Isto É, nº 2188, 19 out. 2011, p. 89.
“O senhor vê. Contei tudo. Agora estou aqui, quase barranqueiro. (...) Amável senhor me ouviu, minha ideia confirmou: que o Diabo não existe. Pois não? O senhor é um homem soberano, circunspecto. Amigos somos. Nonada. O diabo não há! É o que eu digo, se for... Existe é homem humano. Travessia.” João Guimarães Rosa, Grande Sertão: Veredas.
domingo, 4 de dezembro de 2011
domingo, 13 de novembro de 2011
A literatura em perigo
(...) Sendo o objeto da literatura a própria condição humana, aquele que a lê e a compreende se tornará não um especialista em análise literária, mas um conhecedor do ser humano. Que melhor introdução à compreensão das paixões e dos comportamentos humanos do que uma imersão na obra dos grandes escritores que se dedicam a essa tarefa há milênios? E, de imediato: que melhor preparação pode haver para todas as profissões baseadas nas relações humanas? Se entendermos assim a literatura e orientarmos dessa maneira o seu ensino, que ajuda mais preciosa poderia encontrar o futuro estudante de direito ou de ciências políticas, o futuro assistente social ou psicoterapeuta, o historiador ou o sociólogo? Ter como professores Shakespeare e Sófocles, Dostoievski e Proust não é tirar proveito de um ensino excepcional? E não se vê que mesmo um futuro médico, para exercer o seu ofício, teria mais a aprender com esses mesmos professores do que com os manuais preparatórios para concurso que hoje determinam o seu destino? Assim, os estudos literários encontrariam o seu lugar no coração das humanidades, ao lado da história dos eventos e das ideias, todas essas disciplinas fazendo progredir o pensamento e se alimentando tanto de obras quanto de doutrinas, tanto de ações políticas quanto de mutações sociais, tanto da vida dos povos quanto da de seus indivíduos. Se aceitarmos essa finalidade para o ensino literário, o qual não serviria mais unicamente à reprodução dos professores de Letras, podemos facilmente chegar a um acordo sobre o espírito que o deve conduzir: é necessário incluir as obras no grande diálogo entre os homens, iniciado desde a noite dos tempos e do qual cada um de nós, por mais ínfimo que seja, ainda participa. “É nessa comunicação inesgotável, vitoriosa do espaço e do tempo, que se afirma o alcance universal da literatura”, escrevia Paul Bénichou. A nós, adultos, nos cabe transmitir às novas gerações essa herança frágil, essas palavras que ajudam a viver melhor.
(Tzvetan Todorov. A literatura em perigo. 2 ed. Trad. Caio Meira. Rio de Janeiro: DIFEL, 2009, p. 89-94.)
sábado, 12 de novembro de 2011
O CASO DO POEMA ROUBADO
Quem poderia adivinhar o que havia dentro do pacote que apareceu no sítio?
Há coisa de dois ou três meses apareceu, no portão do sítio, um pacote grande, embrulhado num saco de lixo preto. Ninguém viu quem trouxe. Amanheceu e estava lá. Assim que foi notado, ficaram todos da casa, bípedes e quadrúpedes, muito cabreiros com a sua presença. Nos dias de hoje, ninguém vê com confiança ou simpatia pacotes grandes, embrulhados em sacos de lixo pretos.
Os cachorros cheiraram e latiram, os gatos mantiveram distância, o Dirceu olhou de longe, cutucou com uma vareta, chamou Mamãe. O conteúdo parecia ser duro, sólido, como madeira. Não era nada morto, com certeza. E não parecia ser bomba, muito embora ninguém da família tenha a mais remota idéia de como seja uma bomba, salvo pelo que se vê no cinema e nos desenhos animados.
Finalmente, depois de mais cutucadas e de muita hesitação, o pacote foi trazido para dentro, e aberto com o cuidado que a desconfiança recomendava. Quando o conteúdo se revelou, surpresa total: quem poderia imaginar que um poema roubado há 30 anos voltasse ao lar daquela maneira?!
Quando o sítio ficou pronto, em princípios dos anos 60, uma das primeiras providências dos meus pais foi espalhar pelo jardim e pela floresta uma dúzia de poemas. Papai os selecionava, Mamãe os pintava em tabuletas e ambos escolhiam juntos, com capricho, as árvores e os cantinhos onde seriam expostos. Passear pelo sítio era como entrar numa pequena antologia sentimental.
Com o tempo, as tabuletas foram sumindo. Algumas queimaram junto com as suas árvores nos incêndios que, há alguns anos, eram comuns na região e que, apesar dos esforços do pessoal lá de casa, eventualmente atingiam partes do terreno.. Outras foram vítimas do tempo. A maioria, porém, desapareceu sem deixar vestígios.
O poema devolvido chama-se "Casa antiga", foi escrito em 1964 por minha madrinha Cecília Meireles e dedicado a Nora e Paulo Ronai:
Forrarei tua casa já tão antiga
Com um papel que imita as paredes de tijolo.
Ficará tão lindo como se estivéssemos na Holanda.
Forrarei tua casa assim, mas por dentro,
De modo que, longe de todas as vistas,
Será como se estivéssemos ao ar livre, no jardim.
E deixarei uma parede quebrada ? não uma porta, não uma janela:
Uma parede quebrada por onde passe um ramo de goiabeira
Carregado de flores e vespas.
Parecerá que estamos sonhando,
E estamos sonhando mesmo,
E parecerá que estamos vivendo,
E a vida não é mesmo um sonho impossível?
Dentro do pacote, junto com a tabuleta, veio um bilhete escrito em letra pouco cultivada, na folha arrancada de um caderno. Dizia o seguinte: "Quando era menino achei este quadro lindo, pelo poema. Peço perdão por ter roubado este quadro. Hoje sinto necessidade de devolvê-lo. Sinto-me envergonhado pela minha atitude. Mais era só um menino. Peço perdão a Deus e a vocês. E que vocês também consigam perdoar."
Não havia nome, assinatura, nada. Ficamos com muita pena, pois teríamos gostado de conhecer e abraçar o menino antigo que roubou o poema e o homem correto que o devolveu, passados tantos anos. Mal sabe ele que nos deu um presente muito maior do que o que levou: um mundo onde crianças roubam poemas e adultos os devolvem é um mundo de beleza e de esperança.
Cora Ronai
(O Globo, Segundo Caderno, 4/1/2006)
terça-feira, 11 de outubro de 2011
A Pedagogia do Garfield
A literatura está virtualmente ausente do Enem. Para os técnicos do MEC, o gato dos quadrinhos é mais relevante culturalmente do que Graciliano Ramos ou Castro Alves. Desde a sua primeira edição, em 1998, o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), prova que avalia a qualidade das escolas secundárias e hoje substitui o vestibular em muitas universidades, reconheceu apenas duas vezes a existência de um romancista brasileiro do século XIX chamado José de Alencar. Na edição de 2009, o nome do escritor constou em uma das alternativas erradas para uma pergunta sobre regionalismo. Antes disso, em 2004, o autor de O Guarani foi lembrado em uma questão de biologia – sobre tuberculose, doença que causou sua morte, em 1877. O Enem nunca fez uma pergunta específica sobre a vida ou a obra do maior prosador do romantismo brasileiro. Jamais pediu aos alunos que interpretassem um texto seu. Outros nomes de primeira linha das letras em língua portuguesa fazem companhia a José de Alencar no clube dos esquecidos. Para ficar em poucos exemplos, temos o pregador jesuíta Antônio Vieira, o poeta inconfidente Tomás Antônio Gonzaga e Euclides da Cunha, autor do monumental Os Sertões. Os avaliados pelo Enem, em compensação, com frequência são chamados a interpretar as histórias em quadrinhos de Jim Davis, criador do gato Garfield, ou de Dik Browne, pai do viking Hagar. Um grupo de pesquisadores do Instituto de Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) fez um levantamento extensivo de todas as provas, desde o primeiro Enem – incluindo a prova que vazou e teve de ser invalidada, em 2009 –, para avaliar o peso que a literatura tem no exame. As conclusões são desalentadoras.
A começar pela valorização desmesurada das histórias em quadrinhos – o segundo gênero mais cobrado na prova, atrás apenas de poesia –, o exame mostra desproporções e equívocos de toda ordem. Os escritores anteriores ao modernismo são negligenciados: apenas cerca de 17% das questões versam sobre a literatura que precede a década de 20. Períodos inteiros foram apagados da história da literatura na versão do Enem: o barroco e o século XVII, por exemplo, não existem. Talvez ainda mais grave, não se exige nenhuma leitura prévia dos alunos, quando no antigo vestibular das melhores universidades havia uma lista de livros obrigatórios. Aparentemente, os iluminados do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep) – órgão do Ministério da Educação responsável pela elaboração da prova – consideram que um estudante pode entrar na universidade sem jamais ter lido Dom Casmurro, de Machado de Assis, ou Vidas Secas, de Graciliano Ramos.
Ao contrário do que vigorava nos vestibulares tradicionais das melhores universidades brasileiras, não há, no Enem, uma seção específica de literatura. A rigor, tampouco existe língua portuguesa: as duas disciplinas estão diluídas, com língua estrangeira e expressão corporal (sim, isso mesmo: expressão corporal), em um módulo chamado "Linguagens, códigos e suas tecnologias". Os catorze exames aplicados até hoje – a edição deste ano será realizada nos dias 22 e 23 –, sempre incluindo o fiasco da prova invalidada de 2009, somam 1233 questões objetivas, das quais 164, nas contas dos pesquisadores da UFRGS, versam sobre literatura. Não seria mau que, em uma prova destinada a avaliar todos os conteúdos do ensino médio, cerca de 13% das questões fossem dedicadas à cultura literária. Mas esse número inclui modalidades como histórias em quadrinhos e letras de canções populares, respectivamente segundo e sexto lugares entre os gêneros mais exigidos no Enem. Além disso, na maior parte dessas questões, os textos literários (ou os quadrinhos) figuram apenas como ilustração para problemas de outras disciplinas. Uma tirinha da Mafalda ou um texto de Machado de Assis podem ser usados para avaliações de gramática (se é que a palavra ainda faz sentido no meio das tais linguagens, códigos e tecnologias) ou para levar o aluno a exercitar a mais básica interpretação de texto. Textos literários também são utilizados para aferir conhecimentos de ciência, geografia ou história. Um poema de Carlos Drummond de Andrade (o autor mais citado no exame) já foi usado para perguntar sobre problemas ambientais causados pela mineração. Em um dos casos mais pitorescos, um trecho do conto O Jardim dos Caminhos que Se Bifurcam, do argentino Jorge Luis Borges (um dos apenas cinco autores de língua estrangeira já citados na prova), serviu de pretexto para uma questão sobre pontos cardeais.
No cômputo do estudo da UFRGS, apenas metade das questões que versam sobre textos literários é, de fato, sobre literatura. E apenas 20% exigem o conhecimento mais especializado que só uma aula de literatura poderia dar – por exemplo, noções de forma e estilo ou de relação entre a obra e seu contexto histórico (tópico que, no entanto, consta nas declarações de intenção do Inep). "As questões sobre literatura são superficiais e até anódinas. Desprezam o conteúdo cultural, que deveria ser o cerne de uma prova sobre literatura", diz Luís Augusto Fischer, professor do Instituto de Letras da UFRGS e coordenador da pesquisa.
Sob a falta de critério dos avaliadores do Inep, há uma difusa e demagógica pedagogia do vale-tudo. O pressuposto teórico é a valorização das variantes populares, da fala e a desvalorização da norma culta, por seu suposto caráter elitista e preconceituoso. "Essa abordagem joga por terra a ideia de que há autores em cuja obra a língua se realizou de forma superior ou duradoura", diz Fischer. Ou seja, a noção de que um autor possa ser tomado como um clássico é tida como conservadora. No igualitarismo ignorante que se instaura a partir daí, não há mais nenhuma distinção de qualidade ou relevância, e o gato Garfield vale mais do que a poesia de João Cabral de Melo Neto.
Tradicionalmente, o antigo vestibular tendia a enfatizar períodos e escolas literárias, às vezes em detrimento da leitura. Era mais importante saber que Lima Barreto era "pré-modernista" (classificação genérica e duvidosa) do que ler Triste Fim de Policarpo Quaresma. O Enem tinha a intenção de corrigir essa distorção. De fato, perguntas sobre períodos literários estão quase ausentes. O problema é que não se está perguntando nada no lugar. "A impressão que tenho é que são amadores elaborando uma prova demasiado importante para o Brasil inteiro", diz Marcelo Frizon, um dos pesquisadores do estudo da UFRGS e professor de literatura em duas escolas de ensino médio em Porto Alegre. O mais preocupante é que o Enem tem o potencial de difundir o obscurantismo. Como vem substituindo o vestibular como porta de entrada para a universidade, a prova tende não apenas a avaliar, mas também a pautar o conteúdo dado nas escolas de ensino médio. "Esses exames costumam normatizar o que é ensinado em sala de aula. Para ser um pouco radical, se a coisa continuar assim, o ensino de literatura tende a desaparecer", diz a professora Gabriela Luft, outra colaboradora da pesquisa. O Enem contribui para construir um país ainda mais iletrado.
Desprezo pelo passado
O Enem põe um peso desproporcional sobre a literatura produzida a partir do modernismo, desvalorizando a história e a tradição. Das questões a respeito de literatura no exame, apenas 17% versam sobre obras anteriores a 1920. Autores fundamentais para a história e para o desenvolvimento da língua portuguesa, como o padre Antônio Vieira, José de Alencar e Euclides da Cunha, não tiveram nenhum texto citado na prova desde o seu início, em 1998.
