sexta-feira, 20 de junho de 2008

Ode à minha pena esquerda

E por falar em José Paulo Paes, tô preparando umas aulas sobre ele. Seus poemas fazem parte da lista de leituras obrigatórias de dois vestibulares: Ufop e Unifal. O poema mais significativo dele, que o crítico David Arrugucci considera o poema-síntese de toda a sua poética, é a ode "À minha perna esquerda".
Cabe esclarecer: José Paulo tinha aterosclerose. O grave problema circulatório o fez abandonar o cigarro (com o qual ainda sonhava mais de dez anos depois de largar o vício), boa parte das bebidas alcoólicas (restou-lhe o vinho branco, tomado moderadamente), quaisquer extravagâncias alimentares, deslocamentos mais arriscados e esforços físicos. Quem o ajudava era a sua esposa Dora.
Com o agravamento da doença, a circulação prejudicada levou à gangrena de uma das pernas. A perna teve de ser amputada. Da doença ficou esse poema notável:

1

Pernas
para que vos quero?
Se já não tenho
por que dançar,
Se já não pretendo
ir a parte alguma.
Pernas?

2

Desço
.........que .....................subo
................desço...... que
........................subo
........................camas
........................imensas.

Aonde me levas
todas as noites
........pé morto
........pé morto?
Corro, entre fezes
de infância, lençóis
hospitalares, as ruas
de uma cidade que não dorme
e onde vozes barrocas
enchem o ar
de p
.....a
.....i
.....n
.....a sufocante
e o amigo sem corpo
zomba dos amantes
a rolar na relva.

........Por que me deixaste
.............................pé morto
.............................pé morto
........a sangrar no meio
........de tão grande sertão?

..............................não
..............................n ã o
..............................N Ã O !

3

Aqui estou,
Dora, no teu colo,
nu
como no princípio
de tudo.

Me pega
me embala
me protege.
Foste sempre minha mãe
e minha filha
depois de teres sido
(desde o princípio
de tudo) a mulher.

4

Dizem que ontem à noite um inexplicável morcego
....assustou os pacientes da enfermaria geral.

Dizem que hoje de manhã todos os vidros do ambu-
....latório apareceram inexplicavelmente sem tampa,
....os rolos de gaze todos sujos de vermelho.

5

Chegou a hora
de nos despedirmos
um do outro, minha cara
data vermibus
perna esquerda.
A las doce em punto
de la tarde
vão-nos separar
ad eternitatem.
Pudicamente envolta
num trapo de pano
vão te levar
da sala de cirurgia
para algum outro (cemitério
ou lata de lixo
que importa?) lugar
onde ficarás à espera
a seu tempo e hora
do restante de nós.

6

esquerda... direita
esquerda... direita
....................direita
....................direita

...Nenhuma perna
...é eterna.

7

Longe
do corpo
terás
doravante
de caminhar sozinha
até o dia do Juízo.
Não há
pressa
nem o que temer:
haveremos
de oportunamente
te alcançar.

Na pior das hipóteses
se chegares
antes de nós
diante do Juiz
coragem:
não tens culpa
(lembra-te)
de nada.

Os maus passos
quem os deu na vida
foi a arrogância
da cabeça
a afoiteza
das glândulas
a incurável cegueira
do coração.
Os tropeços
deu-os a alma
ignorante dos buracos
da estrada
das armadilhas do mundo.

Mas não te preocupes
que no instante final
estaremos juntos
prontos para a sentença
seja ela qual for
contra nós
lavrada:
as perplexidades
de ainda outro Lugar
ou a inconcebível
paz
do Nada.

Um comentário:

Nasser Pena disse...

José Paulo Paes é sempre uma inspiração. Até nos momento mais difíceis da vida ele traduz sua dor em uma poesia cheia de sentimentalismo e emoção.