domingo, 2 de janeiro de 2011

Nomenclatura ou uso?

A UNESP ACABA DE realizar a primeira fase de seu vestibular de 2011. Aplicada no último domingo, a prova de conhecimentos gerais apresentou muitas questões interessantes, que de fato exigem do candidato conhecimentos gerais. Afinal, já está mais do que na hora de desembrutecer o nosso ensino e os nossos alunos, muitas vezes "treinados" apenas para decorar meia dúzia de bobagens, com total desprezo pela efetiva capacidade de leitura e, sobretudo, da percepção do que se lê.
Um fato, no entanto, chamou a atenção: a elaboração de questões que privilegiaram mais a nomenclatura gramatical do que o uso da língua propriamente dito, o que de certo modo entra em choque com o que se apregoa hoje em dia nos estudos linguísticos autoproclamados ultramodernos, pós-modernos, pós-advento do suprassumo da quintessência da modernidade linguística etc. Nesses estudos, costuma-se dizer que se deve desprezar a nomenclatura gramatical e, consequentemente, privilegiar o conhecimento do efetivo uso linguístico.
O leitor habitual deste espaço sabe que fico no meio-termo: nem supervalorizo a nomenclatura, nem a desprezo; quando a emprego, tento explicá-la, traduzi-la. Como consultar um dicionário sem saber o que é um substantivo, um adjetivo, uma preposição? Como saber pontuação sem um mínimo de noção de sintaxe? Como ler um texto clássico sem um mínimo de noção de certos processos da tradição gramatical? Como entender Machado quando o grande escritor diz "Esqueceu-me apresentar-lhe minha mulher" sem um mínimo de noção da regência "clássica" de certos verbos?
O mais interessante de tudo isso é que boa parte de certas teorias sai justamente das universidades cujos vestibulares cobram o oposto do que se prega em seus cursos de letras... O que dizer aos alunos? O que fazer no ensino da língua no ciclo fundamental e no médio? Não teremos passado da hora de falar seriamente sobre isso, sem devaneios ou posturas esquizofrênicas?
Posto isso, vamos a um exemplo do que fez a Unesp domingo. Com base num excerto de "Vidas Secas", de Graciliano Ramos, formulou-se esta questão: "No fragmento apresentado, as formas verbais mais frequentes se enquadram em dois tempos do modo indicativo. Marque a alternativa que indica, pela ordem, o tempo verbal predominante no segundo parágrafo e o que predomina no quinto parágrafo".
No segundo parágrafo do excerto escolhido, o tempo predominante é o pretérito imperfeito do indicativo (recorria, cedia, resmungava, rezingava, engasgava-se, engolia, receava, rendia-se, aceitava etc.); no quinto, é o pretérito perfeito (ajustou, arrependeu-se, deixou, foi, mandou, sentou-se, concentrou-se, distribuiu, realizou, voltou etc.). Até aí, tudo bem, mas... O que significa o predomínio desses tempos em cada uma das passagens?
O mais interessante é que a Fuvest já fez questão "semelhante", a partir da mesma obra (e, salvo engano, de uma parte do mesmo excerto). E no que a questão da Fuvest diferia da feita pela Unesp? Justamente na abordagem. Enquanto esta se limitou a cobrar o conhecimento nomenclatural, aquela quis saber o que o predomínio de certo tempo verbal significa na narrativa.
O imperfeito designa fatos passados corriqueiros, habituais; o perfeito se refere a fatos não duradouros, situados num ponto específico do passado, em geral marcado por expressões temporais precisas ("daquela vez", "no dia seguinte"). Numa narrativa, isso faz toda a diferença. Uma coisa é dizer que a criança passava fome; outra coisa é dizer que ela passou fome. É isso.
(NETO, Pasquale Cipro. Nomenclatura ou uso. Folha de S. Paulo, 18 nov. 2010, p. C2.)
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O ensino da norma culta da língua tem sido muito criticado nos últimos anos. Como disse o professor Pasquale, somos orientados para desprezar "a nomenclatura gramatical" e "privilegiar o conhecimento do efetivo uso linguístico". Tal atitude, sob a minha ótica, tem feito com que formemos alunos totalmente depreparados para utilizar a linguagem em situações formais e incapazes de interpretar um texto escrito. Afinal, noções como as de sujeito, objeto direto, complemento nominal - para ficarmos apenas na Sintaxe - são fundamentais para compreendermos como as ideias foram articuladas para produzir sentido.
Hoje vemos instituições como Fisk e CCAA, famosas pelos seus cursos de inglês, oferecendo, nos grandes centros, cursos de língua portuguesa para empresários. Vemos universidades instituindo aulas de português instrumental para todas as áreas de graduação. Vemos pessoas perdendo oportunidades de emprego devido ao desempenho pífio no ler, escrever e interpretar.
Recentemente, durante minha qualificação de mestrado, na Universidade de São Paulo, ouvi de um dos futuros integrantes da minha banca que um texto bem escrito tem se tornado raridade nas dissertações da instituição (estamos falando, note-se bem, da mais renomada universidade brasileira!). Quando surge um bom exemplo de escrita, o autor é extremamente valorizado, elogiado e incentivado. E isso, cabe lembrar, no curso de Letras, em que supõe-se o domínio do idioma por parte do aluno!

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