A começar pela valorização desmesurada das histórias em quadrinhos – o segundo gênero mais cobrado na prova, atrás apenas de poesia –, o exame mostra desproporções e equívocos de toda ordem. Os escritores anteriores ao modernismo são negligenciados: apenas cerca de 17% das questões versam sobre a literatura que precede a década de 20. Períodos inteiros foram apagados da história da literatura na versão do Enem: o barroco e o século XVII, por exemplo, não existem. Talvez ainda mais grave, não se exige nenhuma leitura prévia dos alunos, quando no antigo vestibular das melhores universidades havia uma lista de livros obrigatórios. Aparentemente, os iluminados do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep) – órgão do Ministério da Educação responsável pela elaboração da prova – consideram que um estudante pode entrar na universidade sem jamais ter lido Dom Casmurro, de Machado de Assis, ou Vidas Secas, de Graciliano Ramos.
Ao contrário do que vigorava nos vestibulares tradicionais das melhores universidades brasileiras, não há, no Enem, uma seção específica de literatura. A rigor, tampouco existe língua portuguesa: as duas disciplinas estão diluídas, com língua estrangeira e expressão corporal (sim, isso mesmo: expressão corporal), em um módulo chamado "Linguagens, códigos e suas tecnologias". Os catorze exames aplicados até hoje – a edição deste ano será realizada nos dias 22 e 23 –, sempre incluindo o fiasco da prova invalidada de 2009, somam 1233 questões objetivas, das quais 164, nas contas dos pesquisadores da UFRGS, versam sobre literatura. Não seria mau que, em uma prova destinada a avaliar todos os conteúdos do ensino médio, cerca de 13% das questões fossem dedicadas à cultura literária. Mas esse número inclui modalidades como histórias em quadrinhos e letras de canções populares, respectivamente segundo e sexto lugares entre os gêneros mais exigidos no Enem. Além disso, na maior parte dessas questões, os textos literários (ou os quadrinhos) figuram apenas como ilustração para problemas de outras disciplinas. Uma tirinha da Mafalda ou um texto de Machado de Assis podem ser usados para avaliações de gramática (se é que a palavra ainda faz sentido no meio das tais linguagens, códigos e tecnologias) ou para levar o aluno a exercitar a mais básica interpretação de texto. Textos literários também são utilizados para aferir conhecimentos de ciência, geografia ou história. Um poema de Carlos Drummond de Andrade (o autor mais citado no exame) já foi usado para perguntar sobre problemas ambientais causados pela mineração. Em um dos casos mais pitorescos, um trecho do conto O Jardim dos Caminhos que Se Bifurcam, do argentino Jorge Luis Borges (um dos apenas cinco autores de língua estrangeira já citados na prova), serviu de pretexto para uma questão sobre pontos cardeais.
No cômputo do estudo da UFRGS, apenas metade das questões que versam sobre textos literários é, de fato, sobre literatura. E apenas 20% exigem o conhecimento mais especializado que só uma aula de literatura poderia dar – por exemplo, noções de forma e estilo ou de relação entre a obra e seu contexto histórico (tópico que, no entanto, consta nas declarações de intenção do Inep). "As questões sobre literatura são superficiais e até anódinas. Desprezam o conteúdo cultural, que deveria ser o cerne de uma prova sobre literatura", diz Luís Augusto Fischer, professor do Instituto de Letras da UFRGS e coordenador da pesquisa.
Sob a falta de critério dos avaliadores do Inep, há uma difusa e demagógica pedagogia do vale-tudo. O pressuposto teórico é a valorização das variantes populares, da fala e a desvalorização da norma culta, por seu suposto caráter elitista e preconceituoso. "Essa abordagem joga por terra a ideia de que há autores em cuja obra a língua se realizou de forma superior ou duradoura", diz Fischer. Ou seja, a noção de que um autor possa ser tomado como um clássico é tida como conservadora. No igualitarismo ignorante que se instaura a partir daí, não há mais nenhuma distinção de qualidade ou relevância, e o gato Garfield vale mais do que a poesia de João Cabral de Melo Neto.
Tradicionalmente, o antigo vestibular tendia a enfatizar períodos e escolas literárias, às vezes em detrimento da leitura. Era mais importante saber que Lima Barreto era "pré-modernista" (classificação genérica e duvidosa) do que ler Triste Fim de Policarpo Quaresma. O Enem tinha a intenção de corrigir essa distorção. De fato, perguntas sobre períodos literários estão quase ausentes. O problema é que não se está perguntando nada no lugar. "A impressão que tenho é que são amadores elaborando uma prova demasiado importante para o Brasil inteiro", diz Marcelo Frizon, um dos pesquisadores do estudo da UFRGS e professor de literatura em duas escolas de ensino médio em Porto Alegre. O mais preocupante é que o Enem tem o potencial de difundir o obscurantismo. Como vem substituindo o vestibular como porta de entrada para a universidade, a prova tende não apenas a avaliar, mas também a pautar o conteúdo dado nas escolas de ensino médio. "Esses exames costumam normatizar o que é ensinado em sala de aula. Para ser um pouco radical, se a coisa continuar assim, o ensino de literatura tende a desaparecer", diz a professora Gabriela Luft, outra colaboradora da pesquisa. O Enem contribui para construir um país ainda mais iletrado.
Desprezo pelo passado
O Enem põe um peso desproporcional sobre a literatura produzida a partir do modernismo, desvalorizando a história e a tradição. Das questões a respeito de literatura no exame, apenas 17% versam sobre obras anteriores a 1920. Autores fundamentais para a história e para o desenvolvimento da língua portuguesa, como o padre Antônio Vieira, José de Alencar e Euclides da Cunha, não tiveram nenhum texto citado na prova desde o seu início, em 1998.
TEIXEIRA, Jerônimo. A pedagogia do Garfield. Veja, São Paulo, ed. 2238, n.º 41, 12 out. 2011, p. 136-137.
Pedagogia
A competência da atual pedagogia ou filosofia da educação adotada em nosso país pode ser medida todos os anos, nos exames vestibulares, entre os que fazem a prova de redação. Segundo a Unesco, estamos entre os piores países do mundo em relação ao aprendizado. Nossas crianças não conseguem entender o que leem. O economista norte-americano Robert Fishlow, da Universidade de Colúmbia, em Nova Iorque, declarou em 2007 que o Brasil é o único país no mundo em que 50% dos que completam cinco anos de educação básica são classificados como analfabetos. Segundo declaração do próprio presidente da República, por ocasião da abertura da XVIII Bienal do Livro, 52% dos alunos das escolas públicas não conseguem interpretar um texto lido. Culpa de quem? Das nossas crianças? Não, absolutamente. Culpa dos nossos "estudiosos", da nossa pedagogia incompetente, falida (embora haja pedagogos que a considerem uma maravilha). Veja, agora, caro leitor, o que escreve um articulista da Folha de S. Paulo, em 24/5/2005: Está crescendo o número de queixas contra médicos nos Conselhos Regionais de Medicina. Há unanimidade na explicação de pelo menos uma das causas desse crescimento: a formação ruim dos estudantes. Ou seja, gente despreparada está sendo liberada, sem maiores critérios, para cuidar da saúde das pessoas. Ou seja: a sociedade está experimentando só agora os profissionais que se formaram fazendo cruzinhas nas provas, critério esse criado pelos nossos maravilhosos pedagogos modernos. Por que os alunos, principalmente das nossas escolas públicas, depois de onze anos assistindo a aulas de Português, saem de nossas escolas sem saber português? A maioria sai sem saber distinguir sujeito de objeto direto, daí porque dizem e escrevem: "Acabou" as aulas, "começou" as férias.
A escola antiga não abortava analfabetos funcionais. A escola antiga não produzia "gênios" com suas monumentais patadas nos exames vestibulares. A escola antiga ensinava a escrever, ensinava a pensa, ensinava a entender melhor os textos lidos, ensinava a ter mais respeito pela língua e também pelo professor. A escola antiga tinha professores que recebiam um salário digno e eram respeitados pelos alunos. Aqui, antiga bem poderia ser substituída por eficiente. E a escola de hoje? A escola de hoje é um verdadeiro desastre pedagógico e disciplinar. Professores, hoje, apanham de alunos nas escolas! Mas a escola de hoje tem defensores instransigentes. É natural: foram abortados por ela! A gente entende. Aliás, a gente sempre entende. Mas nunca perdoa.
O Brasil possui cerca de 80 milhões de pessoas, entre 16 e 64 anos, que são analfabetos numéricos, ou seja, sabem o que é um número, mas não conseguem desenvolver operações simples de soma ou subtração. Além disso, 42 milhões nessa mesma faixa etária estão em estado crítico de leitura, ou seja, conseguem ler uma palavra ou outra, mas não entendem o conteúdo do texto. De maneira geral, 86 milhões de brasileiros são analfbetos funcionais, pois não dominam habilidades nem de português nem de matemática. Os dados foram apresentados por Suely Druck, presidente da Sociedade Brasileira de Matemática (SBM), durante a conferência Produção de Analfabetos no Brasil, em julho de 2005, na 57ª Reunião Anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), em Fortaleza. Certos professores se empenham em ensinar teorias de Barthes, Lacan e Chomsky, e nossos alunos não conseguem distinguir uma preposição de uma conjunção nem muito menos um sujeito de um predicado. Alguns deles tem o desplante de afirmar aos quatro cantos do mundo que falar e escrever de acordo com a gramática normativa é uma aspiração reacionária, própria de gente conservadora, o que, já de per si, define-os como enganadores, pseudoprofessores. Daí por que a carência educacional no Brasil é tão avassaladora!
A escola antiga não abortava analfabetos funcionais. A escola antiga não produzia "gênios" com suas monumentais patadas nos exames vestibulares. A escola antiga ensinava a escrever, ensinava a pensa, ensinava a entender melhor os textos lidos, ensinava a ter mais respeito pela língua e também pelo professor. A escola antiga tinha professores que recebiam um salário digno e eram respeitados pelos alunos. Aqui, antiga bem poderia ser substituída por eficiente. E a escola de hoje? A escola de hoje é um verdadeiro desastre pedagógico e disciplinar. Professores, hoje, apanham de alunos nas escolas! Mas a escola de hoje tem defensores instransigentes. É natural: foram abortados por ela! A gente entende. Aliás, a gente sempre entende. Mas nunca perdoa.
O Brasil possui cerca de 80 milhões de pessoas, entre 16 e 64 anos, que são analfabetos numéricos, ou seja, sabem o que é um número, mas não conseguem desenvolver operações simples de soma ou subtração. Além disso, 42 milhões nessa mesma faixa etária estão em estado crítico de leitura, ou seja, conseguem ler uma palavra ou outra, mas não entendem o conteúdo do texto. De maneira geral, 86 milhões de brasileiros são analfbetos funcionais, pois não dominam habilidades nem de português nem de matemática. Os dados foram apresentados por Suely Druck, presidente da Sociedade Brasileira de Matemática (SBM), durante a conferência Produção de Analfabetos no Brasil, em julho de 2005, na 57ª Reunião Anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), em Fortaleza. Certos professores se empenham em ensinar teorias de Barthes, Lacan e Chomsky, e nossos alunos não conseguem distinguir uma preposição de uma conjunção nem muito menos um sujeito de um predicado. Alguns deles tem o desplante de afirmar aos quatro cantos do mundo que falar e escrever de acordo com a gramática normativa é uma aspiração reacionária, própria de gente conservadora, o que, já de per si, define-os como enganadores, pseudoprofessores. Daí por que a carência educacional no Brasil é tão avassaladora!
SACCONI, Luiz Antonio
sábado, 8 de outubro de 2011
O sentido faz falta?
A gente procura um sentido para a vida somente quando o cotidiano perde sua graça e seu encanto
É uma queixa frequente: o mundo e a vida fazem pouco sentido - muito menos sentido do que antigamente, completam os saudosistas. Nas famílias, às vezes, essa queixa produz uma espécie de pingue-pongue. Os pais acham que os filhos adolescentes vivem por inércia, sem rumo e projeto: "Eles não estão a fim de nada que preste, não têm uma causa, uma visão de futuro".
Os filhos, confrontados com essa preocupação dos pais, declaram que, se precisassem mesmo de um sentido para viver, certamente não é com os pais que eles o aprenderiam: "Mas qual sentido gostariam que eu escolhesse para minha vida, se a vida deles não tem nenhum?". Nesse diálogo, o sentido parece ser sempre o que falta na vida dos outros que criticamos.
Também existem indivíduos (adolescentes e adultos) que se queixam da falta de sentido em sua própria vida: "Viver para quê? Todo o mundo vai morrer de qualquer jeito; que sentido tem?".
Geralmente, ao procurar responder a essas constatações desconsoladas, amigos, parentes e terapeutas agem como os pais que mencionei antes: querem injetar uma causa, uma visão de futuro na vida de quem lhes parece ter perdido o rumo "necessário" para viver.
Agora, eu não estou convencido de que, para viver, seja necessário que a vida tenha um sentido. Quando alguém se queixa de que sua vida é sem sentido, não tento interessá-lo em grandes razões para viver. Prefiro perguntar (para ele e para mim mesmo) de onde surge tamanha necessidade de um sentido. É curioso que, para alguns, a existência precise de uma justificação, de uma razão, de uma causa, de uma visão de futuro.
Em regra, essa necessidade de justificar a vida se impõe quando a própria vida não se basta mais. Ou seja, é quando os gestos cotidianos perdem sua graça que surge a obrigação de fundamentar a vida por outra coisa do que ela mesma.
Nota clínica: a depressão não é o mal de quem teria perdido (ou nunca achado) uma grande razão para viver. Depressão é ter perdido (ou nunca encontrado) o encanto do cotidiano. Por consequência, tentar "curar" a depressão de um adolescente propondo-lhe militância política ou fé religiosa é nocivo: se a gente conseguir capturá-lo num grande projeto, esse mesmo projeto o afastará ainda mais da trivialidade do dia a dia, cujo encanto ele perdeu.
Resumindo, quando alguém se queixa de que a vida não tem sentido, o problema não é ajudá-lo a encontrar o tal sentido da vida, mas ajudá-lo a descobrir que a vida se justifica por si só, que ela pode ser seu próprio sentido.
