrosas, entre elas, todo tipo de auto-ajuda. "Existe um arsenal de apetrechos que tenho chamado de felicidade automática", escreveu Bruckner.
Além disso, a falta de rumo decorrente das mudanças comportamentais do século 20 acabaram por deixar as pessoas cada vez mais carentes de um manual (ou um guru) que lhes explique o que fazer e como. "Hoje, esses livros ocupam um lugar que, antigamente, as religiões ocupavam", diz a psicanalista Giselle Groeninga, diretora do Instituto de Direito da Família.
Realmente tempos bicudos na economia ou política (que deixam a amarga sensação de desilusão) ou períodos de grandes mudanças de comportamento (que nos fazem questionar nossos papéis dentro da sociedade ou da comunidade) parecem favorecer o consumo de livros de auto-ajuda. De acordo com a Câmara Brasileira do Livro, a maior expansão no Brasil aconteceu na época do chamado "confisco" do ex-presidente Fernando Collor de Mello. Em 1994, 107 títulos venderam 410 mil exemplares no país, um recorde que ainda não foi batido (mas que - pelas notícias de Brasília - pode acabar sendo superado em 2005).
Em 2001, uma pesquisa patrocinada por entidades do mercado editorial brasileiro sugeriu ainda uma outra explicação para o fenômeno: o típico leitor do gênero é um trabalhador assalariado, das classes B e C, que ganha entre 500 e 3 mil reais por mês. Ou seja, é alguém em busca de ascensão social. O resultado não surpreende a socióloga Micki McGee. Em um livro que será lançado em setembro nos EUA, McGee defende a tese de que o boom da auto-ajuda é um sintoma da necessidade de reciclagem que o mercado impõe aos trabalhadores que querem se destacar. "O aumento do consumo de auto-ajuda é um sintoma do declínio da economia. Os trabalhadores respondem às dificuldades do mercado de trabalho tentando 'se aprimorar' para que continuem empregáveis", diz.

Eles funcionam?

"O que ganhamos em troca dos 8,5 bilhões de dólares que gastamos com auto-ajuda todos os anos?", escreveu Steve Salerno na introdução do livro Sham. "A resposta: não há como saber. Tanto dinheiro e tão poucos resultados documentados." Realmente, é muito difícil fazer qualquer afirmação conclusiva sobre os benefícios de tantos livros, cursos e palestras, já que não há quase nenhum registro sobre o assunto. E um dos problemas é que isso acaba criando uma série de mitos. "Algumas pessoas costumam dizer, por exemplo, que mulheres lêem mais auto-ajuda. Nas informações que revisei, eu não encontrei confirmação para esses dados", diz McGee.
Apesar da falta de evidências (tanto do lado de quem apóia quanto do de quem critica), a tese defendida por Steve Salerno é que não estamos ganhando nada em troca do nosso dinheiro. Ao contrário, estamos perdendo. Em Sham, ele conta que os levantamentos de editoras sobre público-alvo mostram que o leitor que comprou um livro sobre como melhorar o casamento vai comprar todas as outras obras lançadas sobre o assunto. "Esse dado me impressionou. Tudo bem que pessoas apaixonados por animais de estimação leiam tudo sobre o assunto. Mas no caso de auto-ajuda a coisa é diferente. Os livros prometem resolver o seu problema - ou ao menos aliviá-lo. As pessoas não deveriam precisar de mais e mais ajuda naquela área", escreveu. A conclusão a que ele chegou é que os consumidores desses livros não aprendem com eles, apenas passam a viver num mundo de fantasia enquanto dura a leitura. "Fracasso e estagnação são pontos centrais para o movimento de auto-ajuda", escreveu.
O sociólogo paulista Francisco Rüdiger, autor de Literatura de Auto-Ajuda e Individualismo, tem uma visão parecida. Para ele, o gênero tem por alvo pessoas que provavelmente nunca poderão chegar a ser bem-sucedidas. "A modernidade coloca a cada um a exigência de ser único, diferente e bem-sucedido. Para os que falham, que não conseguem sucesso, é que são publicados os textos de auto-ajuda", diz.
Já os autores recorrem a 2 argumentos principais para provar a eficiência dos seus livros: o fato de que eles vendem muito (ou seja, satisfazem os leitores) e o fato de estarem no mercado há anos e conquistando cada vez mais espaço. "Mas isso não é prova de que funciona como desejado, mas que a auto-ajuda realiza, em seu próprio consumo, certos sonhos e desejos do homem contemporâneo", diz Rüdiger.
Alguém que tenha encontrado num livro de auto-ajuda o conforto necessário para um momento de dor, ou que tenha aprendido dicas para se aprimorar profissionalmente, por exemplo, terá uma razão bem mais simples para o sucesso do filão. Dirá que a literatura de auto-ajuda vende porque funciona. A verdade é que, muitas vezes, livros de auto-ajuda acabam sendo julgados com a lente da descrença que não faz distinção entre obras boas e ruins. "Assim como em qualquer setor, há livros de melhor qualidade e aqueles de qualidade duvidosa", diz Bernardo Gurbanov, da Câmara Brasileira do Livro. Para conseguir tirar melhor proveito desses livros, é importante prestar atenção em alguns detalhes na hora de escolher um na prateleira.
Mas há quem diga que mesmo o livro de auto-ajuda da melhor qualidade não pode fazer mais do que incutir em você o desejo de mudança. Mudar efetivamente já é outra história. "Como você espera quebrar um comportamento de uma vida toda só com a leitura de um livro?", diz Archie Brodsky, da Escola de Medicina de Harvard e autor de If This is Love, How Can I Feel so Insecure ("Se Isso É Amor, Como Posso me Sentir Tão Inseguro?", inédito no Brasil).
Como Brodsky, Micki McGee também acredita que esses livros podem trazer algum alento. E talvez isso tenha a ver com a experiência pessoal dela. "Quando eu era criança, meu pai estava passando pelo que hoje chamamos de fase de transição, mas que na época era conhecido como desemprego mesmo. A casa vivia cheia de livros que prometiam ajudar a ele se reposicionar", diz. Mas ela endossa o coro dos que não acreditam em grandes transformações. "Mesmo porque muito da literatura de auto-ajuda se apóia em metáforas e parábolas de textos bem conhecidos - como a Bíblia ou alguns sermões clássicos da tradição protestante. Esses livros podem animar os leitores, mas não exigem deles reflexão séria ou ação." Ou seja, o problema não parece ser ler exemplares do gênero, mas acreditar que, sozinhos, eles poderão tornar sua vida melhor. E nisso concordam os 2 lados da discussão. "Todo sonho tem de ser transformado em projeto", diz o psicoterapeuta Içami Tiba, autor de Quem Ama Educa, um sucesso editorial, que já está na 114ª edição. "O que não vale é fazer da procura um projeto de vida."

