segunda-feira, 24 de agosto de 2009

Lendo "O herói de mil faces"

Confesso que me interessei por Joseph Campbell ao descobrir ter sido ele o grande inspirador para a criação da trilogia cinematográfica "Guerra nas estrelas", do George Lucas.
Mas me viciei mesmo ao ler "O poder do mito": uma daquelas obras que dão um nó na cabecinha da gente.
Certos livros têm o efeito psicotrópico de algumas drogas. Depois de lê-los, as portas fechadas de uma realidade, outrora desconhecida, se abrem. E passamos a ver o mundo com outros olhos.
O poder do mito foi um deles. "As máscaras de Deus: mitologia primitiva", foi outro.

Agora tô lendo "O herói de mil faces".
Não é tão bom quanto os anteriores, mas, mesmo assim, é possível aprender muito sobre o ser humano através das narrativas arquetípicas da humanidade, repletas de uma sabedoria ancentral, apresentadas por esse mitólogo fantástico.

Estudar essas histórias é aprender a viver.

A mulher representa, na linguagem pictórica da mitologia, a totalidade do que pode ser conhecido. O herói é aquele que aprende. À medida que ele progride, na lenta iniciação que é a vida, a forma da deusa passa, aos seus olhos, por uma série de transfigurações: ela jamais pode ser maior que ele, embora sempre seja capaz de prometer mais do que ele já é capaz de compreender. Ela o atrai e guia e lhe pede que rompa os grilhões que o prendem. E se ele puder alcançar-lhe a importância, os dois, o sujeito do conhecimento e o seu objeto, serão libertados de todas as limitações. A mulher é o guia para o sublime auge da aventura sensual. Vista por olhos inferiores, é reduzida a condições inferiores; pelo olho mau da ignorância, é condenada à banalidade e à feiúra. Mas é redimida pelos olhos da compreensão. O herói que puder considerá-la tal como ela é, sem comoção indevida, mas com a gentileza e a segurança que ela requer, traz em si o potencial do rei, do deus encarnado, do seu mundo criado.
Conta-se por exemplo a história dos "cinco filhos do rei irlandês Eochaid": fala-se de como, tendo ido caçar, num certo dia, viram-se eles perdidos, afastados de tudo e de todos. Sedentos, puseram-se, um por um, a buscar água. Fergus foi o primeiro: "E ele encontra um poço, junto ao qual há uma velha mulher, de sentinela. Tem a velha a seguinte aparência: mais negras que o carvão eram todas as suas juntas e partes, da cabeça aos pés; comparável ao rabo de um cavalo selvagem era a dura massa cinzenta que ocupava a parte superior da cabeça; com o golpe de uma presa esverdeada que dali saía, encurvada até tocar-lhe a orelha, ela podia cortar o verdejante galho de um carvalho em plena pujança; tinha olhos escurecidos e esfumaçados; nariz torto, com amplas narinas; barriga pintalgada e encarquilhada, acometida de todo tipo de doenças; canelas horrivelmente deformadas, guarnecidas de maciços tornozelos e de pés que pareciam grandes pás; tinha nodosos joelhos e unhas cor de chumbo. Com efeito, todos os traços da megera eram desagradáveis. 'É aqui, não é?', disse o rapaz; 'Justamente', respondeu ela. 'Estás guardando o poço?', perguntou ele; e ela disse: 'Sim'. 'Permites que eu leve um pouco de água?' 'Claro', consentiu ela, 'mas terei de receber de ti um beijo na face.' 'Nada disso', disse ele. 'Então não te darei água.' 'Dou-te minha palavra', ele prosseguiu, 'que, antes de dar-te um beijo, possa eu morrer de sede!' E o jovem partiu para o local onde estavam seus irmãos e lhes disse que não havia conseguido água".
Olioll, Brian e Fiachra, que foram buscar água em seguida, um após outro, também chegaram ao mesmo poço. Todos pediram à velha que lhes desse água, mas lhe negaram o beijo.
Por fim, chegou a vez de Niall, que chegou ao mesmo poço. "'Deixa-me tomar água, mulher!', exclamou. 'Por certo', disse ela, 'e tu me darás um beijo.' Ele respondeu: 'Além do beijo, dou-te também um abraço!' E ele se inclina para abraçá-la e lhe dá um beijo. Feito isso, ele a olha e eis que não havia no mundo uma jovem mais graciosa, de aparência mais bela que a dela: semelhante à última neve a cair, espalhada em valas, era cada uma de suas partes, do topo da cabeça à sola dos pés; antebraços roliços e majestosos, dedos longos e delgados, pernas bem-torneadas de cor agradável; duas sandálias de um belo bronze se interpunham entre os lisos e suaves pés e a terra; havia sobre ela uma ampla manta da melhor lã, puro carmesim, e, sobre suas vestes, um broche de prata branca; tinha ela brancos dentes perolados, grandes olhos magnificentes, a boca rubra como a sorva. 'Há aqui, mulher, uma galáxia de encantos', disse o jovem rapaz. 'É de fato verdade.' 'E quem és?', prosseguiu. 'Sou a Regra Real', respondeu ela, e disse:
" 'Rei de Tara! Sou a Regra Real. . .'
" 'Vai agora', disse ela, 'para ter com teus irmãos e leva água contigo; doravante, de ti e dos teus filhos para sempre o reino e o poder supremo serão... E tal como me viste antes feia, embrutecida, repugnante — e, no final, bela —, assim é a regra real: pois, sem batalhas, sem implacável conflito, ela não pode ser ganha; mas, no final, aquele [que ganha] é rei de tudo de atraente e belo que resulte.' "
É assim a regra real? Assim é a própria vida. A deusa guardiã do poço inesgotável (...) requer que o herói seja dotado daquilo que os trovadores e menestréis denominavam "coração gentil".
CAMPBELL, Joseph. O herói de mil faces.

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