domingo, 29 de maio de 2011

"Os livro"

Há notório exagero na polêmica deflagrada pela revelação de que um livro didático adotado pelo Ministério da Educação (MEC) admite o emprego de expressões erradas, do ponto de vista gramatical, dependendo do contexto em que são utilizadas.
"Os livro ilustrado mais interessante estão emprestado." Segundo a obra "Por Uma Vida Melhor", distribuída a alunos jovens e adultos de 4.236 escolas do país, uma frase como essa pode ser empregada, embora o estudante seja ali advertido de que, ao fazê-lo, "corre o risco de ser vítima de preconceito linguístico".
Há muito que a norma culta - o padrão estabelecido por gramáticos e lexicógrafos, que nem sempre, aliás, se põem de acordo - deixou de ter valor absoluto. O substrato real de toda língua está na fala popular, que evolui ao longo do tempo e impõe, cedo ou tarde, mudanças na norma que se convencionou ser a correta.
Em contexto oral, coloquial ou literário, admitem-se variações definidas como erradas pelo padrão gramatical. Esse padrão configura apenas um conjunto de convenções que assegura lógica ao funcionamento do idioma, ainda que suas regras sejam eivadas de exceções e anomalias.
Daí não decorre, porém, que a norma culta seja um parâmetro inútil ou preconceituoso. Trata-se de um lastro, que também evolui no tempo, cujo sentido é tornar a língua estável e previsível; sem tal garantia, as variações cresceriam de forma desordenada até inviabilizar a própria comunicação.
Além disso, o aprendizado da norma culta faz parte da disciplina intelectual que deveria ser estimulada em qualquer estabelecimento de ensino. Aprender custa tempo e esforço.
O episódio, que faz lembrar as ferozes controvérsias gramaticais da República Velha (1889-1930), é menos relevante em si do que pelo que reitera em termos de mentalidade pedagógica.
De algumas décadas para cá, a pretexto de promover uma educação "popular" ou "democrática", muitos educadores dedicam-se a solapar toda forma de saber implicada no repertório de conteúdos que a humanidade vem acumulando ao longo das gerações.
Em vez da revolução pedagógica que apregoam, o resultado tem sido a implantação despercebida da lei do menor esforço nas escolas. Estuda-se pouco e ensina-se mal. Isso - e não suscetibilidades gramaticais- é o que deveria preocupar.

Folha de S. Paulo, 19 maio 2011, p. A2.

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