Paradidáticos

Nesse último sábado, li uma resenha de Michel Laub sobre o relançamento do livro "Contos da Selva" (1918), do uruguaio Horacio Quiroga (1878-1937), anunciado como "infanto-juvenil". No primeiro parágrafo, ele diz:

A ficção infanto-juvenil costuma ser avaliada com certa condescendência, mais comprometida com a formação do cidadão que com a do leitor.
Não é difícil perceber os resultados desse paternalismo: histórias politicamente corretas, com temas que tentam aproximar a literatura da "realidade cotidiana" ou despertar a consciência para a diversidade social, étnica e religiosa do mundo, freqüentemente ganham elogios e adoções em escolas na mesma medida em que sua estética insossa é ignorada.

Trata-se de livros que chamamos paradidáticos. E são péssimos. Antes o professor quer que seus alunos leiam tais obras para ter consciência sobre sexualidade (hitorinhas sobre AIDS, namoro, gravidez), cidadania ou coisa que o valha. É claro que certo grau consciência é bem-vindo, mas, quando esse é o fim último da obra, muito do seu valor se perde. Não há lirismo nesses livros, preocupação com a linguagem ou com a fabulação. Duvido que provoquem o encantamento e dispertem a avidez literária que um Julio Verne, um Alexandre Dumas, um Michael Ende, uma J. K. Rowling podem provocar. São livros fininhos, desinteressantes e... vazios.



domingo, 20 de janeiro de 2008


Busco na literatura um pouco da humanidade que me falta.


