domingo, 2 de janeiro de 2011

Além do Bem e do Mal


 Há pouco, recebi, por e-mail, a seguinte narrativa:

Alemanha - Início do século XX 
(Esta é uma história real)


Durante uma conferência com vários universitários, um professor da Universidade de Berlim desafiou seus alunos com esta pergunta: 
- Deus criou tudo o que existe?"
Um aluno respondeu com grande certeza:
 - Sim, Ele criou!
- Deus criou tudo?
Perguntou novamente o professor.
- Sim, senhor - respondeu o jovem.
O professor indagou:
- Se Deus criou tudo, então Deus fez o mal? Pois o mal existe, e, partindo do preceito de que nossas obras são um reflexo de nós mesmos, então Deus é mau?
O jovem ficou calado diante de tal resposta e o professor, feliz, se regozijava de ter provado mais uma vez que a fé era uma perda de tempo.
Outro estudante levantou a mão e disse:
- Posso fazer uma pergunta, professor?
- Lógico -  foi a resposta do professor.
O jovem ficou de pé e perguntou:
- Professor, o frio existe?
- Que pergunta é essa? Lógico que existe, ou por acaso você nunca sentiu frio?
Com uma certa imponência o rapaz respondeu:
- De fato, senhor, o frio não existe. Segundo as leis da Física, o que consideramos frio, na realidade é a ausência de calor. Todo corpo ou objeto é suscetível de estudo quando possui ou transmite energia, o calor é o que faz com que este corpo tenha ou transmita energia. O zero absoluto é a ausência total e absoluta de calor, todos os corpos ficam inertes, incapazes de reagir, mas o frio não existe. Nós criamos essa definição para descrever como nos sentimos se não temos calor.
- E existe a escuridão? - Continuou o estudante.
O professor respondeu temendo a continuação do estudante: 
- Existe!
O estudante respondeu:
- Novamente comete um erro, senhor, a escuridão também não existe. A escuridão na realidade é a ausência de luz. A luz pode-se estudar, a escuridão não! Até existe o prisma de Nichols para decompor a luz branca nas várias cores de que está composta, com suas diferentes longitudes de ondas. A escuridão, não!
Continuou:
- Um simples raio de luz atravessa as trevas e ilumina a superfície onde termina o raio de luz. Como pode saber quão escuro está um espaço determinado? Com base na quantidade de luz presente nesse espaço, não é assim?! Escuridão é uma definição que o homem desenvolveu para descrever o que acontece quando não há luz presente.
Finalmente, o jovem perguntou ao professor:
-Senhor, o mal existe?
Certo de que para esta questão o aluno não teria explicação, professor respondeu:
-Claro que sim! Lógico que existe. Como disse desde o começo, vemos estupros, crimes e violência no mundo todo, essas coisas são do mal!
Com um sorriso no rosto o estudante respondeu:
-O mal não existe, senhor, pelo menos não existe por si mesmo. O mal é simplesmente a ausência do bem, é o mesmo dos casos anteriores, o mal é uma definição que o homem criou para descrever a ausência de Deus. Deus não criou o mal. Não é como a fé ou como o amor, que existem como existem o calor e a luz. O mal é o resultado da humanidade não ter Deus presente em seus corações. É como acontece com o frio quando não há calor, ou a escuridão quando não há luz.
Por volta dos anos 1900, este jovem foi aplaudido de pé, e o professor apenas balançou a cabeça, permanecendo calado… Imediatamente o diretor dirigiu-se àquele jovem e perguntou qual era seu nome.
E ele respondeu:
- ALBERT EINSTEIN, senhor!"
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Normalmente, não me oponho a parábolas. E até gosto de muitas delas. Não suporto, porém, quando são usadas para transmitir ideias que se organizam em torno de uma série de falácias. Muitos desses textos passam a impressão de transmitir algo valioso, pois quase sempre acabamos por concordar com as noções que passam. É o caso do exemplo acima, que, ardilosamente, manipula o leitor.
