quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Meu pai mudou de casa

Em 6/9/2010, meu avô faleceu. Alguns dias depois, meu pai escreveu o seguinte obituário que reproduzo abaixo:

MEU PAI MUDOU DE CASA

“Não tenhas medo. Morrer
Não custa nada, é viver.
Custa menos que se pensa.
O principal é ter crença.
Morre o corpo, a alma abre asa
E vai: é mudar de casa.”
(António Nobre)

A alma de meu pai, Pedro Paulo da Cruz, abriu asa (uso aqui a expressão do poeta em epígrafe) no dia 6 de setembro desse mês corrente. Partiu com ele após 84 anos de existência, deixando a esposa Eunice (sua querida Nicinha), quatro filhos, dez netos e um bisneto. Ao mudar de casa (mais uma vez recorro ao poeta), meu pai não deixou ouro, prata ou bronze, mas um legado de retidão e de grandeza moral que poucas vezes encontrei em qualquer ser humano. Não sei se, ao longo da vida, foi contemplado com duas ou três linhas de algum jornal, mas uso esse espaço (acatando sugestão da Doutora Maria do Rosário Velano) para registrar sua trajetória de homem simples, porém marcada por princípios que devem ser os dos grandes homens. Também o faço porque sei – como afirmou Machado de Assis – que “o louvor dos mortos é um modo de orar por eles”.
Primogênito do casal João Francisco da Cruz e Rita Rodrigues da Cruz – pais de sete filhos -, Pedro Paulo, nascido em 29 de junho de 1926, tornou-se, ainda mal saído da infância, uma espécie de arrimo de família visto que, tendo o pai casado já “maduro”, tinha, a certa altura, dificuldades para prover a família. Eram tempos difíceis, marcados pela instabilidade política e econômica que, naturalmente, atingia uma pequena cidade interiorana como Alfenas. Não podendo completar o antigo curso primário, o adolescente, com precária educação formal, viu-se compelido a ingressar na construção civil e, antes do Serviço Militar, vamos encontrá-lo “arrebentando-se” (segundo própria expressão) nas fundações da futura Igreja de Nossa Senhora Aparecida. Pouco depois, torna-se pedreiro, ocupação que teria pelo resto da vida.
Aos 21 anos, Pedro Cruz casou-se com Eunice Miranda da Cruz. Nessa altura, já era um oficial bastante requisitado, sendo responsável por uma série de construções na cidade, culminando, nas décadas de 1980 e 1990, já como uma espécie de empreiteiro, com suntuosas edificações no Jardim da Colina. Além do domínio absoluto da profissão, sua trajetória distinguiu-se pela absoluta correção com que honrava seus compromissos e pela austeridade com que os cumpria. Seu senso de honradez, não raro, levava-o a ter prejuízos e, por isso, nessas ocasiões, ia trabalhar em São Paulo, onde, à custa de extremo sacrifício pessoal, obtinha uma remuneração que lhe permitia sustentar a família.
Na década de 1950, meu pai, getulista convicto, passou a integrar o diretório municipal do PTB (Partido Trabalhista Brasileiro). Por isso, em 1954, foi candidato – sem sucesso – a vereador. Na ocasião, coligaram-se o PTB e o PSD, ambos liderados, respectivamente, por Francisco Reis e Silva (o Tite) e Dr. Emílio da Silveira. Dessa coligação, sai o prefeito de Alfenas: Dr. João Januário de Magalhães (Janjote). No final dos anos de 1940, Pedro Cruz já tivera sua consciência social e política despertada ao fazer parte do Círculo Operário, aqui criado pelo progressista Padre Geraldo Pawels, também fundador do Centro Católico, de um jornal combativo e de uma cooperativa destinada ao operariado local. Assim, foi natural seu ingresso, mais tarde, no quadro diretivo da União Operária de Alfenas, quando essa agremiação, realmente, funcionava e ainda estava distante da decadência que passou a ostentar. Na década de 1980, com a abertura  política, foi convocado pelo Sindicato dos Trabalhadores da Construção Civil de Belo Horizonte. Decidido a fomentar em Alfenas o sindicalismo, esbarrou – juntamente com outros abnegados – na má vontade do operariado local que, segundo ele, preferia assistir às novelas da Globo a participar de qualquer tipo de reunião.