A cultura moderna poderia ser dividida em dois grandes blocos (que não coincidem com as tradicionais divisões de esquerda vs. direita etc.): os que pensam que o sentido da vida não está na própria experiência de viver (mas na espera de um além, num projeto histórico etc.), e os que pensam que a experiência de viver, por mais transitória que seja, é todo o sentido do qual precisamos (nota: a psicanálise, inesperadamente, está nesse segundo grupo, por constatar que a gente sofre mais frequente e gravemente pelo excesso do que pela falta de um sentido).
Alguém dirá que, com o declínio das utopias políticas e algum avanço (talvez) do pensamento laico, o sentido da vida está em baixa. Em suma, eu estaria chutando um cachorro morto.
Não concordo: talvez a própria crise das utopias e de algumas religiões instituídas esteja reavivando uma espiritualidade que tenta sacralizar o mundo, prometendo, no mínimo, sentidos ocultos.
O esoterismo "new age" nos garante que a vida tem um sentido misterioso, que a gente nem precisa saber qual é. Melhor assim, não é? Acabo de ler um breve (e delicioso) ensaio do filósofo italiano Giorgio Agamben, "La Ragazza Indicibile" (a moça indizível, Electa, 2010). Agambem (retomando um ensaio de Jung e Kerényi, de 1941, sobre Koré, a moça sagrada - Perséfone na mitologia clássica) mostra que os mistérios de Eleusis (que são os grandes ascendentes do esoterismo ocidental) de fato não revelavam nenhum grande sentido escondido das coisas e da vida -a não ser talvez o sentido de uma risada diante do pouco sentido do mundo.
Ele conclui com a ideia de que podemos e talvez devamos "viver a vida como uma iniciação. Mas uma iniciação ao quê? Não a uma doutrina, mas à própria vida e à sua ausência de mistério".
CALLIGARIS, Contardo. Folha de S. Paulo, 6 out. 2011.
segunda-feira, 25 de julho de 2011
Ler ou não ler, eis a questão
Você gosta de Dostoiévski? Se a resposta for "não", o problema está em você, nunca nele. Uma coisa que qualquer pessoa culta deve saber é que Dostoiévski (e outros grandes como ele) nunca está errado, você sim.
Se você o leu e não gostou, minta. Procure ajuda profissional. Nunca diga algo como "Dostoiévski não está com nada" porque queima seu filme.
Costumo dizer isso para meus alunos de graduação. Eles riem. Aliás, um dos grandes momentos do meu dia é quando entro numa sala com uns 30 deles. Inquietos, barulhentos, desatentos, mas sempre prontos a ouvir alguém que tem prazer em estar com eles. Parte do pouco de otimismo que experimento na vida (coisa rara para um niilista... risadas) vem deles.
Devido a essa experiência, costumo rir de muito blá-blá-blá que falam por aí sobre "as novas gerações".
Um exemplo desse blá-blá-blá são os pais e professores dizerem coisas como: "Essa moçada não lê nada".
Na maioria dos casos, pais e professores também não leem nada e posam de cultos indignados. A indignação, depois da Revolução Francesa, é uma arma a mais na mão da hipocrisia de salão.
Mas há também aqueles que dizem que a moçada de hoje é "superavançada". Não vejo nenhuma grande mudança nessa moçada nos últimos 15 anos. Mesmas mazelas, mesmas inquietações do dia a dia.
Nada mais errado do que supor que eles exijam "tecnologia de ponta" na sala de aula (a menos que a aula seja de tecnologia, é claro). Atenção: com isso não quero dizer que não seja legal a tal "tecnologia de ponta". Quero dizer que "tecnologia de ponta" eles têm "na balada". O que eles não têm é Dostoiévski.
O "amor pela tecnologia" é sempre brega assim como constatamos o ridículo de filmes com "altíssima tecnologia de ponta" comum nos anos 80 e 90 (tipo "Matrix"). Hoje, tudo aquilo parece batedeira de bolo dos anos 50. O que hoje você acha "sublime" na histeria dos tablets, amanhã será brega como os computadores dos anos 80.
Dostoiévski é eterno como a morte. Mas eis que lendo uma excelente entrevista com um psicólogo professor de Yale na página de Ciência desta Folha da última terça (19) encontro um dos equívocos mais comuns com relação a Dostoiévski.
O professor afirma que agir moralmente bem não depende de crenças religiosas. Corretíssimo. Qualquer um que estudar filosofia moral e história saberá que acreditar em Deus ou não nada implica em termos de "melhor" comportamento moral. Crentes e ateus matam, mentem e roubam da mesma forma.
E mais: se Nietzsche estivesse vivo veria que hoje em dia -época em que ateus são comuns como bananas nas feiras- existe também aquele que vira ateu por ressentimento.
Nietzsche acusa os cristãos de crerem em Deus por ressentimento (o cristianismo é platonismo para pobre). Temos medo da indiferença cósmica, daí "inventamos" um dono do Universo que nos ama e, ao final, tudo vai dar certo.
Quase todos os ateus que conheço o são por trauma de abandono cósmico. Se o religioso é um covarde assumido, esse tipo de ateu (muito comum) é um "teenager" revoltado contra o "pai".
Mas voltando ao erro na leitura de Dostoiévski. Do fato que religião não deixa ninguém melhor, o professor conclui que Dostoiévski estava errado quando afirmou que "se Deus não existe, tudo é permitido". Erro clássico.
Essa afirmação de Dostoiévski não discute sua crença, nem o consequente comportamento moral decorrente dela (como parece à primeira vista). Ela discute o fato de que, pouco importando sua crença, se Deus não existe, não há cobrança final sobre seus atos. O "tudo é permitido" significa que não haveria "um dono do Universo" para castiga-lo (ou não), dependendo do que você fizesse.
Claro que isso pode incidir sobre seu comportamento moral, mas apenas secundariamente. A questão dostoievskiana é moral e universal, não pessoal. Pouco importa sua crença, a existência ou não de Deus independe dela, e as consequências de sua existência (ou não) cairão sobre você de qualquer jeito. O problema é filosófico, e não psicológico.
O cineasta Woody Allen entendeu Dostoiévski bem melhor do que o professor.
Se você o leu e não gostou, minta. Procure ajuda profissional. Nunca diga algo como "Dostoiévski não está com nada" porque queima seu filme.
Costumo dizer isso para meus alunos de graduação. Eles riem. Aliás, um dos grandes momentos do meu dia é quando entro numa sala com uns 30 deles. Inquietos, barulhentos, desatentos, mas sempre prontos a ouvir alguém que tem prazer em estar com eles. Parte do pouco de otimismo que experimento na vida (coisa rara para um niilista... risadas) vem deles.
Devido a essa experiência, costumo rir de muito blá-blá-blá que falam por aí sobre "as novas gerações".
Um exemplo desse blá-blá-blá são os pais e professores dizerem coisas como: "Essa moçada não lê nada".
Na maioria dos casos, pais e professores também não leem nada e posam de cultos indignados. A indignação, depois da Revolução Francesa, é uma arma a mais na mão da hipocrisia de salão.
Mas há também aqueles que dizem que a moçada de hoje é "superavançada". Não vejo nenhuma grande mudança nessa moçada nos últimos 15 anos. Mesmas mazelas, mesmas inquietações do dia a dia.
Nada mais errado do que supor que eles exijam "tecnologia de ponta" na sala de aula (a menos que a aula seja de tecnologia, é claro). Atenção: com isso não quero dizer que não seja legal a tal "tecnologia de ponta". Quero dizer que "tecnologia de ponta" eles têm "na balada". O que eles não têm é Dostoiévski.
O "amor pela tecnologia" é sempre brega assim como constatamos o ridículo de filmes com "altíssima tecnologia de ponta" comum nos anos 80 e 90 (tipo "Matrix"). Hoje, tudo aquilo parece batedeira de bolo dos anos 50. O que hoje você acha "sublime" na histeria dos tablets, amanhã será brega como os computadores dos anos 80.
Dostoiévski é eterno como a morte. Mas eis que lendo uma excelente entrevista com um psicólogo professor de Yale na página de Ciência desta Folha da última terça (19) encontro um dos equívocos mais comuns com relação a Dostoiévski.
O professor afirma que agir moralmente bem não depende de crenças religiosas. Corretíssimo. Qualquer um que estudar filosofia moral e história saberá que acreditar em Deus ou não nada implica em termos de "melhor" comportamento moral. Crentes e ateus matam, mentem e roubam da mesma forma.
E mais: se Nietzsche estivesse vivo veria que hoje em dia -época em que ateus são comuns como bananas nas feiras- existe também aquele que vira ateu por ressentimento.
Nietzsche acusa os cristãos de crerem em Deus por ressentimento (o cristianismo é platonismo para pobre). Temos medo da indiferença cósmica, daí "inventamos" um dono do Universo que nos ama e, ao final, tudo vai dar certo.
Quase todos os ateus que conheço o são por trauma de abandono cósmico. Se o religioso é um covarde assumido, esse tipo de ateu (muito comum) é um "teenager" revoltado contra o "pai".
Mas voltando ao erro na leitura de Dostoiévski. Do fato que religião não deixa ninguém melhor, o professor conclui que Dostoiévski estava errado quando afirmou que "se Deus não existe, tudo é permitido". Erro clássico.
Essa afirmação de Dostoiévski não discute sua crença, nem o consequente comportamento moral decorrente dela (como parece à primeira vista). Ela discute o fato de que, pouco importando sua crença, se Deus não existe, não há cobrança final sobre seus atos. O "tudo é permitido" significa que não haveria "um dono do Universo" para castiga-lo (ou não), dependendo do que você fizesse.
Claro que isso pode incidir sobre seu comportamento moral, mas apenas secundariamente. A questão dostoievskiana é moral e universal, não pessoal. Pouco importa sua crença, a existência ou não de Deus independe dela, e as consequências de sua existência (ou não) cairão sobre você de qualquer jeito. O problema é filosófico, e não psicológico.
O cineasta Woody Allen entendeu Dostoiévski bem melhor do que o professor.
PONDÉ, Luiz Felipe. Folha de S. Paulo, 25/7/2011.
domingo, 17 de julho de 2011
sexta-feira, 8 de julho de 2011
Os idiotas
No jornal, Nelson Rodrigues tratou muitas vezes do idiota. Numa delas, foi assim: "Escrevi outro dia que o idiota sempre se comportara como idiota. Era de uma modéstia exemplar, de uma humildade total. Não em nossa época. De repente, o idiota explode. (...) Hoje há idiotas liderando povos, fazendo história e fazendo lendas. Mao Tse-tung seria impossível em outra época. Em nosso tempo, passa por ser um estadista gigantesco. (...)
"Lidos, viajados, falando vários idiomas, maridos das melhores mulheres, os idiotas têm também os melhores cargos e exercem as funções mais transcendentes. Disse eu que estão por toda parte: na política como nas letras, nas finanças como no cinema, no teatro como na pintura. Outrora, os melhores pensavam pelos idiotas; hoje, os idiotas pensam pelos melhores. Criou-se uma situação realmente trágica: ou o sujeito se submete ao idiota ou o idiota o extermina".
"Lidos, viajados, falando vários idiomas, maridos das melhores mulheres, os idiotas têm também os melhores cargos e exercem as funções mais transcendentes. Disse eu que estão por toda parte: na política como nas letras, nas finanças como no cinema, no teatro como na pintura. Outrora, os melhores pensavam pelos idiotas; hoje, os idiotas pensam pelos melhores. Criou-se uma situação realmente trágica: ou o sujeito se submete ao idiota ou o idiota o extermina".
CASTRO, Ruy. Folha de S. Paulo, 5 jul. 2011.
terça-feira, 5 de julho de 2011
Terceiro ato
Entenda por que a melhor fase da vida de um homem começa aos 30 anos. Afinal, você assume o volante da vida e pode enfim decidir o caminho e a velocidade que quer adotar
Por Antonio Prata
Aos 10 anos, eu acreditava que a idade adulta começava aos 20. Aos 20, achei que ainda não havia chegado lá e decretei que adultos eram só os com mais de 30. (Convenhamos, apenas seis primaveras depois da oitava série, você é, no máximo, um pós-adolescente: provavelmente ainda mora com os pais, deixa a toalha molhada em cima da cama e siglas como IPTU ou FGTS fazem muito menos sentido do que MILF ou THC.) Ao completar a terceira década de vida, contudo, não tive como protelar: alguns fios brancos no queixo, projetos de rugas nos cantos dos olhos e entradas moderadas avançando pelo couro – já não tão – cabeludo me atestavam, no espelho: eis aí um espécime maduro, acabado e plenamente desenvolvido de homo sapiens. E sabe o quê? Fiquei bastante contente com a descoberta.
A infância é terrível. Você precisa chamar as autoridades competentes até mesmo para limpar a bunda, é incapaz de organizar verbalmente as ideias mais rudimentares e, quando o faz por outras vias, como pintando a parede da sala com seu estojo de canetinhas, fica um mês sem sobremesa. A infância é uma espécie de condicional, após a solitária do útero. Uma liberdade vigiada, que deve te preparar para a próxima fase infeliz: a adolescência. Ser adolescente é mais ou menos como mendigar em Paris ou estagiar numa empresa bacana: você já está lá, onde tudo acontece, mas não pode participar da festa; porque é duro, porque é nerd, porque é prego, ou porque tem que decorar o número atômico dos alcalinos terrosos e a função das mitocôndrias para a prova da Fuvest.
Só tive o que comemorar, portanto, quando terminaram essas duas fases de tutela e me vi finalmente livre. Aos 30, você escolhe bola, campo e o time em que quer jogar. Tá bom, pode reclamar que sua bola não é uma Jabulani, que o gramado está mais para uma várzea do Tamanduateí do que para o tapete do Camp Nou, que no seu time só tem perna de pau. Mas uma das vantagens da idade adulta é que, ao contrário da infância e da adolescência, que passam num piscar de olhos – ou num xixizinho e numa ejaculação precoce, para nos atermos a imagens mais condizentes com o assunto –, a maturidade dura quatro décadas; é tempo suficiente para você se acostumar consigo mesmo ou para mudar a situação. E talvez seja essa a maior lição da maturidade: saber discernir entre as coisas que você pode e precisa lutar para mudar e aquelas que deve simplesmente aceitar. Na infância ou na adolescência, ser ruim nos esportes era algo que me atormentava. “Por que, ó, Deus, fizeste-me o último a ser escolhido em todos os times, na educação física?”, eu perguntaria ao Senhor, se Nele acreditasse e decidisse importuná-lo com meus resmungos. Hoje, isso é apenas um dado, quase indiferente, como ter cabelo castanho ou ser canhoto.