sábado, 19 de janeiro de 2008

Reflexões sobre Literatura

A trajetória das nossas leitura é muito parecido com os caminhos da nossa vida amorosa.
Quando começamos a sair, "ficar", namorar, não temos muita noção de como conquistar aquela garota. Como cantá-la? O que falar no primeiro encontro? Beijo de língua ou não? Ligo ou não ligo pra ela?
A menina pode te fazer de gato e sapato, mentir, trair, que vc acredita que ela é uma pessoa fantástica e sincera. Ah, o amor é o maior de todos os cliclês! Aquele que tudo vence, que é eterno... Praticamente um desenho da Disney!
Com o tempo, depois de muito amar, depois de muito quebrar a cara, a gente aprende as estratégias do jogo amoroso. Aprende qual cantada funciona, qual mulher vale o esforço, como beijar; reconhece se ela está te dando bola, quando ela está mentindo, quando ela está te manipulando etc.
Quando entramos no mundo da literatura, dá-se o mesmo. No início, é tudo maravilhoso. Um mar de descobertas e novas sensações. Somos como crianças aprendendo a amar. Tanto que não dá pra distinguir um Dan Brown de um Guimarães Rosa (e, geralmente, preferimos o primeiro como, geralmente, preferimos a garota mais bonita da sala e deixamos de lado aquela pessoa que está bem do nosso lado e que, realmente, vale a pena amar).
Ao avançarmos na floresta das leituras, aprendemos a reconhecer o estilo de cada autor e a entender as estratégias da narrativa. Você sabe quando o autor manipula seus sentimentos. Fica atento para o modo como ele lida com as palavras, como desenvolve as personagens, como lida com os clichês... Os lugares-comuns não são ruins, mas empregados em demasia empobrecem o texto.
É claro que ninguém começa lendo Proust. Raramente a gente começa a vida amorosa ficando com aquela "deusa" do colégio. A não ser que você seja superdotado (no primeiro caso) ou assustadoramente bonito (no segundo caso). Pra isso existem os Paulos Coelhos da vida. O problema é ficar apenas nestes.
Acho que foi Borges quem fez uma comparação entre as mulheres e a literatura. Disse que existem a mulheres fáceis e as mulheres difíceis, assim como existem as leituras fáceis e as difíceis. A mulheres fáceis se entregam a nós sem muita resistência, sem grande encanto e sem muito esforço. Logo, nos desinteressamos delas facilmente. É bom, mas não dura. O gostoso é lutar para conquistar uma mulher, aquela que não se entrega facilmente. Cheia de mistérios e segredos. Aquela que requer cantadas, flores, ligações, juramentos, lágrimas e que marca nossa vida de forma única. Qual você prefere?
A boa literatura é justamente aquela que não se entrega facilmente ao leitor, que requer uma boa dose de interpretação e de reflexão. Aquela que requer esforço e trabalho para, enfim, decifrá-la, traduzi-la.

sexta-feira, 18 de janeiro de 2008

Caco Galhardo


Podem me chamar de pornográfico, mas a tirada é genial!

Cabei de ler

Sempre

Sou o dono dos tesouros perdidos no fundo do mar.
Só que está perdido é nosso para sempre.
Nós só amamos os amigos mortos
E só as amadas mortas amam eternamente...

Mário Quintana

Mais Vinícius

"A maior solidão é a do ser que não ama. A maior solidão é a dor do ser que se ausenta, que se defende, que se fecha, que se recusa a participar da vida humana.
A maior solidão é a do homem encerrado em si mesmo, no absoluto de si mesmo,
o que não dá a quem pede o que ele pode dar de amor, de amizade, de socorro.
O maior solitário é o que tem medo de amar, o que tem medo de ferir e ferir-se,
o ser casto da mulher, do amigo, do povo, do mundo. Esse queima como uma lâmpada triste, cujo reflexo entristece também tudo em torno. Ele é a angústia do mundo que o reflete. Ele é o que se recusa às verdadeiras fontes de emoção, as que são o patrimônio de todos, e, encerrado em seu duro privilégio, semeia pedras do alto de sua fria e desolada torre."

Mas

Dialética

É claro que a vida é boa
E a alegria, a única indizível emoção
É claro que te acho linda
Em ti bendigo o amor das coisas simples
É claro que te amo
E tenho tudo para ser feliz
Mas acontece que eu sou triste...

Vinícius de Moraes

A condição humana parte II

quinta-feira, 17 de janeiro de 2008

Não como o resto dos homens

Sugestão
Cecilia Meireles

Sede assim — qualquer coisa
serena, isenta, fiel.

Flor que se cumpre,
sem pergunta.

Onda que se esforça,
por exercício desinteressado.

Lua que envolve igualmente
os noivos abraçados
e os soldados já frios.

Também como este ar da noite:
sussurrante de silêncios,
cheio de nascimentos e pétalas.

Igual à pedra detida,
sustentando seu demorado destino.
E à nuvem, leve e bela,
vivendo de nunca chegar a ser.

À cigarra, queimando-se em música,
ao camelo que mastiga sua longa solidão,
ao pássaro que procura o fim do mundo,
ao boi que vai com inocência para a morte.

Sede assim qualquer coisa
serena, isenta, fiel.

Não como o resto dos homens.

Californication



“Aqui estamos,” ela pensou, “no fim do mundo, no fim da civilização do oeste… e estamos todos tão desesperados para sentir algo… qualquer coisa, que caímos uns nos outros… e fodemos nossos caminhos ao longo do fim dos dias.”


