NÃO SE SABE quando a arte se tornou peça de colecionador. Presente de forma ritual em qualquer sociedade antes mesmo do alfabeto, um dia ela passou a ser cultuada. Bom para os artistas, que conseguiam destaque social ao serem apadrinhados pelos poderosos para forrar paredes com seus quadros ou enfeitar festas com sua música, dança e comida.
Mas como bem o sabem tantos meninos aspirantes a jogador de futebol, o talento só se desenvolve quando acompanhado de muito treino. Mesmo o jovem Mozart, que encantava a corte com a sua habilidade, só compôs obras-primas quando chegou perto dos 30.
A prática leva à perfeição, mas ela é muito chata. Os filmes e séries de TV ambientados em tribunais e ambulatórios não seriam tão populares se mostrassem o tempo que se passa em bibliotecas e laboratórios. Quem imagina reger uma orquestra ou tocar um instrumento não pensa em se dedicar várias horas por dia a essas atividades. Calos e bolhas não são sexy, consumir arte sempre exigiu menos trabalho e dedicação do que ser artista.
Um dia essa situação mudou. As seitas da autoajuda e do faça-você-mesmo se encontraram com a indústria de software na busca por remover o "problema" da prática e "democratizar" o talento. Com uma mãozinha dos computadores, todos ficaram livres para exprimir suas ideias. Não era mais preciso saber desenhar para ser designer, fotógrafos podiam abrir mão dos laboratórios, músicos de seus instrumentos, diretores das ilhas de edição e assim por diante.
Até mesmo quem dependesse de seu corpo como ferramenta podia usar câmaras e efeitos especiais para compensar deficiências.
Tudo seria ótimo se o resultado pudesse ser medido. Mas como não há cor, tom, cheiro ou gosto absolutos, não há parâmetro. Isso faz com que muitos se tornem autodidatas pragmáticos, que se desviam de qualquer obstáculo em nome de seu "estilo". Contestar uma prática sempre foi mais fácil do que segui-la.
A tecnologia não elimina restrições, só muda sua natureza. Um artista sério continua a precisar de muito conhecimento, treino e, principalmente, de boas referências. As limitações sempre estimularam a prática e o apuro da técnica. Quando são eliminadas, surge a impressão de que é fácil fazer arte. E de que é possível se destacar em várias especialidades.
As ferramentas criativas tornaram a expressão quase compulsória. Leonardo da Vinci ficaria chocado ao perceber que hoje teria que falar como intelectual, escolher vinhos como enólogo, cozinhar como gourmet, cantar como Frank Sinatra e dançar como John Travolta para ser "descolado".
O resultado dessa demanda fica visível nas crises de autoestima, nas epidemias de depressão e nos transtornos de atenção. Seu efeito colateral não é uma sociedade mais criativa, mas uma composta por gente insatisfeita, egocêntrica, desorientada, insegura e sem critério. Para suprir as necessidades de expressão, muitos buscam no entretenimento pop manifestações de consumo fácil, sem justificativas. Assim se entende o sucesso do Justin Bieber ou do "Big Brother". Quando todos estão conectados, as diferenças se igualam pela média. É Arquimedes na prática.
Mas como bem o sabem tantos meninos aspirantes a jogador de futebol, o talento só se desenvolve quando acompanhado de muito treino. Mesmo o jovem Mozart, que encantava a corte com a sua habilidade, só compôs obras-primas quando chegou perto dos 30.
A prática leva à perfeição, mas ela é muito chata. Os filmes e séries de TV ambientados em tribunais e ambulatórios não seriam tão populares se mostrassem o tempo que se passa em bibliotecas e laboratórios. Quem imagina reger uma orquestra ou tocar um instrumento não pensa em se dedicar várias horas por dia a essas atividades. Calos e bolhas não são sexy, consumir arte sempre exigiu menos trabalho e dedicação do que ser artista.
Um dia essa situação mudou. As seitas da autoajuda e do faça-você-mesmo se encontraram com a indústria de software na busca por remover o "problema" da prática e "democratizar" o talento. Com uma mãozinha dos computadores, todos ficaram livres para exprimir suas ideias. Não era mais preciso saber desenhar para ser designer, fotógrafos podiam abrir mão dos laboratórios, músicos de seus instrumentos, diretores das ilhas de edição e assim por diante.
Até mesmo quem dependesse de seu corpo como ferramenta podia usar câmaras e efeitos especiais para compensar deficiências.
Tudo seria ótimo se o resultado pudesse ser medido. Mas como não há cor, tom, cheiro ou gosto absolutos, não há parâmetro. Isso faz com que muitos se tornem autodidatas pragmáticos, que se desviam de qualquer obstáculo em nome de seu "estilo". Contestar uma prática sempre foi mais fácil do que segui-la.
A tecnologia não elimina restrições, só muda sua natureza. Um artista sério continua a precisar de muito conhecimento, treino e, principalmente, de boas referências. As limitações sempre estimularam a prática e o apuro da técnica. Quando são eliminadas, surge a impressão de que é fácil fazer arte. E de que é possível se destacar em várias especialidades.
As ferramentas criativas tornaram a expressão quase compulsória. Leonardo da Vinci ficaria chocado ao perceber que hoje teria que falar como intelectual, escolher vinhos como enólogo, cozinhar como gourmet, cantar como Frank Sinatra e dançar como John Travolta para ser "descolado".
O resultado dessa demanda fica visível nas crises de autoestima, nas epidemias de depressão e nos transtornos de atenção. Seu efeito colateral não é uma sociedade mais criativa, mas uma composta por gente insatisfeita, egocêntrica, desorientada, insegura e sem critério. Para suprir as necessidades de expressão, muitos buscam no entretenimento pop manifestações de consumo fácil, sem justificativas. Assim se entende o sucesso do Justin Bieber ou do "Big Brother". Quando todos estão conectados, as diferenças se igualam pela média. É Arquimedes na prática.
RADFAHRER, Luli. Folha de S. Paulo, 9 mar. 2011.
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