A infância é terrível. Você precisa chamar as autoridades competentes até mesmo para limpar a bunda, é incapaz de organizar verbalmente as ideias mais rudimentares e, quando o faz por outras vias, como pintando a parede da sala com seu estojo de canetinhas, fica um mês sem sobremesa. A infância é uma espécie de condicional, após a solitária do útero. Uma liberdade vigiada, que deve te preparar para a próxima fase infeliz: a adolescência. Ser adolescente é mais ou menos como mendigar em Paris ou estagiar numa empresa bacana: você já está lá, onde tudo acontece, mas não pode participar da festa; porque é duro, porque é nerd, porque é prego, ou porque tem que decorar o número atômico dos alcalinos terrosos e a função das mitocôndrias para a prova da Fuvest.
Só tive o que comemorar, portanto, quando terminaram essas duas fases de tutela e me vi finalmente livre. Aos 30, você escolhe bola, campo e o time em que quer jogar. Tá bom, pode reclamar que sua bola não é uma Jabulani, que o gramado está mais para uma várzea do Tamanduateí do que para o tapete do Camp Nou, que no seu time só tem perna de pau. Mas uma das vantagens da idade adulta é que, ao contrário da infância e da adolescência, que passam num piscar de olhos – ou num xixizinho e numa ejaculação precoce, para nos atermos a imagens mais condizentes com o assunto –, a maturidade dura quatro décadas; é tempo suficiente para você se acostumar consigo mesmo ou para mudar a situação. E talvez seja essa a maior lição da maturidade: saber discernir entre as coisas que você pode e precisa lutar para mudar e aquelas que deve simplesmente aceitar. Na infância ou na adolescência, ser ruim nos esportes era algo que me atormentava. “Por que, ó, Deus, fizeste-me o último a ser escolhido em todos os times, na educação física?”, eu perguntaria ao Senhor, se Nele acreditasse e decidisse importuná-lo com meus resmungos. Hoje, isso é apenas um dado, quase indiferente, como ter cabelo castanho ou ser canhoto.
Se você está em torno dos 30, pode lutar durante os próximos 40 anos para realizar projetos e conquistar a(s) mulher(es) por quem estiver a fim, para correr uma maratona ou ganhar dinheiro; mas vai ter que aceitar suas orelhas de abano ou pernas finas, o fato de não ter a lábia de Don Juan, a inteligência do Einstein, nem a conta do Bill Gates. E por que não aceitaria? O mundo é grande, tá cheio de gente interessante e tem um monte de coisa boa para fazer, mesmo não podendo pegar sempre a mais gata da festa, jamais descobrir uma segunda teoria da relatividade, nem comprar um iate, numa quarta-feira à tarde, se estiver um pouco entediado.
Três décadas. Dá o que pensar. Mas não tenhamos pressa. Como disse uma amiga minha, nos últimos minutos dos meus 29: “Não se preocupe, meu querido, os homens começam aos 30”. Com calma, vamos aproveitar esse longo terceiro ato, antes que chegue o quarto – a velhice – e o quinto – sobre o qual não convém falar, por estar muito lá para a frente, só bem depois dos 90. Ou dos cem? Cento e dez? Cento e quinze, cento e vinte…
Três décadas. Dá o que pensar. Mas não tenhamos pressa. Como disse uma amiga minha, nos últimos minutos dos meus 29: “Não se preocupe, meu querido, os homens começam aos 30”. Com calma, vamos aproveitar esse longo terceiro ato, antes que chegue o quarto – a velhice – e o quinto – sobre o qual não convém falar, por estar muito lá para a frente, só bem depois dos 90. Ou dos cem? Cento e dez? Cento e quinze, cento e vinte…
terça-feira, 7 de junho de 2011
Leituras para melhorar o conteúdo das redações
Muitos de meus alunos surgem pedindo-me sugestões de leitura. Alguns querem bons exemplos de escrita; outros pretendem melhorar seu repertório de conhecimentos. Há ainda os que desejam obras para ajudá-los a pensar criticamente a realidade: querem livros que os ajudem a refletir sobre o homem e o mundo. Em outras palavras, almejam por exemplos que lhes sirvam de aprimoramento da alma.
Pensando nisso, elaborei, em meu site, um top ten visando a socorrer esses pobres vestibulandos sedentos de saber. Trata-se, obviamente, de uma seleção pessoal e, como todas as listas do gênero, é subjetiva, arbitrária, pois reflete as idiossincrasias de quem as elabora.
Pensando nisso, elaborei, em meu site, um top ten visando a socorrer esses pobres vestibulandos sedentos de saber. Trata-se, obviamente, de uma seleção pessoal e, como todas as listas do gênero, é subjetiva, arbitrária, pois reflete as idiossincrasias de quem as elabora.
Vestibular Unifenas 2011/2
Comentários sobre as duas propostas de redação do vestibular 2011/2 da Unifenas: clique aqui.
domingo, 29 de maio de 2011
Verdade e preconceito
TENHO COMENTADO aqui o fato de que, para alguns linguistas, nunca há erro no uso do idioma: tanto faz dizer "problema" como "pobrema" que está certo. Confesso que, na minha modesta condição de escritor e jornalista, surpreendo-me, eu que, ao suspeitar que poderia me tornar poeta, passei dois anos só lendo gramáticas. E sabem por quê? Porque acreditava que escritor não pode escrever errado.
E agora descubro que ninguém escreve errado nunca, pois todo modo de escrever e falar é correto! Perdi meu tempo? Mas alguma coisa em mim se nega a concordar com os linguistas: se em todo campo do conhecimento e da ação humana se cometem erros, por que só no uso da língua não? É difícil de engolir.
Essa questão veio de novo à baila com a notícia de um livro, adotado pelo Ministério da Educação e distribuído às escolas, em que a autora ensina que dizer "os livro" está correto. Estabeleceu-se uma discussão pública do assunto, ficando claro que, fora os linguistas, ninguém aceita que falar errado esteja certo.
Mas não é tão simples assim. Falar não é o mesmo que escrever e, por isso, falando, muita vez cometemos erros que, ao escrever, não cometemos. E às vezes usamos expressões deliberadamente "erradas" ou para fazer graça ou por ironia. Mas, em tudo isso, está implícito que há um modo correto de dizer as coisas, pois a língua tem normas.
O leitor já deve ter ouvido falar em "entropia", uma lei da física que constata a tendência dos sistemas físicos para a desordem. E essa tendência parece presente em todos os sistemas, inclusive nos idiomas, que são também sistemas.
Devemos observar que as línguas, como organismos vivos que são, mudam, transformam-se, como se pode verificar comparando textos escritos em épocas diferentes. Há ainda as variações do falar regional, que guarda inevitáveis peculiaridades e constituem riqueza do idioma.
Mas isso não é a mesma coisa que entropia. Já violar as normas gramaticais é, sim, caminhar para a desordem. Se isso é natural e inevitável, é também natural o esforço para manter a ordem linguística, que não foi inventada pelos gramáticos, mas apenas formulada e sistematizada por eles: nasceu naturalmente porque, sem ela, seria impossível as pessoas se entenderem.
Na minha condição de "especialista em ideias gerais" (Otto Lara Resende), verifico que, atualmente, não só na linguística, tende-se a admitir que tudo está certo e, se alguém discorda dessa generosa abertura, passa a ser tido como superado e preconceituoso.
Agora mesmo, durante essa discussão em torno do tal livro, os defensores da tese linguística afirmaram que quem dela discordava era por preconceito.
Um dos secretários do ministro da Educação declarou que aquele ministério não se julgava "dono da verdade" e que, por isso mesmo, não poderia impedir que o livro fosse comprado e distribuído às escolas.
Uma declaração surpreendente, já que ninguém estava pedindo ao ministro que afirmasse ou negasse a existência de Deus, e sim, tão somente, que decidisse sobre uma questão pertinente à sua função ministerial.
Não é ele o ministro da Educação? Não é ele responsável pelo rumo que se imprima à educação pública no país? Se isso não é de sua competência, é de quem? De fato, o que estava por trás daquela afirmação do secretário não era bem isso, e sim que a crítica ao livro em discussão não tinha nenhum fundamento: era mero preconceito. Ou seja, simples pretensão de quem se julga dono da verdade que, como se sabe, não existe...
Esse relativismo, bastante conveniente quando se quer fugir à responsabilidade, tornou-se a maneira mais fácil de escapar à discussão dos problemas.
Certamente, não se trata de afirmar que as normas e princípios que regem o idioma ou a vida social estejam acima de qualquer crítica, mas, pelo contrário, devem ser questionados e discutidos. Considerar que todo e qualquer reparo a este ou aquele princípio é mero preconceito, isso sim, é pretender que há verdades intocáveis.
Não li o tal livro, não quero julgá-lo a priori. Creio, porém, que quem fala errado vai à escola para aprender a falar certo, mas, se para o professor o errado está certo, não há o que aprender.
E agora descubro que ninguém escreve errado nunca, pois todo modo de escrever e falar é correto! Perdi meu tempo? Mas alguma coisa em mim se nega a concordar com os linguistas: se em todo campo do conhecimento e da ação humana se cometem erros, por que só no uso da língua não? É difícil de engolir.
Essa questão veio de novo à baila com a notícia de um livro, adotado pelo Ministério da Educação e distribuído às escolas, em que a autora ensina que dizer "os livro" está correto. Estabeleceu-se uma discussão pública do assunto, ficando claro que, fora os linguistas, ninguém aceita que falar errado esteja certo.
Mas não é tão simples assim. Falar não é o mesmo que escrever e, por isso, falando, muita vez cometemos erros que, ao escrever, não cometemos. E às vezes usamos expressões deliberadamente "erradas" ou para fazer graça ou por ironia. Mas, em tudo isso, está implícito que há um modo correto de dizer as coisas, pois a língua tem normas.
O leitor já deve ter ouvido falar em "entropia", uma lei da física que constata a tendência dos sistemas físicos para a desordem. E essa tendência parece presente em todos os sistemas, inclusive nos idiomas, que são também sistemas.
Devemos observar que as línguas, como organismos vivos que são, mudam, transformam-se, como se pode verificar comparando textos escritos em épocas diferentes. Há ainda as variações do falar regional, que guarda inevitáveis peculiaridades e constituem riqueza do idioma.
Mas isso não é a mesma coisa que entropia. Já violar as normas gramaticais é, sim, caminhar para a desordem. Se isso é natural e inevitável, é também natural o esforço para manter a ordem linguística, que não foi inventada pelos gramáticos, mas apenas formulada e sistematizada por eles: nasceu naturalmente porque, sem ela, seria impossível as pessoas se entenderem.
Na minha condição de "especialista em ideias gerais" (Otto Lara Resende), verifico que, atualmente, não só na linguística, tende-se a admitir que tudo está certo e, se alguém discorda dessa generosa abertura, passa a ser tido como superado e preconceituoso.
Agora mesmo, durante essa discussão em torno do tal livro, os defensores da tese linguística afirmaram que quem dela discordava era por preconceito.
Um dos secretários do ministro da Educação declarou que aquele ministério não se julgava "dono da verdade" e que, por isso mesmo, não poderia impedir que o livro fosse comprado e distribuído às escolas.
Uma declaração surpreendente, já que ninguém estava pedindo ao ministro que afirmasse ou negasse a existência de Deus, e sim, tão somente, que decidisse sobre uma questão pertinente à sua função ministerial.
Não é ele o ministro da Educação? Não é ele responsável pelo rumo que se imprima à educação pública no país? Se isso não é de sua competência, é de quem? De fato, o que estava por trás daquela afirmação do secretário não era bem isso, e sim que a crítica ao livro em discussão não tinha nenhum fundamento: era mero preconceito. Ou seja, simples pretensão de quem se julga dono da verdade que, como se sabe, não existe...
Esse relativismo, bastante conveniente quando se quer fugir à responsabilidade, tornou-se a maneira mais fácil de escapar à discussão dos problemas.
Certamente, não se trata de afirmar que as normas e princípios que regem o idioma ou a vida social estejam acima de qualquer crítica, mas, pelo contrário, devem ser questionados e discutidos. Considerar que todo e qualquer reparo a este ou aquele princípio é mero preconceito, isso sim, é pretender que há verdades intocáveis.
Não li o tal livro, não quero julgá-lo a priori. Creio, porém, que quem fala errado vai à escola para aprender a falar certo, mas, se para o professor o errado está certo, não há o que aprender.
GULLAR, Ferreira. Folha de S. Paulo, 29 maio 2011.
Meros funcionários
Certo livro didático está na berlinda por propor que as pessoas possam fugir da norma culta da língua portuguesa e dizer "Os livro" e "Nós pega os peixe". De fato, as normas existem para ser transgredidas - mas por quem de direito. Eis alguns que fizeram isto no romance, na música popular e na poesia. E o fizeram muito bem.
Guimarães Rosa reinventou a língua criando palavras como "ensimesmudo", "sussurruído", "engenhingonça", "coraçãomente", "infinilhões", "homenzarrinho" e muitas outras. Essa língua só existia em seus livros. Adoniran Barbosa escreveu "Arnesto", "brabuleta", "pogréssio" e "nóis não semo tatu" porque fazia um tipo, um personagem. Não falava assim na vida real e não gostava quando parafraseavam suas letras, mesmo mantendo sua gramática particular.