Pedro Cruz, homem de pouco riso, marcado por convicções inabaláveis, das quais nunca abriria mão, obrigado a lutar pela sobrevivência, nunca teve tempo para diversões ou entretenimento.Elegeu o trabalho como essência de sua vida. Seus poucos desafetos foram os ociosos ou aqueles que negligenciaram as suas obrigações. Desde os 15 anos de idade, mostrou-se devoto de Nossa Senhora do Rosário (atribuía a ela a cura de uma doença de Sá Ritinha, sua mãe) e, por isso, tornou-se para sempre um emérito congadeiro. Participar das Congadas, para ele, foi sempre uma missão, mais que lazer, cumprida com dedicação inexcedível. Essa manifestação popular teve início, em Alfenas, há mais ou menos 120 anos e, pouco depois, revestiu-se de um caráter bastante peculiar: a encenação, em espaços públicos, das famosas “embaixadas”, recriação da campanha do imperador francês Carlos Magno contra os mouros que ocupavam a Península Ibérica. Por muitos anos, coube a meu pai ser uma espécie de roteirista de tais encenações, estabelecendo um script e distribuindo as falas, a exemplo de um diretor teatral. Além disso, atuava como a personagem (Rolando, ou Oliveiros, na concepção popular) com maior número de falas. Um dos seus monólogos tinha a duração de meia hora. Trazia-o sempre na ponta da língua e, mesmo já abalado pelas precárias condições de saúde, conseguia recitá-lo na íntegra. Só deixou de participar das Congadas quando os últimos padres (sacramentinos) vedaram o acesso dos adeptos dessa manifestação folclórica à Matriz de São José e Dores. Daí em diante, para ele, era como estivessem proibindo sua adoração por Nossa Senhora do Rosário que, no entanto, durou enquanto a memória permitiu.
Apesar da pouca instrução formal, meu pai sempre foi um indivíduo muito inteligente. Em sua profissão, nunca socialmente valorizada, chegou mesmo a corrigir arquitetos e engenheiros. Sua aguda percepção de tudo provinha, sobretudo ,da leitura de jornais, revistas e obras da história universal. Guardava na memória prodigiosa fatos e datas que, normalmente, escapavam da nossa percepção. Sempre teve consciência política, preferindo claramente os regimes de força, por considerá-los mais próximos de sua condição de pessoa austera e com códigos morais extremamente rígidos. Era, acima de tudo, o que chamamos de “pessoa sistemática”. Seu profundo conhecimento da história de Alfenas me fez despertar o mesmo gosto e, por isso, me empenho até hoje no estudo do nosso passado.
Embora “sistemático” (e talvez por isso mesmo), Seo Pedro conquistou centenas de amigos. São provas disso os inumeráveis “compadres” que,  juntamente com Dona Nicinha (com quem esteve casado por 62 anos), angariou pela vida a fora. Tinha verdadeira adoração às crianças, para as quais inventava brinquedos e outros mimos. Sobrinhos e sobrinhas (alguns já com netos) jamais se esquecem de passeios de bicicletas com o tio Pedro que, para tais ocasiões, projetou uma “cadeirinha” especial. Aliás, com suas resistentes bicicletas (sem marchas) gostava de percorrer os bairros de Alfenas, fixando os nomes das ruas. Fazia-o também a pé, quando isso ainda era possível. Adorava fazer, aos domingos, compras na feira, aonde ia vezes seguidas não só  para comprar verduras e legumes, mas também para rever amigos, com quem mantinha animada conversação.
Há algum tempo, deixou-se fotografar na Praça Emílio Silveira e, para sua surpresa, viu espalhados pela cidade, especialmente nas repartições públicas, dezenas de cartazes com sua estampa a exibir um sorriso discreto e seu indefectível chapéu de feltro. Longe de ficar vaidoso, não fez comentários e nem usufruiu da “fama” de “modelo” que apregoava os benefícios do INSS para aposentados.
Termino aqui esse modesto resgate da memória de meu pai. É muito pouco diante daquilo que ele representou para todos nós, mas suficiente para todos saibam que, entre nós, existiu um cidadão que cumpriu com máxima inteireza de princípios seus deveres de filho, pai e cidadão e, que por isso, jamais será esquecido.

Em tempo:

 Em nome da família de Pedro Cruz, agradeço a todos que, por gestos, atos e palavras, o confortaram durante sua enfermidade. Nossa gratidão também será eterna àqueles que nos cumularam de atenções por ocasião de seu falecimento.

João Batista da Cruz

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