Cena 1: Um carro percorre uma longa estrada vazia que dá para uma igreja. O motorista entra. Apaga um cigarro na pia batismal. O templo está vazio. Ele contempla a imagem de Jesus e diz:
- Olá, garotão. Somos apenas você e eu. Nós nunca fizemos isso antes, mas tempos desesperados requerem ações desesperadas. Meu nome é Hank...

(Uma freira aparece e o cumprimenta)
- Olá, Hank.
- Desculpe, irmã, eu apenas estava tentando ter um pequeno papo com o seu marido ali.
- Existe algo em que eu possa ajudá-lo?
- Oh, não... eu não iria querer incomodar uma pessoa de verdade com isso...
- Não é um incômodo, Hank. Na verdade, é pra isso que estou aqui.
- Bem, o negócio é o seguinte: estou tendo o que pode se chamar de "crise de fé". Quero dizer... pra simplificar, eu não consigo escrever. O que realmente é uma droga, porque supostamente eu sou um escritor. E um daqueles profissionais e tal... Não tenho conseguido escrever nem a porra de um predicado! Me desculpe, viu?! Minhas sinceras desculpas. Eu sou um fodido. Novamente, me desculpe! [pelo palavrão].
- Bem - diz a freira - , normalmente eu sugeriria alguns pais-nossos e um par de ave-marias, mas eu não acho que isso vá adiantar. Que tal um boquete? Um boquete iria te fazer sentir melhor?
- Um boquete vindo de você???
- Algo me diz que "ele" não vai se chupar sozinho, Hank.
- Não, mas... Mas você é uma freira! Uma freira completamente gostosa...

(A coisa começa pra valer e o personagem tapa a imagem de Cristo com a mão)

- Querido menino Jesus, Hank está indo pro Inferno... - diz ele.

Esse é o início de Californication, a melhor série dessa nova safra da TV paga. A melhor que vi desde a primeira temporada de "Lost". E isso já tem um bom tempo! Assisti aos dois primeiros episódios e já virei fã.
Só pra ter uma noção, a revista americana Rolling Stone disse que Californication é "o programa mais pornográfico que já assistimos na TV sem ter que colocar o número de nosso cartão de crédito antes".
E a revista diz mais: "Nos divertimos vendo o agente Mulder vidrado em nove pares de seios em apenas um episódio e usando termos sexuais que não ouvimos desde a época do colégio. Amamos a série, pois é uma comédia adulta que consegue ser realmente adulta."
Nessa série, David Duchovny (o agente Mulder da extinta Arquivo X) interpreta o escritor Hank, que vive uma vida de fama, álcool e sexo fácil. Ele é famoso por um ótimo livro que escreveu, mas atualmente enfrenta um bloqueio criativo. Sua ex-mulher, interpretada pela linda Natascha McElhone, está de casamento marcado com o dono de uma revista, que oferece um trabalho para ele. Aliás, Hank dormiu com a filha de 16 anos do dono da revista.
Seu ótimo livro foi adaptado para o cinema e Hank detestou. Parece que o diretor o transformou numa comédia romântica bem "sessão-da-tarde". Por isso ele odeia o diretor desse filme e fala mal dele para toda imprensa e freqüentemente eles brigam. Hank, claro, também dormiu com a mulher do diretor. Na verdade, ele dorme com qualquer coisa que respire e não tenha pêlos no rosto. Ao mesmo tempo, nutre uma profunda adoração pela sua ex-mulher, que lhe diz: "Você não me ama, Hank. Você ama a idéia do amor."
Californication é crua e direta. Um ótimo retrato da decadência uma sociedade que já perdeu a moral faz muito tempo. Diálogos perfeitos (não vejo bons diálogos assim na TV há séculos), produção caprichada e um elenco com atores inspirados. Existem momentos de muito humor e de ironia corrosiva, mas eles só vem para mostrar mais ainda a decadência de Hank (que é a decadência de todos nós).
Recomendo.

Joe Cocker - With a Little Help From My Friends (Woodstock)

What would you do if I sang out of tune
Would you stand up and walk out on me
Lend me your ears and I'll sing you a song
I will try not to sing out of key

ohh baby I get by,
(by with a little help of my friends)
All i need is my buddies
(try with a little help of my friends)
I said I want to get high I will
(High with a little help of my friends)
Who-Ho-Hoo-yeah

What do I do when my love is away,
(Does it worry for you to be alone?)
no no
How do I feel by the End of the day
(Are you said because your on your own)
I hope you Don't say it no more

(by with a little help of my friends)
Gonna get by with my friends
(try With a little help from my friends)
Heel-heel-heel I'll will try
(High with a little help from my friends)
Keeping it high I will

(Do you need anybody)
I need someone to love
(Could it be anybody)
All I need is someone, who knows just where I'm going yeah
Somebody who knows quiet sure, baby