Ferreira Gullar detonou a língua nos versos finais de "A Luta Corporal", ao escrever "Urr verõens/ Ôr/ Túfuns/ Lerr desvéslez várzens". Mas, nos anos seguintes, trouxe-a de volta aos cânones, para usá-la como ninguém. E João Cabral de Melo Neto, no poema "Uma Faca Só Lâmina", rimou "faca" com "bala" e "ávida" com "lâmina". Se lhe dissessem que essas palavras não rimam, ele diria que, nos poemas dele, rimavam, sim.
No fox-nonsense "Canção Pra Inglês Ver", Lamartine Babo misturou citações em português e inglês, resultando em "I love you/ Forget sclaine/ Maine Itapiru". E, antes dele, Juó Bananére já tinha feito paródias em dialeto ítalo-caipira de poemas conhecidos, tipo "Che bruta insgugliambaçó/ Che troça, che bringadêra/ Imbaixo das bananêra/ Na sombra dos bambuzá".
Rosa, Adoniran, Gullar, João Cabral, Lalá e Bananére não fizeram escola, nem esta era sua intenção. Continuaram únicos. Artistas podem e devem fugir da norma. Já os professores e linguistas têm de aderir a ela, como meros funcionários da língua que são.
Guimarães Rosa reinventou a língua criando palavras como "ensimesmudo", "sussurruído", "engenhingonça", "coraçãomente", "infinilhões", "homenzarrinho" e muitas outras. Essa língua só existia em seus livros. Adoniran Barbosa escreveu "Arnesto", "brabuleta", "pogréssio" e "nóis não semo tatu" porque fazia um tipo, um personagem. Não falava assim na vida real e não gostava quando parafraseavam suas letras, mesmo mantendo sua gramática particular.
Ferreira Gullar detonou a língua nos versos finais de "A Luta Corporal", ao escrever "Urr verõens/ Ôr/ Túfuns/ Lerr desvéslez várzens". Mas, nos anos seguintes, trouxe-a de volta aos cânones, para usá-la como ninguém. E João Cabral de Melo Neto, no poema "Uma Faca Só Lâmina", rimou "faca" com "bala" e "ávida" com "lâmina". Se lhe dissessem que essas palavras não rimam, ele diria que, nos poemas dele, rimavam, sim.
No fox-nonsense "Canção Pra Inglês Ver", Lamartine Babo misturou citações em português e inglês, resultando em "I love you/ Forget sclaine/ Maine Itapiru". E, antes dele, Juó Bananére já tinha feito paródias em dialeto ítalo-caipira de poemas conhecidos, tipo "Che bruta insgugliambaçó/ Che troça, che bringadêra/ Imbaixo das bananêra/ Na sombra dos bambuzá".
Rosa, Adoniran, Gullar, João Cabral, Lalá e Bananére não fizeram escola, nem esta era sua intenção. Continuaram únicos. Artistas podem e devem fugir da norma. Já os professores e linguistas têm de aderir a ela, como meros funcionários da língua que são.
CASTRO, RUY. Folha de S. Paulo, 20 maio 2011, p. A2.
"Os livro"
Há notório exagero na polêmica deflagrada pela revelação de que um livro didático adotado pelo Ministério da Educação (MEC) admite o emprego de expressões erradas, do ponto de vista gramatical, dependendo do contexto em que são utilizadas.
"Os livro ilustrado mais interessante estão emprestado." Segundo a obra "Por Uma Vida Melhor", distribuída a alunos jovens e adultos de 4.236 escolas do país, uma frase como essa pode ser empregada, embora o estudante seja ali advertido de que, ao fazê-lo, "corre o risco de ser vítima de preconceito linguístico".
Há muito que a norma culta - o padrão estabelecido por gramáticos e lexicógrafos, que nem sempre, aliás, se põem de acordo - deixou de ter valor absoluto. O substrato real de toda língua está na fala popular, que evolui ao longo do tempo e impõe, cedo ou tarde, mudanças na norma que se convencionou ser a correta.
Em contexto oral, coloquial ou literário, admitem-se variações definidas como erradas pelo padrão gramatical. Esse padrão configura apenas um conjunto de convenções que assegura lógica ao funcionamento do idioma, ainda que suas regras sejam eivadas de exceções e anomalias.
Daí não decorre, porém, que a norma culta seja um parâmetro inútil ou preconceituoso. Trata-se de um lastro, que também evolui no tempo, cujo sentido é tornar a língua estável e previsível; sem tal garantia, as variações cresceriam de forma desordenada até inviabilizar a própria comunicação.
Além disso, o aprendizado da norma culta faz parte da disciplina intelectual que deveria ser estimulada em qualquer estabelecimento de ensino. Aprender custa tempo e esforço.
O episódio, que faz lembrar as ferozes controvérsias gramaticais da República Velha (1889-1930), é menos relevante em si do que pelo que reitera em termos de mentalidade pedagógica.
De algumas décadas para cá, a pretexto de promover uma educação "popular" ou "democrática", muitos educadores dedicam-se a solapar toda forma de saber implicada no repertório de conteúdos que a humanidade vem acumulando ao longo das gerações.
Em vez da revolução pedagógica que apregoam, o resultado tem sido a implantação despercebida da lei do menor esforço nas escolas. Estuda-se pouco e ensina-se mal. Isso - e não suscetibilidades gramaticais- é o que deveria preocupar.
"Os livro ilustrado mais interessante estão emprestado." Segundo a obra "Por Uma Vida Melhor", distribuída a alunos jovens e adultos de 4.236 escolas do país, uma frase como essa pode ser empregada, embora o estudante seja ali advertido de que, ao fazê-lo, "corre o risco de ser vítima de preconceito linguístico".
Há muito que a norma culta - o padrão estabelecido por gramáticos e lexicógrafos, que nem sempre, aliás, se põem de acordo - deixou de ter valor absoluto. O substrato real de toda língua está na fala popular, que evolui ao longo do tempo e impõe, cedo ou tarde, mudanças na norma que se convencionou ser a correta.
Em contexto oral, coloquial ou literário, admitem-se variações definidas como erradas pelo padrão gramatical. Esse padrão configura apenas um conjunto de convenções que assegura lógica ao funcionamento do idioma, ainda que suas regras sejam eivadas de exceções e anomalias.
Daí não decorre, porém, que a norma culta seja um parâmetro inútil ou preconceituoso. Trata-se de um lastro, que também evolui no tempo, cujo sentido é tornar a língua estável e previsível; sem tal garantia, as variações cresceriam de forma desordenada até inviabilizar a própria comunicação.
Além disso, o aprendizado da norma culta faz parte da disciplina intelectual que deveria ser estimulada em qualquer estabelecimento de ensino. Aprender custa tempo e esforço.
O episódio, que faz lembrar as ferozes controvérsias gramaticais da República Velha (1889-1930), é menos relevante em si do que pelo que reitera em termos de mentalidade pedagógica.
De algumas décadas para cá, a pretexto de promover uma educação "popular" ou "democrática", muitos educadores dedicam-se a solapar toda forma de saber implicada no repertório de conteúdos que a humanidade vem acumulando ao longo das gerações.
Em vez da revolução pedagógica que apregoam, o resultado tem sido a implantação despercebida da lei do menor esforço nas escolas. Estuda-se pouco e ensina-se mal. Isso - e não suscetibilidades gramaticais- é o que deveria preocupar.
Folha de S. Paulo, 19 maio 2011, p. A2.
domingo, 15 de maio de 2011
Inguinorança
Não, leitor, o título acima não está errado, segundo os padrões educacionais agora adotados pelo mal chamado Ministério de Educação. Você deve ter visto que o MEC deu aval a um livro que se diz didático no qual se ensina que falar "os livro" pode.
Não pode, não, está errado, é ignorância, pura ignorância, má formação educacional, preguiça do educador em corrigir erros. Afinal, é muito mais difícil ensinar o certo do que aceitar o errado com o qual o aluno chega à escola.
Em tese, os professores são pagos - mal pagos, é verdade - para ensinar o certo. Mas, se aceitam o errado, como agora avaliza o MEC, o baixo salário está justificado. O professor perde a razão de reclamar porque não está cumprindo o seu papel, não está trabalhando direito e quem não trabalha direito não merece boa paga.
Os autores do crime linguístico aprovado pelo MEC usam um argumento delinquencial para dar licença para o assassinato da língua: dizem que quem usa "os livro" precisa ficar atento porque "corre o risco de ser vítima de preconceito linguístico".
Absurdo total. Não se trata de preconceito linguístico. Trata-se, pura e simplesmente, de respeitar normas que custaram anos de evolução para que as pessoas pudessem se comunicar de uma maneira que umas entendam perfeitamente as outras.
Os autores do livro criminoso poderiam usar outro exemplo: "Posso matar um desafeto? Claro que pode. Mas fique atento porque, dependendo da situação, você corre o risco de ser vítima de preconceito jurídico".
Tal como matar alguém viola uma norma, matar o idioma viola outra. Condenar uma e outra violação está longe de ser preconceito. É um critério civilizatório.
Que professores prefiram a preguiça ao ensino, já é péssimo. Que o MEC os premie, é crime.
Não pode, não, está errado, é ignorância, pura ignorância, má formação educacional, preguiça do educador em corrigir erros. Afinal, é muito mais difícil ensinar o certo do que aceitar o errado com o qual o aluno chega à escola.
Em tese, os professores são pagos - mal pagos, é verdade - para ensinar o certo. Mas, se aceitam o errado, como agora avaliza o MEC, o baixo salário está justificado. O professor perde a razão de reclamar porque não está cumprindo o seu papel, não está trabalhando direito e quem não trabalha direito não merece boa paga.
Os autores do crime linguístico aprovado pelo MEC usam um argumento delinquencial para dar licença para o assassinato da língua: dizem que quem usa "os livro" precisa ficar atento porque "corre o risco de ser vítima de preconceito linguístico".
Absurdo total. Não se trata de preconceito linguístico. Trata-se, pura e simplesmente, de respeitar normas que custaram anos de evolução para que as pessoas pudessem se comunicar de uma maneira que umas entendam perfeitamente as outras.
Os autores do livro criminoso poderiam usar outro exemplo: "Posso matar um desafeto? Claro que pode. Mas fique atento porque, dependendo da situação, você corre o risco de ser vítima de preconceito jurídico".
Tal como matar alguém viola uma norma, matar o idioma viola outra. Condenar uma e outra violação está longe de ser preconceito. É um critério civilizatório.
Que professores prefiram a preguiça ao ensino, já é péssimo. Que o MEC os premie, é crime.
ROSSi, Clóvis. Folha de S. Paulo, 15 maio 2011, p. A2.
sábado, 7 de maio de 2011
Woody Allen põe Machado entre favoritos
Em entrevista ao jornal britânico "The Guardian", o cineasta indicou "Memórias Póstumas de Brás Cubas" como um dos cinco livros que mais o influenciaram, ao lado de "O Apanhador no Campo de Centeio", de J.D. Salinger. "Fiquei chocado com o quão charmoso e interessante [o livro] era."
Folha de S. Paulo, 7 maio 2011.
sexta-feira, 29 de abril de 2011
O amor e o ódio
"As paixões do coração humano, como as divide e numera Aristóteles, são onze; mas, todas elas se reduzem a duas capitais, amor e ódio. E estes dois afetos cegos são os dois pólos em que se resolve o mundo, por isso tão mal governado.
Eles são os que pesam os merecimentos; eles os que qualificam as ações; eles os que avaliam as prendas; eles os que repartem as fortunas.
Eles são os que enfeitam ou decompõem; eles os que fazem ou aniquilam; eles os que pintam ou despintam os objetos, dando e tirando a seu arbítrio, a cor, a medida e ainda o mesmo ser e substância, sem outra distinção ou juízo que aborrecer ou amar.
Se os olhos veem com amor, o corvo é branco; se, com ódio, o cisne é negro. Se, com amor, o demônio é formoso; se, com ódio, o anjo é feio. Se, com amor, o pigmeu é gigante; se, com ódio, o gigante é pigmeu. Se, com amor, o que não é tem de ser; se, com ódio, o que tem de ser e é bem que seja, não é nem será jamais."
Pe. Antônio Vieira
quinta-feira, 21 de abril de 2011
Minha pátria é a Língua Portuguesa
Não chóro por nada que a vida traga ou leve. Há porém paginas de prosa me teem feito chorar. Lembro-me, como do que estou vendo, da noute em que, ainda creança, li pela primeira vez numa selecta, o passo celebre de Vieira sobre o Rei Salomão, "Fabricou Salomão um palacio..." E fui lendo, até ao fim, tremulo, confuso; depois rompi em lagrimas felizes, como nenhuma felicidade real me fará chorar, como nenhuma tristeza da vida me fará imitar. Aquelle movimento hieratico da nossa clara lingua majestosa, aquelle exprimir das idéas nas palavras inevitaveis, correr de agua porque ha declive, aquelle assombro vocalico em que os sons são cores ideaes — tudo isso me toldou de instincto como uma grande emoção politica. E, disse, chorei; hoje, relembrando, ainda chóro. Não é — não — a saudade da infancia, de que não tenho saudades: é a saudade da emoção d´aquelle momento, a magua de não poder já ler pela primeira vez aquella grande certeza symphonica.
Não tenho sentimento nenhum politico ou social. Tenho, porém, num sentido, um alto sentimento patriotico. Minha patria é a lingua portuguesa. Nada me pesaria que invadissem ou tomassem Portugal, desde que não me incommodassem pessoalmente, Mas odeio, com odio verdadeiro, com o unico odio que sinto, não quem escreve mal portuguez, não quem não sabe syntaxe, não quem escreve em orthographia simplificada, mas a pagina mal escripta, como pessoa própria, a syntaxe errada, como gente em que se bata, a orthographia sem ípsilon, como escarro directo que me enoja independentemente de quem o cuspisse.Sim, porque a orthographia também é gente. A palavra é completa vista e ouvida. E a gala da transliteração greco-romana veste-m´a do seu vero manto régio, pelo qual é senhora e rainha.
