terça-feira, 13 de outubro de 2009

O Bote Salva-Vidas

Organizando meus velhos arquivos, me deparei com a transcrição de um capítulo do ótimo O porco filósofo. Devo tê-lo usado em uma das minhas aulas de argumentação. Recomendo a leitura!


"— Certo – disse Roger, autonomeado capitão do bote salva-vidas – Há doze de nós neste barco, o que é ótimo, porque a capacidade dele é de até vinte pessoas. E temos bastantes provisões para durar até que alguém chegue para nos resgatar, o que não vai demorar mais que 24 horas. Então, eu acho que isso significa que podemos nos permitir com segurança um biscoito de chocolate extra e uma dose de rum para cada um. Alguma objeção?
— Por mais que eu, sem dúvida, desfrutasse do biscoito extra – disse o Sr. Mates –, nossa prioridade agora não deveria ser levar o barco até ali e pegar a pobre mulher que está se afogando e há meia hora está gritando para nós?
Algumas pessoas baixaram os olhos para o fundo do barco, envergonhadas, enquanto outras sacudiam a cabeça sem acreditar.
— Achei que tínhamos concordado – disse Roger – Ela não está se afogando por nossa culpa, e, se a pegarmos, não podemos desfrutar de nossas rações extras. Porque deveríamos perturbar esse esquema aconchegante e confortável que temos aqui? – Grunhidos de aprovação foram ouvidos.
— Por que nós podemos salvá-la e, se não salvarmos, ela vai morrer. Isso não é razão suficiente?
— A vida é mesmo uma merda – respondeu Roger – Se ela morrer, não vai ser porque nós a matamos. Alguém aceita um digestivo?
***
É muito fácil traduzir a metáfora do bote salva-vidas. O barco é o Ocidente abastado, e a mulher que está afogando, as pessoas que estão morrendo de desnutrição e doenças evitáveis no mundo em desenvolvimento. E a atitude do mundo desenvolvido é, sob esse ponto de vista, tão insensível quanto a de Roger. Temos comida e remédios o bastante para todos, mas preferimos desfrutar do luxo e deixar os outros morrer do que desistir de nosso “biscoito extra” e salvá-los. Se as pessoas no bote salva-vidas são grosseiramente imorais, então também somos.
A imoralidade é ainda mais impressionante em outra versão da analogia, na qual o bote salva-vidas representa a totalidade do planeta Terra e algumas pessoas se recusam a distribuir comida aos outros que já estão a bordo. Se para eles parece cruel não fazer um esforço para botar outra pessoa no barco, parece ainda mais cruel negar provisões àqueles que já foram tirados da água.
A imagem é forte e a mensagem, chocante. Mas a analogia resiste? Alguns podem dizer que a situação do bote salva-vidas despreza a importância dos direitos de propriedade. Os bens são postos em um bote salva-vidas para aqueles que precisarem dele, e ninguém tem mais direitos a eles que outra pessoa. Então partidos do pressuposto de que qualquer coisa além da distribuição igualitária de acordo com as necessidades é injusta até que se prove o contrário.
Entretanto, no mundo real, a comida e outros produtos não estão simplesmente ali parados à espera de serem distribuídos. A riqueza é criada e tem de ser ganha. Então se eu me recusar a dar meu excedente a outra pessoa, não estou me apropriando indevidamente do seu quinhão, estou apenas guardando o que é meu por direito.
Mas se a analogia for alterada para refletir esse fato, a imoralidade aparente não desaparece. Vamos imaginar que todos os alimentos e provisões do barco pertencessem aos indivíduos dentro dele. Ainda assim, uma vez no barco, e uma vez reconhecida a necessidade da mulher que está se afogando, não continuaria a ser errado dizer 'Deixe-a se afogar. Os biscoitos são meus!'? Enquanto houver excedente para abastecê-la, também, o fato de ela estar morrendo nos devia fazer abrir mão por ela da propriedade privada de nossas provisões.
As Nações Unidas estabeleceram uma meta para os países desenvolvidos darem 0,7% de seu PIB para ajuda externa. Poucos cumpriram isso. Para a maioria das pessoas, dar mesmo 1% de sua renda para ajudar os pobres teria um efeito desprezível em sua qualidade de vida. A analogia do bote salva-vidas sugere que não seríamos pessoas boas se o fizéssemos, mas que estamos terrivelmente errados em não fazê-lo."

(BAGGINI, Julian. O porco filósofo. Rio de Janeiro: Relume Dumará, p. 71-73.)

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