(by with a little help from my friends)
Said I'm gonna make it with my friends, i will
(try with a little help from my friends)
Who-hoo-I wonna keep on trying
(high with a little help from my friends)
I'm gonna keep on trying

(Would you believe in a love at first sight?)
I'm certain it happens all the time yeah
(What do you see when you turn off the lights?)
I can't tell ya, but it sure feel like mine

(by with a little help of my friends)
Don't you know I'm gonna make it with my friends
(Try with a little help of my friends)
I promised my self I get by
(high with a little help of my friends)
Said I'm gonna try it a little to hard

(Do you need anybody)
ohaaa- yeah yeah yeah
(Could it be anybody)
Oh there's gonna be somebody
Ohh yeah yeah

(by with a little help from my friends)
Said i'm gonna get by with my friend, I tell ya
(try with a little help from my friends)
Ooh yes I'm gonna keep trying
(high with a little help from my friends)
Keeping it trying with my friends
(by with a little help from my friends)
Ooh you never gonna stop me anymore
(try with a little help from my friends)
I'll keep on trying
(high with a little help from my friends)
get on high, i'm wanna make time oh lord
Gonna get by with my friends

terça-feira, 15 de janeiro de 2008

O Ser e o Nada

Uma gota de Clarice


"E eis que depois de uma tarde de 'quem sou eu' e de acordar à uma hora da madrugada em desespero. Eis que às três horas da madrugada acordei e me encontrei.
Fui ao encontro de mim. Calma, alegre, plenitude sem fulminação.
Simplesmente, eu sou eu, você é você. É livre, é vasto, vai durar.
Eu não sei muito bem o que vou fazer em seguida mas, por enquanto, olha pra mim, e me ama! Não! Tu olhas pra ti e te amas.
É o que está certo."

Clarice Lispector. In: Água viva.

segunda-feira, 14 de janeiro de 2008

Por que bebemos tanto assim?

Falando sobre o fechamento do O'Malley's, lembrei-me dessa grande crônica do mestre Paulo Mendes Campos, bom escritor e bom bebedor.

Por que bebemos tanto assim?

Bar é um objeto que se gasta como camisa, isto é, depois de certo tempo de uso é sempre necessário comprar uma camisa nova e mudar de bar. É preciso escolher bem o nosso bar, pois tão desagradável quanto tomar um bonde errado é tomar um bar errado. O homem que toma o bar errado pode gerar aborrecimentos ou ser a vítima deles.
Não escrevo este artigo no bar. Não entendo pessoas que bebem para escrever. Georges Bernanos escrevia em bares com o risco de passar por bêbado, coisa que talvez tivesse sido (a afirmação é do próprio escritor católico) se as leis alfandegárias não taxassem tão alto os álcoois consoladores. A bebida consola; o homem bebe; logo, o homem precisa ser consolado. A dramaticidade fundamental do destino é o penhor dos fabricantes do veneno. Porque o álcool é um veneno mortal. Um veneno mortal que consola e... degrada o homem. Mas outro escritor católico (teve uma crise de irritação quando chegou a Nova Iorque durante a lei seca), o gordo, sutil e sedento G. K. Chesterton, nega que o álcool degrade o homem: o homem degrada o álcool.
Chesterton foi um louco que perdeu tudo, menos a razão; é claro, por isso mesmo, que a criatura humana é o princípio da degradação de todas as coisas sobre a Terra. O álcool é inocente. Só um típico alcoólico anônimo seria incapaz de entender a inocência do álcool e a inescrutável malícia dos homens.
Depois de dois escritores, cito agora um falecido artista de cinema, Humphrey Bogart, que dizia: "Todo homem está sempre três doses abaixo do normal." That's the question. Na verdade, não é bem isso: bebemos para empatar com o mundo. O mundo está sempre a ganhar da gente, de um a zero, dois a zero... Bebe-se na esperança de igualar o marcador. Uma ilusão, sem dúvida, mas toda la vida es sueño y los sueños sueños son. Calderón de la Barca, se bebia, era escondido; saiba portanto, leitor, que a sentença seguinte foi adulterada por mim: "Aún en sueños — no se pierde el beber bien."
Uma das exclamações mais doces (Luis de Góngora y Argote) da poesia espanhola é esta:

Oh bienaventurado
albergue a cualquier hora!