* Texto publicado originariamente em "Descobrimento", revista de Cultura n.º 3, 1931, pp. 409-410, transcrito do "Livro do Desassossego", por Bernardo Soares (heterônimo de Fernando Pessoa), numa recolha de Maria Aliete Galhoz e Teresa Sobral Cunha; ed. de Jacinto do Prado Coelho, Lisboa, Ática, 1982 vol. I, p. 16-17. Respeitou-se a ortografia da época de Fernando Pessoa.
terça-feira, 15 de março de 2011
Vigília
VOCÊ TEM baixa autoestima? Se sua resposta for "não", provavelmente se enganou.
Por quê? Porque todo mundo tem baixa autoestima por razões óbvias: falta de grana, de afeto, de saúde. E corpo e alma são feitos de grana, afeto e saúde.
Esse tripé é a chave para os aproveitadores do sobrenatural "acertarem" com frequência suas consultas sobre o destino de suas vítimas.
Resumindo a dor humana, tudo cabe nesse tripé. Basta atirar numa dessas razões óbvias, seguindo alguns critérios de como o cliente se apresenta, que a chance de acertar é grande.
Quase sempre o cliente é mulher, dizem os especialistas. Os homens seriam mais céticos. Por quê? Porque, dizem, "almas femininas" são mais dadas a crenças ingênuas. Eu cá tenho minhas dúvidas sobre isso porque conheço mulheres que deixam qualquer assaltante de banco assustado pela frieza com a vida.
Por quê? Porque todo mundo tem baixa autoestima por razões óbvias: falta de grana, de afeto, de saúde. E corpo e alma são feitos de grana, afeto e saúde.
Esse tripé é a chave para os aproveitadores do sobrenatural "acertarem" com frequência suas consultas sobre o destino de suas vítimas.
Resumindo a dor humana, tudo cabe nesse tripé. Basta atirar numa dessas razões óbvias, seguindo alguns critérios de como o cliente se apresenta, que a chance de acertar é grande.
Quase sempre o cliente é mulher, dizem os especialistas. Os homens seriam mais céticos. Por quê? Porque, dizem, "almas femininas" são mais dadas a crenças ingênuas. Eu cá tenho minhas dúvidas sobre isso porque conheço mulheres que deixam qualquer assaltante de banco assustado pela frieza com a vida.
Se for jovem, menos chance de ser doença, a menos que seja na família (neste caso, a menina tem que ter uma carinha de madre Tereza de Calcutá, do contrário, o que é mais provável, é quase sempre amor, porque meninas só pensam em meninos, graças a Deus).
Se for mais velha, saúde pode ser uma boa pedida. Mas, se estiver mal vestida, grana pode ser a causa também. Quando falta grana, a saúde normalmente falta também. Ou faltará.
Mas divago. Voltemos à miséria da baixa autoestima.
O mercado da autoestima cresce com livros e treinamentos e conferências para motivação e assertividade. O efeito dura uns dois dias, dependendo do estado de espírito. Se a dor for muito grande, a dependência da autoajuda poderá se tornar um vício.
Eu, que sou um medieval em matéria de natureza humana (afora alguns trágicos modernos), confio mais nos antigos e medievais, justamente porque não temiam ver o ser humano como um miserável em termos de autoestima.
Como o pensamento moderno e contemporâneo é um pensamento "para um mundo melhor", só pode virar autoajuda.
Entre outros, adoro santo Agostinho (354 d.C.-430 d.C.). Meus alunos, moçada de 18 ou 19 anos, da elite econômica, leem santo Agostinho. Eles discutem pecado, graça, inferno, o Mal, Deus, mito de Adão e Eva e afins.
E sem qualquer um desses "recursos didáticos" inventados para o professor não ter que dar aula ou não ter que entender do assunto.
Quase toda a pedagogia "moderna" é blá-blá-blá. E grande parte dos problemas da sala de aula é fruto da baixa vocação dos professores e do fato de que grande parte dos estudantes não tem nenhuma vocação para aprender qualquer coisa além do que interessa para garantir um lugar no mercado de trabalho.
Inteligência sempre foi uma maldição de poucos e isso nada tem a ver com grana ou com você ser uma pessoa moralmente legal. A falta de grana apenas ajuda a esmagar você mais rápido, o que piora se você for uma pessoa mais sensível.
Baixa autoestima é a regra do mundo. Todo adulto sabe disso. No trabalho, no corpo, na alma. Mas ficou na moda dizer que todo mundo é "maravilhoso!".
Voltando a um dos meus santos favoritos, santo Agostinho. Segundo dizem, ele não era um cara fácil. É sempre assim com os santos: nunca são santinhos.
Entendia de ser humano. Sabia que no fundo da alma habita o medo da tristeza e do fracasso, inevitáveis quando se é mortal (em todos os sentidos do termo).
Se for mais velha, saúde pode ser uma boa pedida. Mas, se estiver mal vestida, grana pode ser a causa também. Quando falta grana, a saúde normalmente falta também. Ou faltará.
Mas divago. Voltemos à miséria da baixa autoestima.
O mercado da autoestima cresce com livros e treinamentos e conferências para motivação e assertividade. O efeito dura uns dois dias, dependendo do estado de espírito. Se a dor for muito grande, a dependência da autoajuda poderá se tornar um vício.
Eu, que sou um medieval em matéria de natureza humana (afora alguns trágicos modernos), confio mais nos antigos e medievais, justamente porque não temiam ver o ser humano como um miserável em termos de autoestima.
Como o pensamento moderno e contemporâneo é um pensamento "para um mundo melhor", só pode virar autoajuda.
Entre outros, adoro santo Agostinho (354 d.C.-430 d.C.). Meus alunos, moçada de 18 ou 19 anos, da elite econômica, leem santo Agostinho. Eles discutem pecado, graça, inferno, o Mal, Deus, mito de Adão e Eva e afins.
E sem qualquer um desses "recursos didáticos" inventados para o professor não ter que dar aula ou não ter que entender do assunto.
Quase toda a pedagogia "moderna" é blá-blá-blá. E grande parte dos problemas da sala de aula é fruto da baixa vocação dos professores e do fato de que grande parte dos estudantes não tem nenhuma vocação para aprender qualquer coisa além do que interessa para garantir um lugar no mercado de trabalho.
Inteligência sempre foi uma maldição de poucos e isso nada tem a ver com grana ou com você ser uma pessoa moralmente legal. A falta de grana apenas ajuda a esmagar você mais rápido, o que piora se você for uma pessoa mais sensível.
Baixa autoestima é a regra do mundo. Todo adulto sabe disso. No trabalho, no corpo, na alma. Mas ficou na moda dizer que todo mundo é "maravilhoso!".
Voltando a um dos meus santos favoritos, santo Agostinho. Segundo dizem, ele não era um cara fácil. É sempre assim com os santos: nunca são santinhos.
Entendia de ser humano. Sabia que no fundo da alma habita o medo da tristeza e do fracasso, inevitáveis quando se é mortal (em todos os sentidos do termo).
Ao contrário do que se diz, quando acreditamos nesse blá-blá-blá de "amar a si mesmo", afundamos na miséria da baixa autoestima, porque conhecemos no silêncio de nós mesmos as baixarias que compõem a substância de nossa alma. Dentro de cada um de nós habita um demônio em vigília.
"Autoestima" é um termo contemporâneo, mas cabe bem na reflexão agostiniana sobre a vaidade como prisão psicológica.
Existe coisa mais brega do que querer amar a si mesmo? Amar a si mesmo é vão.
Uma pérola de santo Agostinho para começar sua semana: se você quiser ser livre, ame. Isso aí: não é buscando ser amado que escapamos da miséria da baixa autoestima, mas amando. Qualquer egoísta pode ser amado.
Os melhores dias da minha vida são aqueles em que eu não lembro que existo.
PONDÉ, Luiz Felipe. Folha de S. Paulo, 14 mar. 2011.
domingo, 13 de março de 2011
sexta-feira, 11 de março de 2011
DJ, fotógrafo, chef, modelo & ator
NÃO SE SABE quando a arte se tornou peça de colecionador. Presente de forma ritual em qualquer sociedade antes mesmo do alfabeto, um dia ela passou a ser cultuada. Bom para os artistas, que conseguiam destaque social ao serem apadrinhados pelos poderosos para forrar paredes com seus quadros ou enfeitar festas com sua música, dança e comida.
Mas como bem o sabem tantos meninos aspirantes a jogador de futebol, o talento só se desenvolve quando acompanhado de muito treino. Mesmo o jovem Mozart, que encantava a corte com a sua habilidade, só compôs obras-primas quando chegou perto dos 30.
A prática leva à perfeição, mas ela é muito chata. Os filmes e séries de TV ambientados em tribunais e ambulatórios não seriam tão populares se mostrassem o tempo que se passa em bibliotecas e laboratórios. Quem imagina reger uma orquestra ou tocar um instrumento não pensa em se dedicar várias horas por dia a essas atividades. Calos e bolhas não são sexy, consumir arte sempre exigiu menos trabalho e dedicação do que ser artista.
Um dia essa situação mudou. As seitas da autoajuda e do faça-você-mesmo se encontraram com a indústria de software na busca por remover o "problema" da prática e "democratizar" o talento. Com uma mãozinha dos computadores, todos ficaram livres para exprimir suas ideias. Não era mais preciso saber desenhar para ser designer, fotógrafos podiam abrir mão dos laboratórios, músicos de seus instrumentos, diretores das ilhas de edição e assim por diante.
Até mesmo quem dependesse de seu corpo como ferramenta podia usar câmaras e efeitos especiais para compensar deficiências.
Tudo seria ótimo se o resultado pudesse ser medido. Mas como não há cor, tom, cheiro ou gosto absolutos, não há parâmetro. Isso faz com que muitos se tornem autodidatas pragmáticos, que se desviam de qualquer obstáculo em nome de seu "estilo". Contestar uma prática sempre foi mais fácil do que segui-la.
A tecnologia não elimina restrições, só muda sua natureza. Um artista sério continua a precisar de muito conhecimento, treino e, principalmente, de boas referências. As limitações sempre estimularam a prática e o apuro da técnica. Quando são eliminadas, surge a impressão de que é fácil fazer arte. E de que é possível se destacar em várias especialidades.
As ferramentas criativas tornaram a expressão quase compulsória. Leonardo da Vinci ficaria chocado ao perceber que hoje teria que falar como intelectual, escolher vinhos como enólogo, cozinhar como gourmet, cantar como Frank Sinatra e dançar como John Travolta para ser "descolado".
O resultado dessa demanda fica visível nas crises de autoestima, nas epidemias de depressão e nos transtornos de atenção. Seu efeito colateral não é uma sociedade mais criativa, mas uma composta por gente insatisfeita, egocêntrica, desorientada, insegura e sem critério. Para suprir as necessidades de expressão, muitos buscam no entretenimento pop manifestações de consumo fácil, sem justificativas. Assim se entende o sucesso do Justin Bieber ou do "Big Brother". Quando todos estão conectados, as diferenças se igualam pela média. É Arquimedes na prática.
Mas como bem o sabem tantos meninos aspirantes a jogador de futebol, o talento só se desenvolve quando acompanhado de muito treino. Mesmo o jovem Mozart, que encantava a corte com a sua habilidade, só compôs obras-primas quando chegou perto dos 30.
A prática leva à perfeição, mas ela é muito chata. Os filmes e séries de TV ambientados em tribunais e ambulatórios não seriam tão populares se mostrassem o tempo que se passa em bibliotecas e laboratórios. Quem imagina reger uma orquestra ou tocar um instrumento não pensa em se dedicar várias horas por dia a essas atividades. Calos e bolhas não são sexy, consumir arte sempre exigiu menos trabalho e dedicação do que ser artista.
Um dia essa situação mudou. As seitas da autoajuda e do faça-você-mesmo se encontraram com a indústria de software na busca por remover o "problema" da prática e "democratizar" o talento. Com uma mãozinha dos computadores, todos ficaram livres para exprimir suas ideias. Não era mais preciso saber desenhar para ser designer, fotógrafos podiam abrir mão dos laboratórios, músicos de seus instrumentos, diretores das ilhas de edição e assim por diante.
Até mesmo quem dependesse de seu corpo como ferramenta podia usar câmaras e efeitos especiais para compensar deficiências.
Tudo seria ótimo se o resultado pudesse ser medido. Mas como não há cor, tom, cheiro ou gosto absolutos, não há parâmetro. Isso faz com que muitos se tornem autodidatas pragmáticos, que se desviam de qualquer obstáculo em nome de seu "estilo". Contestar uma prática sempre foi mais fácil do que segui-la.
A tecnologia não elimina restrições, só muda sua natureza. Um artista sério continua a precisar de muito conhecimento, treino e, principalmente, de boas referências. As limitações sempre estimularam a prática e o apuro da técnica. Quando são eliminadas, surge a impressão de que é fácil fazer arte. E de que é possível se destacar em várias especialidades.
As ferramentas criativas tornaram a expressão quase compulsória. Leonardo da Vinci ficaria chocado ao perceber que hoje teria que falar como intelectual, escolher vinhos como enólogo, cozinhar como gourmet, cantar como Frank Sinatra e dançar como John Travolta para ser "descolado".
O resultado dessa demanda fica visível nas crises de autoestima, nas epidemias de depressão e nos transtornos de atenção. Seu efeito colateral não é uma sociedade mais criativa, mas uma composta por gente insatisfeita, egocêntrica, desorientada, insegura e sem critério. Para suprir as necessidades de expressão, muitos buscam no entretenimento pop manifestações de consumo fácil, sem justificativas. Assim se entende o sucesso do Justin Bieber ou do "Big Brother". Quando todos estão conectados, as diferenças se igualam pela média. É Arquimedes na prática.