Em primeiro lugar, a ideia central baseia-se num falso "argumento de autoridade". Ao usar o nome do renomado físico Albert Einstein, a história (e as ideias nela contidas) adquire credibilidade e impõe respeito. No entanto, é impossível que o fato tenha acontecido com o cientista. Impossível porque Einsten concluiu a graduação em Física em 1900. E na Suíça, não em Berlim!
O argumento de autoridade é normalmente usado quando citamos uma pessoa de renomada sabedoria e especialista na área de discussão que possui o mesmo ponto de vista que nós. São óbvias as implicações argumentativas no sentido de se reforçar uma tese e de se convencer um interlocutor. No entanto, como vimos, o argumento é inválido, pois não factual. Por isso é falacioso.
Quer um exemplo de argumento de autoridade? Tenho um que, à luz da discussão religiosa, tem de ser aceita pelos crentes, pois parte da Bíblia, vista como a "palavra de Deus". Por meio dela, é possível criarmos um contra-argumento para a premissa de que Ele não criou o Mal: “Eu formo a luz, e crio as trevas, eu faço a paz, e crio o mal; eu, o Senhor, faço todas essas coisas”(Is 45:7).
Além disso, é longa a discussão sobre a crença de Einstein em Deus. Ao menos no Deus pertencente à tradição judaico-cristã. Foi divulgada, recentemente, uma carta escrita, em 1954, pelo pai da Teoria da Relatividade com o seguinte trecho: “A palavra Deus para mim é nada mais que a expressão e produto da fraqueza humana, a Bíblia é uma coleção de lendas honradas, mas ainda assim primitivas, que são bastante infantis” . É, no entanto, reconheço, um assunto polêmico e não pretendo me aprofundar nele, porque isso não contempla, propriamente, o mérito da questão.
Outro problema do texto é de base conceitual. O autor anônimo, astutamente, mistura definições conceituais da Física, como as de "frio" e "luz", com algo do qual essa ciência não se ocupa: as definições abstratas de Bem e de Mal. Valores estes que são imateriais, subjetivos e, muitas vezes, relativos. Qualquer aluno de Ensino Médio sabe que a Física é a ciência que estuda a natureza e seus fenômenos em seus aspectos mais gerais. Ao dizer que as  ideias de frio e de escuridão são idênticas às de Bem e Mal corresponde ao que os retóricos chamam de "analogia imprópria". Mais uma falácia.
Discutir a natureza do Bem e do Mal é um tema mais filosófico que científico. Posso usar um raciocínio lógico para tentar mostrar que o Bem transcende Deus. O filósofo Julian Baggini, ao discutir a possibilidade de moralidade sem Deus, em O porco filósofo, diz que, em geral, sabemos diferenciar o que é bom do que é ruim. Justamente por sabermos o que é bom, podemos dizer que Deus é bom. Por outro lado, se Deus defendesse a tortura sem sentido, saberíamos que Ele não é bom. E isso é uma prova de que podemos entender a narureza do Bem independente de Deus.
Ademais, a oposição Bem x Mal é um fenômeno histórico, dado ter florescido no séc. III com um tal de Maniqueu (daí o termo maniqueísmo para respresentar a eterna luta entre o Bem e o Mal). Um ótimo exemplo dessa discussão está em A viagem de Théo, de Catherine Clément. Ela conta que hoje é um lugar-comum dizer que Jesus é Deus feito homem. No entanto, isso não era óbvio para os primeiros cristãos. Deus feito homem?! Qual era a parte do homem e qual era a parte de Deus em Jesus? Se a natureza humana era cheia de defeitos, o que prevaleceria em Cristo? Na tentativa de resolver esse impasse, alguns teólogos passarm a afirmar, então, que o homem é o mal e Deus é o bem.
Por fim, uma pessoa religiosa que compra a ideia de que o Mal não existe não pode, portanto, crer no Demônio. Mas, se ele é visto como a encarnação do Mal (assim como Cristo é a encarnação de Deus), como aceitar o raciocínio exposto sem se contradizer?! O Diabo seria uma invenção do homem? Então, porque Deus também não poderia sê-lo?

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