Um dos aforismos pungentes (Baudelaire) da literatura é este: "É preciso estar sempre bêbado — de vinho, de poesia, de religião."Uma expressão popular: beber para afogar as mágoas.
Bernanos, Chesterton, Humphrey Bogart, o falso Calderón de la Barca, Góngora e o povo estão perfeitamente certos: o homem bebe para disfarçar a humilhação terrestre, para ser consolado; para driblar a si mesmo; o homem bebe como o poeta escreve seus versos, o compositor faz uma sonata, o místico sai arrebatado pela janela do claustro, a adolescente adora cinema, o fiel se confessa, o neurótico busca o analista. Quem foge de si mesmo se encontra; quem procura encontrar-se afasta-se de si mesmo. Não é paradoxo, é o imbricamento humano. E este é uma espiral inflacionária cuja moeda, em desvalorização permanente, é a nossa precária percepção da realidade. Somos inflacionados pelo nosso próprio vazio: a reação nervosa da embriaguez parece encher-nos ou pelo menos atenuar a presença do espírito desesperado dentro do corpo, perfeitamente disposto a possuir os bens terrestres e gozá-los. Espírito e corpo não se entendem: o primeiro conhece exaustivamente a morte, enquanto o segundo é imortal, enquanto vive. Daí essa tocata e fuga a repetir-se indefinidamente dentro de cada ser, este desequilíbrio que nos leva ao bar, à igreja, ao consultório do analista, às alcovas sexuais, à arte, à ciência, à ambição de mando e dinheiro, a tudo. As fugas e fantasias são tantas, e tão arraigadas, que se confundem com a própria natureza humana. Não seria possível definir o homem como um animal que nasce, alimenta-se, pensa, reproduz e morre; o que interessa no homem é o que sobra; o fundamental nele é o supérfluo. Uma jovem atirou-se sem explicação dum décimo andar, um cientista experimentou em si mesmo o vírus duma doença mortal, um artista passa vários anos de fome e incompreensão para realizar uma obra, os tranqüilizantes são vendidos aos milhões, multidões acreditam na santidade duma menina, cresce o número de doentes mentais, o alcoolismo é um mal que se generaliza — estas são as manchetes que interessam à psicologia do indivíduo e da coletividade. Todos esses fatos, superficialmente plurais, possuem na base a singularidade da tristeza. É preciso beber. A natureza deu-nos a embriaguez natural do sono. Oito horas de sono não bastam. É preciso estar bêbado — de vinho, poesia, religião. É preciso estar bêbado de todas as mentiras vitais (a expressão é de Ibsen): de poder, de luxo, de luxúria, de bondade, de satanismo (o doutor Relling para consolar um pobre-diabo inventou para ele uma personalidade diabólica), de idealismo, de Deus, de violência, de humildade, de loucura, de qualquer coisa.
O álcool é tão-só a modalidade primária e comum à embriaguez. O bar é a primeira instância da causa do homem. O uísque (cachaça) é apenas uma das formas vulgares de todos os ritos milenares de encantamento.
O que comiam os centauros? O que transformava os homens em deuses? Que se comia durante as cerimônias dos Mistérios na Grécia? Provavelmente um cogumelo chamado amanita muscaria, incomparavelmente superior aos nossos melhores vinhos e aguardentes. O cogumelo leva-nos à morada de Deus — é o testemunho de uma médica e um banqueiro que o experimentavam várias vezes. Acredita Robert Graves que Sansão devia sua força aos cogumelos. A Sulamita refere-se aos cogumelos no Cântico dos Cânticos. Os indígenas mexicanos o usavam em suas festas rituais (culto ainda existente na província de Oaxaca). Portanto:
A embriaguez é religiosa, e o altar das religiões antigas inventou de certo modo a mesa do bar. Aí, o homem punha-se em comunicação com o espírito divino, ligava céu e terra, transcendia-se.
O homem entra no bar para transcender-se — eis a miserável verdade.
Entrei em muitos, bebo alguma coisa desde a minha adolescência, conheço bares em Belo Horizonte, Porto Alegre, Buenos Aires, Florianópolis, São Paulo, Rio, Salvador, Recife, Manaus, Brasília, João Pessoa, Petrópolis, Belém, Nova Iorque, Lisboa, Vigo, Londres, Stratford-on-Avon, Oxford, Paris, Grenoble, Gênova, Pisa, Arezzo, Florença, San Gemignano, Volterra, Spezia, Roma, Nápoles, Paestum, Reggio di Calabria, Messina, Catania, Siracusa, Licata, Agrigento, Marsala, Trapani, Palermo, Taormina, Veneza, Hamburgo, Berlim (Ocidental e Oriental), Heidelberg, Dusseldorf, Colônia, Munique, Goettingen, Francforte, Bonn, Varsóvia, Estocolmo, Leningrado, Moscou, Surrumi, Ircútsqui, Pequim, Múquiden, Xangai, Santa Luzia e Sabará...
Em 1954, viajando pela Alemanha de automóvel, cheguei pouco depois da meia-noite à cidade universitária de Goettingen. No Brasil, uma cidade cheia de estudantes costuma tumultuar-se pela madrugada. Mas Goettingen àquela hora entregava-se a um repouso unânime. Sem sono, reservei um quarto no hotel, perguntando ao empregado onde poderia beber qualquer coisa.
— Ah, senhor — respondeu entre sentido e orgulhoso o alemão —, Goettingen é uma cidade universitária, não existe nada aberto a esta hora.
— O senhor está completamente enganado — retruquei-lhe.
Ele se riu bondosamente de mim: tinha mais de 60 anos, nascera em Goettingen, conhecia todas as ruas da cidade, todos os bares, seria impossível encontrar qualquer venda aberta depois de meia-noite.
— O senhor está enganado — insistia eu.
Moeller, outro alemão, que viajava comigo, reforçou a opinião do empregado do hotel e começou a dissertar impertinentemente sobre as diferenças entre o Brasil e a Alemanha. Eu estava parecendo bobo — disse ele — não querendo aceitar sua germânica verdade: em Goettingen não havia um único bar aberto depois de meia-noite. A esta altura manifestei-lhes um princípio universal, pelo qual sempre me guiei:
— Pois fiquem vocês sabendo que em todas as cidades, todas as vilas e povoados do mundo, há pelo menos duas pessoas que continuam a beber depois de meia-noite; aqui em Goettingen há pelo menos duas pessoas que estão bebendo neste momento; vou encomendá-las.