RADFAHRER, Luli. Folha de S. Paulo, 9 mar. 2011.
quarta-feira, 9 de março de 2011
sábado, 12 de fevereiro de 2011
sábado, 5 de fevereiro de 2011
Anotações sobre o ensino II
- Papel dos pais: "Há alunos brilhantes, curiosos, esforçados, interessados, capazes. Não estamos falando de superdotados. São meninos e meninas comuns, de colégios públicos e particulares, pobres ou ricos, que vão para a escola e... aprendem. Mais: formam-se. Estão no caminho de se tornar cidadãos melhores, pessoas melhores, gente de sucesso. Fazer com que uma criança seja assim não está inteiramente ao alcance dos pais. Pesquisas mundiais mostram que o envolvimento paterno responde por, no máximo, 20% da nota final. O restante seria determinado pela qualidade da escola, a relação com os professores, a influência dos colegas e, claro, seu próprio talento." ARINI, Juliana, BAHÉ, Marco, FERNANDES, Nelito et al. Como se forma um bom aluno. Época, ed. 616, 6 mar. 2010.
- Importância do professor: "A diferença entre esses dois professores – um bom, o outro ótimo – é o fator de maior impacto na educação. Não é que não seja importante ter computadores, visitar pontos históricos ou culturais, adotar bons livros e apostilas ou manter poucos alunos nas salas de aula. É. Mas, como revela um conjunto de estudos recentes, nada tem tanto efeito sobre o aprendizado quanto a qualidade do professor. Fatores genéticos podem ser responsáveis por diferenças notáveis no desempenho de uma criança na escola. Mas eles só se manifestam se o professor for bom, diz um estudo da Universidade da Flórida, publicado na edição deste mês da revista Science. (O estudo analisou os níveis de leitura de gêmeos que estudavam em classes diferentes. Os que tinham professores piores – medidos de acordo com o resultado geral da sala – não atingiam o nível dos irmãos, com carga genética idêntica.) Esse resultado põe em xeque o mito de que bons alunos se fazem sozinhos." GUIMARÃES, Camila. O segredo dos bons professores. Época, ed. 623, 24 abr. 2010.
quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011
Salve a decoreba!
A vingança da decoreba
Esta vai deixar alguns pedagogos de cabelos em pé. Trabalho publicado anteontem na "Science" mostra que alunos que estudam por métodos do tipo decoreba aprendem mais do que os que utilizam outras técnicas.O "paper", que tem como autor principal o psicólogo Jeffrey Karpicke, da Universidade Purdue, comparou o desempenho de voluntários que estudaram um texto científico se valendo de um método que enfatiza a memória (leitura seguida de um exercício de fixação mnemônica) com o de alunos que usaram a técnica do mapa conceitual, na qual leem o texto e depois desenham diagramas relacionando os conceitos apresentados.
Desenvolvido por Joseph Novak nos anos 70, o mapa conceitual tem como pressuposto a teoria da aprendizagem significativa, segundo a qual aprender é estabelecer relações relevantes entre ideias.
Uma semana depois, os estudantes fizeram um exame para descobrir quanto haviam aprendido. O grupo da decoreba teve um índice de acertos 50% maior do que o do mapa. A grande surpresa, porém, foi que os memorizadores se saíram melhor tanto nas perguntas que envolviam a mera reprodução das ideias originais como também nas questões que exigiam que eles fizessem inferências, estabelecendo novas conexões entre os conceitos.
Um segundo experimento aprofundou um pouco mais esses achados, explorando, por exemplo, o desempenho de um mesmo estudante com os dois métodos de estudo. Em todas as situações, a decoreba apresentou melhores resultados que o mapa conceitual.
Evidentemente, ainda é cedo para generalizar as conclusões desse trabalho, que ainda precisa ser reproduzido em outros centros para ganhar nível de evidência. Mas já é certo que ele cairá como uma bomba na guerra pedagógico-ideológica que opõe os entusiastas da educação construtivista aos defensores de métodos tradicionais.
Uma semana depois, os estudantes fizeram um exame para descobrir quanto haviam aprendido. O grupo da decoreba teve um índice de acertos 50% maior do que o do mapa. A grande surpresa, porém, foi que os memorizadores se saíram melhor tanto nas perguntas que envolviam a mera reprodução das ideias originais como também nas questões que exigiam que eles fizessem inferências, estabelecendo novas conexões entre os conceitos.
Um segundo experimento aprofundou um pouco mais esses achados, explorando, por exemplo, o desempenho de um mesmo estudante com os dois métodos de estudo. Em todas as situações, a decoreba apresentou melhores resultados que o mapa conceitual.
Evidentemente, ainda é cedo para generalizar as conclusões desse trabalho, que ainda precisa ser reproduzido em outros centros para ganhar nível de evidência. Mas já é certo que ele cairá como uma bomba na guerra pedagógico-ideológica que opõe os entusiastas da educação construtivista aos defensores de métodos tradicionais.
SCWARTSMAN, Hélio. A vingança da decoreba.Folha de S. Paulo, 22 jan. 2011, p. A2.
terça-feira, 1 de fevereiro de 2011
Anotações sobre o ensino I
Seguem alguns parágrafos selecionados de artigo de Gustavo Ioschpe, intitulado "Como melhorar a educação brasileira", publicado na revista Veja, em 10 nov. 2010. A vantagem é que o texto se baseia em estudos empíricos e não em achismos ou teorias.
- Regra de ouro: "Se tivesse de resumir toda essa literatura - centenas de estudos, de vários países e anos - em uma regra de ouro, diria: o tempo de contato entre o aluno e o professor é muito valioso e escasso, e deve ser usado apenas para atividades educacionais. Tudo aquilo que pode ser feito fora da sala de aula deve ser feito fora da sala de aula. A primeira prática de um professor efetivo é, portanto, o uso eficiente do tempo de aula. Muitos professores chegam atrasados a suas salas. Perdem tempo fazendo chamada, dando recados e advertências. É um desperdício."
- Atividades: "Para muitos dos nossos professores, 'aula' significa encher o quadro-negro de matéria e pedir aos alunos que a copiem, depois passar exercícios e pedir-lhes que os resolvam, e finalmente, se sobrar tempo, tirar uma dúvida ou outra. É um erro. Copiar texto é algo que pode ser feito em casa, então deve ser feito em casa. Exercícios, se são feitos pelo aluno individualmente, também. O tempo de sala de aula deveria servir para que professores e alunos conversassem sobre o texto que foi lido em casa e os exercícios feitos em casa."
- Dever de casa: "As pesquisas mostram que alunos que têm de fazer dever de casa mais frequentemente aprendem mais, especialmente a partir da 4ª série. Um estudo feito em Minas Gerais mostrou que alunos de professores que prescrevem e corrigem o dever de casa aprendem mais do que aqueles cujos professores simplesmente o prescrevem. E alunos de professores que, ao corrigir o dever, comentam e explicam os erros e acertos aprendem mais do que aqueles cujos professores apenas marcam o 'certo' ou 'errado'."
- Exercício em sala: "... são contraproducentes. Subtraem tempo de aula para algo que o aluno pode fazer em casa."
- Avaliação: "... alunos que são testados com maior frequência aprendem mais. Faz sentido: quanto mais provas, mais o aluno tem de estudar. Quanto mais estuda, mais aprende."
- Tecnologia: "Outro erro comum que cometemos é acreditar que a tecnologia e a infraestrutura são fatores determinantes para o aprendizado. Costumo ouvir, depois de palestras, as reclamações dos nossos professores de que são forçados ainda a conviver com 'cuspe e giz' na era da internet. Felizmente para eles, cuspe e giz não estão obsoletos, porque são apenas mecanismos de expressão de uma tecnologia ainda sem par: o cérebro humano. A pesquisa indica que dar a infraestrutura básica - quadro-negro, cadeira e carteira para todo aluno, prédio protegido das intempéries do clima e com energia elétrica - melhora muito o desempenho do aluno. Mas, depois disso, as adições físicas não têm efeito. Inclusive a presença de computadores na escola, o que é deveras surpreendente. Depois do básico, o resto é por conta do professor. "
segunda-feira, 17 de janeiro de 2011
sexta-feira, 14 de janeiro de 2011
Fotografei você na minha Rolleiflex
Estou em viagem pelo Atlântico. E tudo o que vejo são máquinas fotográficas. Eu não trouxe a minha. Há muito não a uso. Percebi que, no afã de registrar nossas viagens, nós realmente não aproveitamos o que mais importa: a viagem. Em meio a esse nosso desejo louco por imortalidade, queremos congelar um pedaço do tempo e deixá-lo lá no freezer para alimentar, talvez, algum interessado das gerações procedentes.
O problema é que ficamos preocupados demais em mostrar as fotografias aos amigos, colegas e familiares. Estes, invariavelmente, olham aquelas imagens com enfado e desinteresse. Ou então com mórbida curiosidade (ela engordou? ele está solteiro? ela fez plástica! ele arrumou uma namorada com idade para ser sua filha!).
Quem teve de enfrentar um vultoso álbum de fotografias de um casal de amigos com imagens do último passeio feito à Europa ou à Disneyworld ou à Ubatuba sabe muito bem do que estou falando. Há também a possibilidade de, por meio das fotos, bisbilhotar nossas vidas através das redes sociais, como forma de saciar o interesse constante pela vida alheia.
Porém, por que publicamos, na rede, tantas imagens pessoais?
Acredito que o fazemos porque ficamos preocupados demais em mostrar o quanto somos (ou estamos) felizes, viajados e afortunados. Ficamos preocupamos em mostrar como estamos bronzeados, bem vestidos, bem alimentados. Viajamos não para sentir, mas para mostrar. “Vaidade das vaidades...”
Me parece que, por traz de todos aqueles sorrisos e aquelas poses, há tristeza, solidão, vazio. Há um desejo por carinho, por reconhecimento, por admiração. Há uma vontade de ser querido, idolatrado, invejado.
Na verdade, aquelas imagens são registros da nossa miséria. Uma miséria risível, no entanto. A tal "comédia humana".
Prefiro minhas memórias dos lugares que vi, das comidas que provei, das pessoas com quem me deparei a copiá-las em papel. É claro que momentos importantes para nós devem ficar registrados. Um abraço fraternal, um filho recém-nascido, um beijo apaixonado, um pôr do sol melancólico. Esses momentos, porém, são relativamente raros. Não resultariam naqueles milhares de fotos que comumente tiramos. Quem, hoje, traz 10 ou 12 fotos de suas viagens? Ou será que a pessoa passou por 30 ou 100 eventos marcantes? Isso é que é ser afortunado...
terça-feira, 4 de janeiro de 2011
Tentativa e erro
ALUNOS AMEAÇAM face a face professores em sala de aula. Ameaçam por quê? - perguntar-se-ia há 50 anos.
Nos meados do século passado, enfrentar um professor era dificilmente concebível. A hierarquia era uma regra que se impunha por si só.
O respeito mútuo - pois o professor também respeitava o aluno - acompanhava a tradição.
Existiam piadas sobre o rato ou o sapo que Juquinha punha no caminho da professora, para assustá-la. Mas, no corpo a corpo, isso não acontecia; nem nos sonhos mais ousados.
Ouvi contar que alunos, escondidos, esvaziavam o pneu do carro de um professor, jogavam água ou tinta em diário de classe.
Em escolas religiosas, esse tipo de manifestação rebelde inexistia ou, pelo menos, era bem mais encoberto.
Queixar-se de professor era comum, mas pelas costas. Disfarçar e dissimular os conflitos e as simpatias era algo comum.
Não estou aqui para defender esses recursos usados pelas gerações passadas. Mas o seu uso contribuía para que fosse exercitada a capacidade de tolerar frustrações e desconfortos, sem levá-los às últimas consequências.
Toda escola tinha uma professora que era a mais amada e aquelas que eram o pesadelo de todos. "Cair com dona Iolanda? Que horror!" Mas dona Iolanda existia e cabia a uns tantos alunos aguentar algum ano com ela.
(Falo, como vocês estão vendo, de um tempo em que os mestres acompanhavam muitas gerações, professores ficavam numa mesma escola por décadas.)
É difícil imaginar um mestre que possa exercer sua competência pedagógica sem autoridade para corrigir erros. Comportamento tem que ser corrigido, assim como caligrafia, apresentação de trabalhos e conteúdos.
Numa época como a nossa, em que ter uma falta ou falha apontada é visto como humilhação, e a repetição e a imitação são um martírio, como ensinar e como aprender?
Impor cânones é visto como autoritarismo. Exigir boa apresentação e cobrar demonstração do que foi aprendido é visto como forma leve de perseguição. A imposição de tarefas não criativas, não inventivas, é tediosa e deveria poder ser evitada.
Assim não se ensina e nem se aprende. Tentativa e erro, repetição, verificação, correção são o caminho para a assimilação.
Para que eu me aproprie de um novo saber, é preciso verificar se o conteúdo (dois e dois são quatro) é correto.
Se isso já foi aprendido, meu saber pode ser colocado à prova, apresentado de forma oral ou por escrito, para verificação.
Professor com medo do aluno, como qualquer ser humano, vai evitar esse desconforto. Vai observar pouco, vai verificar o estritamente necessário, vai fugir do eventual confronto.
Assim não se adquire método de trabalho, não se aprende ordem e conteúdo.
Não se nasce sabendo. Comportamentos se treinam. Num ambiente de medo, o treinamento vira uma série de falhas. Onde domina o medo do erro, onde se evita a falha em vez de corrigi-la, onde se evita o confronto, se aprende pouco.
ANNA VERONICA MAUTNER
Folha de S. Paulo, 4 jan. 2010.
domingo, 2 de janeiro de 2011
Nomenclatura ou uso?
A UNESP ACABA DE realizar a primeira fase de seu vestibular de 2011. Aplicada no último domingo, a prova de conhecimentos gerais apresentou muitas questões interessantes, que de fato exigem do candidato conhecimentos gerais. Afinal, já está mais do que na hora de desembrutecer o nosso ensino e os nossos alunos, muitas vezes "treinados" apenas para decorar meia dúzia de bobagens, com total desprezo pela efetiva capacidade de leitura e, sobretudo, da percepção do que se lê.
Um fato, no entanto, chamou a atenção: a elaboração de questões que privilegiaram mais a nomenclatura gramatical do que o uso da língua propriamente dito, o que de certo modo entra em choque com o que se apregoa hoje em dia nos estudos linguísticos autoproclamados ultramodernos, pós-modernos, pós-advento do suprassumo da quintessência da modernidade linguística etc. Nesses estudos, costuma-se dizer que se deve desprezar a nomenclatura gramatical e, consequentemente, privilegiar o conhecimento do efetivo uso linguístico.
