quinta-feira, 5 de junho de 2008

Indiana Jones


Vamos direto ao assunto: o filme diverte.
Mas é como aquelas comidas requentadas. Saca aquele macarrão que você faz e depois, mais tarde, tenta requentar? Ainda mantém o sabor, mas já não é a mesma coisa. Harrison Ford ainda mantém o carisma, mas muita coisa mudou desde a última aventura de 1989.
A primeira mudança é percebida na direção de Steven Spielberg. Ele não é o mesmo diretor de sucessos como Contados imediatos do terceiro grau, Tubarão ou E.T. A partir dos anos 90, tenho achado que ele perdeu a mão. Nesses dias, revi o Contatos na TV a cabo e foi uma aula de cinema: a maneira como as personagens são desenvolvidas, a preocupação em criar a atmosfera certa, o carinho ao trabalhar a imagem, o roteiro bem costurado, o argumento instigante...
Vemos essa capacidade de encantar, seduzir e lidar com a câmera em poquíssimos momentos dos filmes de Spielberg feitos a partir dos anos 90. Como, por exemplo, nos 10 minutos iniciais d' O resgate do soldado Ryan. O resto era lixo. A partir daí, o diretor norte-americano só demonstra fagulhas da antiga genialidade. A direção é burocrática.
Outra coisa que tenho notado é a mudança na sua personalidade, que fica registrada nesses filmes mais recentes. Ele tem se tornado um conservador. Não sei se "conservador" seria o termo correto. Talvez "puritano". É algo que percebi (e me desagradou) desde o momento em que, ao lançar a versão restaurada de E.T., substituiu, digitalmente, por walk-talkies, as armas dos agentes do governo quando estes realizam o cerco às crianças, próximo ao final do filme. Ridículo. Lembro-me, também, de uma entrevista em que, no lançamento de I.A. - inteligência artificial, Spielberg disse que pretendia fazer um filme que seus filhos pudessem assistir. Desaparecem, portanto, de seus filmes a violência, os conflitos de consciência, as famílias desajustadas - que, se hoje aparecem desajustadas, encontram a redenção no final -, as personagens deliciosamente cínicas ou imperfeitas e, por isso mesmo, mais humanas.
É isso o que notei nesse Indiana Jones e o reino da caveira de cristal. Indiana é apenas um eco do que foi um dia. Para mim, o encanto dos primeiros filmes estava na tentativa de regastar a figura daqueles velhos heróis dos filmes aventurescos do período entre-guerras (ou mesmo depois). Era uma variação do bom e velho herói romântico, que tem como ícone máximo, no cinema, o ator Humphrey Bogart.
Trata-se do herói de passado obscuro, de espírito ousado, durão, irônico, cético e cínico. Sem contar os corações partidos que ele deixa ao longo do caminho. Mas é claro que, depois, percebemos que esse jeitão meio bruto e desiludido de viver a vida é apenas uma proteção para esconder um homem coração mole, que também tem suas cicatrizes na alma. É por isso que nos apaixonamos por essa personagem.
Um outro ícone do cinema que encarna essa figura é o espião inglês James Bond. É sabido que Steven Spielberg sempre desejou dirigir um filme da série 007. Na impossibilidade, criou, junto com George Lucas, o famoso arqueólogo. É fácil notar as semelhanças entre o Indiana dos dois primeiros filmes e James Bond. Ele é aquele homem durão, egoísta, trapaceiro, amoral e "heart breaker" que adoramos. Uma das cenas mais saborosas de Os caçadores da arca perdida é quando Jones mata um muçulmano que faz malabarismos com um sabre. Para isso, dispara um único tiro. É claro que uma cena dessas nunca apareceria nos filmes recentes de Spielberg (a não ser, é claro, que a personagem seja um vilão!).
A personagem de Harrison Ford, por exemplo, buscava artefatos para satisfação pessoal. Não se preocupava em deixá-los em museus, a ponto de "decorar" sua sala de aula com muitos deles. Ora, isso não cabe no "novo" Indiana Jones! Afinal, um herói tem de ter escrúpulos, não? Em uma cena do novo filme, ele se sente tentado a pegar um objeto histórico, mas o devolve. É sintomático.
Indiana Jones envelheceu. É um senhor bem comportado agora, movido por grandes ideais. Pai amantíssimo. Quer que seu filho estude. Faz declarações de amor. Casa na igreja... Tudo bem família. É o fim da picada! É descaracterizar uma das personalidades mais apaixonantes da história do cinema.
A segunda mudança está no roteiro. Há uma grande diferença entre o primeiro filme, escrito por Lawrence Kasdan e este último, escrito por David Koepp, o mesmo da série Homem-Aranha. O cara é bom, mas aqui escorregou no quiabo. A história não tem pé nem cabeça. Poderia nem ter, se fosse ao menos sedutora. Aí é que está: não seduz. É uma bobagem ao estilo Eram os deuses astronautas, livro escrito em 1968 pelo suíço Erich von Däniken, em o autor especula a possibilidade das antigas civilizações terrestres serem resultados de alienígenas que para cá teriam se deslocado. A idéia poderia até ser interessante se fosse melhor trabalhada, mas é um argumento que não desperta o nosso interesse, a nossa curiosidade.
Outro problema do roteiro é que o filme se perde nas excessivas auto-referências. É algo que percebi ao longo dos filmes da série. Se Caçadores... se levava a sério, aos poucos os filmes seguintes foram descanbando para a autoparódia e para o humor. Isso atinge o ápice nessa última película.
A vilã criada para a aventura, encarnada pela Cate Blanchet, então, nem chega perto dos primeiros vilões da série. E todos sabemos a importância de um bom vilão para fazer uma história funcionar. Ela é apenas uma pedra no caminho do herói para atingir seu objetivo e nada mais. Uma espiã soviética não tem metade do "apelo" de um oficial nazista. Blanchet é uma boa atriz, mas aqui não tem o que acrescentar.
Outra questão é que os filmes iniciais da série eram feitos para um público adulto, saudoso dos velhos heróis e antigas aventuras à la Gunga Din, filme de aventuras dirigido por George Stevens lááááá em 1939 (assistam!). Não sei se me expresso bem, mas filmes desse tipo, apesar de puro divertimento, se levavam a sério. Hoje, os filmes de aventura são feitos para crianças descerebradas. Tratam o público com um bando de imbecis.
Isso não é novidade. A grande crítica de cinema, Pauline Kael, escreveu, há mais de 30 anos, um ensaio em que diz:

As pessoas preferem o óbvio, o aberto, os filmes que não lhes pedem para sentir nada. Se um filme é um sucesso, isso significa sensações garantidas - e sensações sem sentimentos.
E, sobre os roteirista de Hollywood, ela diz logo adiante:

Não pressupõem um espectador ideal - presumem um caipira de olhos vazios, sem alma, ignorante.
Em Indiana Jones e o reino da caveira de cristal, o que importa é o espetáculo digital. É lógico que o computador ajuda, mas, em excesso, torna tudo artificial. Ainda mais quando se sobrepõe à história e ao desenvolvimento das personagens. É o que ocorre, por exemplo, nos três últimos filmes da série Star Wars, a anos-luz de distância da magia da trilogia inicial. Podem me chamar de passadista, mas eram muito mais gostosas as truncagens artesanais.
Enfim, o que posso dizer?
Indiana perdeu a sua alma.

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