Darwin Brandão, o terceiro homem nesta viagem, não me deixa mentir. Meio cético a respeito do meu princípio, mas solidário com o amigo, resolveu acompanhar-me, apesar do sarcasmo dissuasório de Moeller. Saímos para a noite morta de Goettingen, e vimos um gato, tão silencioso quanto os seus conterrâneos, ganhar às pressas o beirai dum telhado secular. Fomos andando pelas ruas paralisadas, eu tranqüilo, e Darwin me espiando de banda. No fim duma rua comprida e oblíqua, vi um cubo iluminado, mais parecido com um anúncio de barbearia, e afirmei:
— É ali. — Nas faces visíveis do cubo estava escrito: Weinclub. Ao fim da passagem lateral, por onde entramos, demos com a porta fechada. Batemos em vão, e já íamos embora, desapontados, quando notei no corredor uma escada circular para o porão, cavada na pedra. No primeiro patamar, ouvimos música. Tomei um ar superior de vidente e desci o segundo lance. Empurrada a grossa porta de carvalho (o carvalho é mera suposição), recebi uma salutar lufada de música, de tabaco, de gente, de aromas etílicos. Foi como se eu reconquistasse o paraíso. O Weinclub dançava e bebia animadamente, repleto de jovens universitários e lindas universitárias de bochechas coradas e riso amorável. Não havia uma única mesa vaga, mas três segundos depois eu estava a beber um magnífico branco do Reno, e a explicar para os estudantes, que nos acolheram com simpatia, o princípio universal que rege a vida noturna. E eles, os mais talentosos matemáticos do mundo, futuros inventores de balísticos e outros inteligentíssimos engenhos mortíferos, acataram o meu pacífico princípio como um axioma luminoso. Foi um dos bares mais consoladores de minha temporada sobre a Terra.
Um bar legal precisa apresentar cinco qualidades fundamentais: boa circulação de ar, bom proprietário, bons garçons, bons fregueses e boa bebida. Isto é raríssimo de acontecer. Quando o garçom é uma flor de sujeito, o dono do bar costuma ser uma besta; se os fregueses são alcoólicos esclarecidos, o ambiente às vezes é quente e abafado; vai ver um excelente e confortável bar refrigerado, e boa porcentagem de uísque é fabricada no Engenho de Dentro. Para dizer toda a verdade, o bar perfeito não existe.
Barmen and jockeys are the only people who are polite any more, doutrinou um homem que consumia álcool em quantidades industriais, o romancista Ernest Hemingway. O barman, de fato, é um dos segredos do bar. Cada freguês deve sentir a ilusão de que o barman tem uma predileção especial por ele, e em nome disso será capaz de resolver qualquer problema. O incompreensível é que resolvem mesmo. O homem que chega a uma grande metrópole desconhecida é como um avião voando em solidão por dentro dum espesso nevoeiro. Mas, se este homem pertence à comunidade internacional dos freqüentadores de bar, cada barman é uma torre com a qual ele poderá entrar em contato a fim de orientar-se. Os únicos estranhos aos quais eu falo sem timidez, com perfeita familiaridade, são os barmen, e estes igualmente reconhecem logo em mim o freguês escolado, curtido em todos os amargos, navegador de longo curso.
Todo freqüentador de bar tem o direito eventual de embriagar-se convenientemente uma vez por outra. Quem vende bebida deve ser linchado quando exige de seus fregueses comportamento de casa de chá. Aclarados neste ponto, podemos afirmar que o maior inimigo do bar e do alcoolismo é o mau bebedor que bebe anos a fio e não aprende a beber, o bebedor diariamente chato, incapaz de entender o tácito acordo de amabilidade e contenção que existe entre todos os bons bebedores do mundo. Eu os conheço todos e os abomino. Conheço toda a imensa variedade da espécie (sentimentalóides, untuosos, agressivos, prolixos, confidenciais, pedantes, questionadores, inoportunos, monocórdios, babugentos, ressentidos etc. etc). Ah, se um dia eu pendurar o meu copo numa prateleira, e passar a beber em casa, podereis estar certos, contemporâneos, de que foram os maus bebedores que me levaram a este extremo!
Não defendo o alcoolismo, sr. Alcoólico Anônimo. Queira entender-me com um pouco mais de sutileza, se me faz o favor. Modestamente embora, falando do alto duma tribuna para uma platéia vazia, defendo é o homem. O uísque não me interessa, o que me interessa é a criatura humana, esta pobre e arrogante criatura, já confrangida por um destino obscuro, arrumada odiosamente em castas duma sociedade sanguessuga, uma sociedade engenhosamente arquitetada para triturar as classes de baixo a fim de transformar a matéria-prima em petróleo, aço, eletricidade, veículos, aparelhos domésticos, tecidos, alimentos. Segue-se a segunda fase do processo industrial: correias de transmissão levam estes bens terrestres ao alto-forno, que os transforma em palácios, iates, cavalos de corridas, jóias, amantes de luxos, em todas as formas de prazer e domínio sobre a vida. Mas os ricos também bebem, e quanto! Bebem às vezes por má consciência, outras por má educação, e bebem porque todos os bens terrestres são fantasias que se desfazem de repente ao hálito da morte. Pois o que advogo no meu desespero-dialético é a melhor distribuição das fantasias terrestres. Será a única maneira eficiente de reduzir o alcoolismo. A máquina social cria sobre o indivíduo uma inumerável série de compreensões, que o desequilibram e infelicitam. O alcoolismo é uma das variadíssimas conseqüências desse extraordinário mal-estar coletivo. Transpondo a porta do bar, o homem age com toda a pureza e inocência, buscando fugir ao sofrimento, tentando cumprir a sua vocação para o prazer; se encontra no bar um novo mal, a degradação, o desemprego, a debilitação orgânica, a morte prematura, isto é outra história. A história triste das drinking classes.