O leitor habitual deste espaço sabe que fico no meio-termo: nem supervalorizo a nomenclatura, nem a desprezo; quando a emprego, tento explicá-la, traduzi-la. Como consultar um dicionário sem saber o que é um substantivo, um adjetivo, uma preposição? Como saber pontuação sem um mínimo de noção de sintaxe? Como ler um texto clássico sem um mínimo de noção de certos processos da tradição gramatical? Como entender Machado quando o grande escritor diz "Esqueceu-me apresentar-lhe minha mulher" sem um mínimo de noção da regência "clássica" de certos verbos?
O mais interessante de tudo isso é que boa parte de certas teorias sai justamente das universidades cujos vestibulares cobram o oposto do que se prega em seus cursos de letras... O que dizer aos alunos? O que fazer no ensino da língua no ciclo fundamental e no médio? Não teremos passado da hora de falar seriamente sobre isso, sem devaneios ou posturas esquizofrênicas?
Posto isso, vamos a um exemplo do que fez a Unesp domingo. Com base num excerto de "Vidas Secas", de Graciliano Ramos, formulou-se esta questão: "No fragmento apresentado, as formas verbais mais frequentes se enquadram em dois tempos do modo indicativo. Marque a alternativa que indica, pela ordem, o tempo verbal predominante no segundo parágrafo e o que predomina no quinto parágrafo".
No segundo parágrafo do excerto escolhido, o tempo predominante é o pretérito imperfeito do indicativo (recorria, cedia, resmungava, rezingava, engasgava-se, engolia, receava, rendia-se, aceitava etc.); no quinto, é o pretérito perfeito (ajustou, arrependeu-se, deixou, foi, mandou, sentou-se, concentrou-se, distribuiu, realizou, voltou etc.). Até aí, tudo bem, mas... O que significa o predomínio desses tempos em cada uma das passagens?
O mais interessante é que a Fuvest já fez questão "semelhante", a partir da mesma obra (e, salvo engano, de uma parte do mesmo excerto). E no que a questão da Fuvest diferia da feita pela Unesp? Justamente na abordagem. Enquanto esta se limitou a cobrar o conhecimento nomenclatural, aquela quis saber o que o predomínio de certo tempo verbal significa na narrativa.
O imperfeito designa fatos passados corriqueiros, habituais; o perfeito se refere a fatos não duradouros, situados num ponto específico do passado, em geral marcado por expressões temporais precisas ("daquela vez", "no dia seguinte"). Numa narrativa, isso faz toda a diferença. Uma coisa é dizer que a criança passava fome; outra coisa é dizer que ela passou fome. É isso.
(NETO, Pasquale Cipro. Nomenclatura ou uso. Folha de S. Paulo, 18 nov. 2010, p. C2.)
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O ensino da norma culta da língua tem sido muito criticado nos últimos anos. Como disse o professor Pasquale, somos orientados para desprezar "a nomenclatura gramatical" e "privilegiar o conhecimento do efetivo uso linguístico". Tal atitude, sob a minha ótica, tem feito com que formemos alunos totalmente depreparados para utilizar a linguagem em situações formais e incapazes de interpretar um texto escrito. Afinal, noções como as de sujeito, objeto direto, complemento nominal - para ficarmos apenas na Sintaxe - são fundamentais para compreendermos como as ideias foram articuladas para produzir sentido.
Hoje vemos instituições como Fisk e CCAA, famosas pelos seus cursos de inglês, oferecendo, nos grandes centros, cursos de língua portuguesa para empresários. Vemos universidades instituindo aulas de português instrumental para todas as áreas de graduação. Vemos pessoas perdendo oportunidades de emprego devido ao desempenho pífio no ler, escrever e interpretar.
Recentemente, durante minha qualificação de mestrado, na Universidade de São Paulo, ouvi de um dos futuros integrantes da minha banca que um texto bem escrito tem se tornado raridade nas dissertações da instituição (estamos falando, note-se bem, da mais renomada universidade brasileira!). Quando surge um bom exemplo de escrita, o autor é extremamente valorizado, elogiado e incentivado. E isso, cabe lembrar, no curso de Letras, em que supõe-se o domínio do idioma por parte do aluno!
Hoje vemos instituições como Fisk e CCAA, famosas pelos seus cursos de inglês, oferecendo, nos grandes centros, cursos de língua portuguesa para empresários. Vemos universidades instituindo aulas de português instrumental para todas as áreas de graduação. Vemos pessoas perdendo oportunidades de emprego devido ao desempenho pífio no ler, escrever e interpretar.
Recentemente, durante minha qualificação de mestrado, na Universidade de São Paulo, ouvi de um dos futuros integrantes da minha banca que um texto bem escrito tem se tornado raridade nas dissertações da instituição (estamos falando, note-se bem, da mais renomada universidade brasileira!). Quando surge um bom exemplo de escrita, o autor é extremamente valorizado, elogiado e incentivado. E isso, cabe lembrar, no curso de Letras, em que supõe-se o domínio do idioma por parte do aluno!
Além do Bem e do Mal
Há pouco, recebi, por e-mail, a seguinte narrativa:
Alemanha - Início do século XX(Esta é uma história real)
Durante uma conferência com vários universitários, um professor da Universidade de Berlim desafiou seus alunos com esta pergunta:
Um aluno respondeu com grande certeza:
- Sim, Ele criou!
- Deus criou tudo?
Perguntou novamente o professor.
- Sim, senhor - respondeu o jovem.
O professor indagou:
- Se Deus criou tudo, então Deus fez o mal? Pois o mal existe, e, partindo do preceito de que nossas obras são um reflexo de nós mesmos, então Deus é mau?
O jovem ficou calado diante de tal resposta e o professor, feliz, se regozijava de ter provado mais uma vez que a fé era uma perda de tempo.
Outro estudante levantou a mão e disse:
- Posso fazer uma pergunta, professor?
- Lógico - foi a resposta do professor.
O jovem ficou de pé e perguntou:
- Professor, o frio existe?
- Que pergunta é essa? Lógico que existe, ou por acaso você nunca sentiu frio?
Com uma certa imponência o rapaz respondeu:
- De fato, senhor, o frio não existe. Segundo as leis da Física, o que consideramos frio, na realidade é a ausência de calor. Todo corpo ou objeto é suscetível de estudo quando possui ou transmite energia, o calor é o que faz com que este corpo tenha ou transmita energia. O zero absoluto é a ausência total e absoluta de calor, todos os corpos ficam inertes, incapazes de reagir, mas o frio não existe. Nós criamos essa definição para descrever como nos sentimos se não temos calor.
- E existe a escuridão? - Continuou o estudante.
O professor respondeu temendo a continuação do estudante:- Existe!
O estudante respondeu:
- Novamente comete um erro, senhor, a escuridão também não existe. A escuridão na realidade é a ausência de luz. A luz pode-se estudar, a escuridão não! Até existe o prisma de Nichols para decompor a luz branca nas várias cores de que está composta, com suas diferentes longitudes de ondas. A escuridão, não!
Continuou:
- Um simples raio de luz atravessa as trevas e ilumina a superfície onde termina o raio de luz. Como pode saber quão escuro está um espaço determinado? Com base na quantidade de luz presente nesse espaço, não é assim?! Escuridão é uma definição que o homem desenvolveu para descrever o que acontece quando não há luz presente.
Finalmente, o jovem perguntou ao professor:
-Senhor, o mal existe?
Certo de que para esta questão o aluno não teria explicação, professor respondeu:
-Claro que sim! Lógico que existe. Como disse desde o começo, vemos estupros, crimes e violência no mundo todo, essas coisas são do mal!
Com um sorriso no rosto o estudante respondeu:
-O mal não existe, senhor, pelo menos não existe por si mesmo. O mal é simplesmente a ausência do bem, é o mesmo dos casos anteriores, o mal é uma definição que o homem criou para descrever a ausência de Deus. Deus não criou o mal. Não é como a fé ou como o amor, que existem como existem o calor e a luz. O mal é o resultado da humanidade não ter Deus presente em seus corações. É como acontece com o frio quando não há calor, ou a escuridão quando não há luz.
Por volta dos anos 1900, este jovem foi aplaudido de pé, e o professor apenas balançou a cabeça, permanecendo calado… Imediatamente o diretor dirigiu-se àquele jovem e perguntou qual era seu nome.E ele respondeu:
- ALBERT EINSTEIN, senhor!"
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Normalmente, não me oponho a parábolas. E até gosto de muitas delas. Não suporto, porém, quando são usadas para transmitir ideias que se organizam em torno de uma série de falácias. Muitos desses textos passam a impressão de transmitir algo valioso, pois quase sempre acabamos por concordar com as noções que passam. É o caso do exemplo acima, que, ardilosamente, manipula o leitor.
Em primeiro lugar, a ideia central baseia-se num falso "argumento de autoridade". Ao usar o nome do renomado físico Albert Einstein, a história (e as ideias nela contidas) adquire credibilidade e impõe respeito. No entanto, é impossível que o fato tenha acontecido com o cientista. Impossível porque Einsten concluiu a graduação em Física em 1900. E na Suíça, não em Berlim!
O argumento de autoridade é normalmente usado quando citamos uma pessoa de renomada sabedoria e especialista na área de discussão que possui o mesmo ponto de vista que nós. São óbvias as implicações argumentativas no sentido de se reforçar uma tese e de se convencer um interlocutor. No entanto, como vimos, o argumento é inválido, pois não factual. Por isso é falacioso.
Quer um exemplo de argumento de autoridade? Tenho um que, à luz da discussão religiosa, tem de ser aceita pelos crentes, pois parte da Bíblia, vista como a "palavra de Deus". Por meio dela, é possível criarmos um contra-argumento para a premissa de que Ele não criou o Mal: “Eu formo a luz, e crio as trevas, eu faço a paz, e crio o mal; eu, o Senhor, faço todas essas coisas”(Is 45:7).
Além disso, é longa a discussão sobre a crença de Einstein em Deus. Ao menos no Deus pertencente à tradição judaico-cristã. Foi divulgada, recentemente, uma carta escrita, em 1954, pelo pai da Teoria da Relatividade com o seguinte trecho: “A palavra Deus para mim é nada mais que a expressão e produto da fraqueza humana, a Bíblia é uma coleção de lendas honradas, mas ainda assim primitivas, que são bastante infantis” . É, no entanto, reconheço, um assunto polêmico e não pretendo me aprofundar nele, porque isso não contempla, propriamente, o mérito da questão.
Outro problema do texto é de base conceitual. O autor anônimo, astutamente, mistura definições conceituais da Física, como as de "frio" e "luz", com algo do qual essa ciência não se ocupa: as definições abstratas de Bem e de Mal. Valores estes que são imateriais, subjetivos e, muitas vezes, relativos. Qualquer aluno de Ensino Médio sabe que a Física é a ciência que estuda a natureza e seus fenômenos em seus aspectos mais gerais. Ao dizer que as ideias de frio e de escuridão são idênticas às de Bem e Mal corresponde ao que os retóricos chamam de "analogia imprópria". Mais uma falácia.
Discutir a natureza do Bem e do Mal é um tema mais filosófico que científico. Posso usar um raciocínio lógico para tentar mostrar que o Bem transcende Deus. O filósofo Julian Baggini, ao discutir a possibilidade de moralidade sem Deus, em O porco filósofo, diz que, em geral, sabemos diferenciar o que é bom do que é ruim. Justamente por sabermos o que é bom, podemos dizer que Deus é bom. Por outro lado, se Deus defendesse a tortura sem sentido, saberíamos que Ele não é bom. E isso é uma prova de que podemos entender a narureza do Bem independente de Deus.
Ademais, a oposição Bem x Mal é um fenômeno histórico, dado ter florescido no séc. III com um tal de Maniqueu (daí o termo maniqueísmo para respresentar a eterna luta entre o Bem e o Mal). Um ótimo exemplo dessa discussão está em A viagem de Théo, de Catherine Clément. Ela conta que hoje é um lugar-comum dizer que Jesus é Deus feito homem. No entanto, isso não era óbvio para os primeiros cristãos. Deus feito homem?! Qual era a parte do homem e qual era a parte de Deus em Jesus? Se a natureza humana era cheia de defeitos, o que prevaleceria em Cristo? Na tentativa de resolver esse impasse, alguns teólogos passarm a afirmar, então, que o homem é o mal e Deus é o bem.
Por fim, uma pessoa religiosa que compra a ideia de que o Mal não existe não pode, portanto, crer no Demônio. Mas, se ele é visto como a encarnação do Mal (assim como Cristo é a encarnação de Deus), como aceitar o raciocínio exposto sem se contradizer?! O Diabo seria uma invenção do homem? Então, porque Deus também não poderia sê-lo?
Ademais, a oposição Bem x Mal é um fenômeno histórico, dado ter florescido no séc. III com um tal de Maniqueu (daí o termo maniqueísmo para respresentar a eterna luta entre o Bem e o Mal). Um ótimo exemplo dessa discussão está em A viagem de Théo, de Catherine Clément. Ela conta que hoje é um lugar-comum dizer que Jesus é Deus feito homem. No entanto, isso não era óbvio para os primeiros cristãos. Deus feito homem?! Qual era a parte do homem e qual era a parte de Deus em Jesus? Se a natureza humana era cheia de defeitos, o que prevaleceria em Cristo? Na tentativa de resolver esse impasse, alguns teólogos passarm a afirmar, então, que o homem é o mal e Deus é o bem.
Por fim, uma pessoa religiosa que compra a ideia de que o Mal não existe não pode, portanto, crer no Demônio. Mas, se ele é visto como a encarnação do Mal (assim como Cristo é a encarnação de Deus), como aceitar o raciocínio exposto sem se contradizer?! O Diabo seria uma invenção do homem? Então, porque Deus também não poderia sê-lo?
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