Elegia para um bar


Recebo a notícia de que o O'Malley's fechou as portas. Foi o meu primeiro bar em São Paulo. Ou o meu bar primeiro. Como o primeiro beijo, a primeira namorada ou o primeiro porre. Era um pub um tanto quanto sórdido. Os melhores bares têm de ter algo de sórdido, de sujeira, de escuridão. Como se, ao adentrarmos neles, adentrássemos em nós mesmos: sórdidos, sujos e repletos de escuridão... Sempre em busca de sonhos. Essa doce ilusão pela qual procuramos estava lá, nas suas prostitutas baratas, nos seus ingleses e americanos bêbados, nos festejos anuais do St. Patrick's Day, na Erdinger's escura, no Kebabs apimentado.
Acompanhei suas mudanças e ele, as minhas: ele, com a troca de nome (antes chamava-se Finnigan's), a retirada do varal de calcinhas, a ampliação com o acréscimo de uma pequena boate, a entrada com consumação; eu, com a minha troca de eus, de namoradas, a retirada de alguns ideais e o acréscimo de algumas esperanças.
Bares são como mulheres. Devemos escolhê-los a dedo e sermos fiéis a eles. É preciso amá-los com egoísmo e volúpia. Ao menos até surgir outros mais interessantes em nossas vidas! Mas certas mulheres, assim como certos bares, mesmo quando passam pelas nossas vidas, deixam uma marca indelével na gente. Lembramos aquela pequena cicatriz que ela tinha no joelho, o perfume que usava, a maneira como sorria ou fazia amor. Do O'Malley's, eu me lembro dos poemas e das flores de papel endereçados às incautas senhoritas, do tombo que presenciei de um jovem que dormia sentado junto ao balcão, das fritas que dividi com uma garota-de-programa japonesa, das madrugadas em que fiquei por lá acompanhado da minha solidão, dos erros que cometi, das risadas que ofertei...
Hoje já não moro mais em São Paulo, mas o carrego sempre comigo, na minha memória. Muitas lembranças. Tantas lembranças como as das amadas que perdemos pela vida.