terça-feira, 11 de outubro de 2011

A Pedagogia do Garfield

A literatura está virtualmente ausente do Enem. Para os técnicos do MEC, o gato dos quadrinhos é mais relevante culturalmente do que Graciliano Ramos ou Castro Alves. Desde a sua primeira edição, em 1998, o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), prova que avalia a qualidade das escolas secundárias e hoje substitui o vestibular em muitas universidades, reconheceu apenas duas vezes a existência de um romancista brasileiro do século XIX chamado José de Alencar. Na edição de 2009, o nome do escritor constou em uma das alternativas erradas para uma pergunta sobre regionalismo. Antes disso, em 2004, o autor de O Guarani foi lembrado em uma questão de biologia – sobre tuberculose, doença que causou sua morte, em 1877. O Enem nunca fez uma pergunta específica sobre a vida ou a obra do maior prosador do romantismo brasileiro. Jamais pediu aos alunos que interpretassem um texto seu. Outros nomes de primeira linha das letras em língua portuguesa fazem companhia a José de Alencar no clube dos esquecidos. Para ficar em poucos exemplos, temos o pregador jesuíta Antônio Vieira, o poeta inconfidente Tomás Antônio Gonzaga e Euclides da Cunha, autor do monumental Os Sertões. Os avaliados pelo Enem, em compensação, com frequência são chamados a interpretar as histórias em quadrinhos de Jim Davis, criador do gato Garfield, ou de Dik Browne, pai do viking Hagar. Um grupo de pesquisadores do Instituto de Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) fez um levantamento extensivo de todas as provas, desde o primeiro Enem – incluindo a prova que vazou e teve de ser invalidada, em 2009 –, para avaliar o peso que a literatura tem no exame. As conclusões são desalentadoras.

A começar pela valorização desmesurada das histórias em quadrinhos – o segundo gênero mais cobrado na prova, atrás apenas de poesia –, o exame mostra desproporções e equívocos de toda ordem. Os escritores anteriores ao modernismo são negligenciados: apenas cerca de 17% das questões versam sobre a literatura que precede a década de 20. Períodos inteiros foram apagados da história da literatura na versão do Enem: o barroco e o século XVII, por exemplo, não existem. Talvez ainda mais grave, não se exige nenhuma leitura prévia dos alunos, quando no antigo vestibular das melhores universidades havia uma lista de livros obrigatórios. Aparentemente, os iluminados do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep) – órgão do Ministério da Educação responsável pela elaboração da prova – consideram que um estudante pode entrar na universidade sem jamais ter lido Dom Casmurro, de Machado de Assis, ou Vidas Secas, de Graciliano Ramos.

Ao contrário do que vigorava nos vestibulares tradicionais das melhores universidades brasileiras, não há, no Enem, uma seção específica de literatura. A rigor, tampouco existe língua portuguesa: as duas disciplinas estão diluídas, com língua estrangeira e expressão corporal (sim, isso mesmo: expressão corporal), em um módulo chamado "Linguagens, códigos e suas tecnologias". Os catorze exames aplicados até hoje – a edição deste ano será realizada nos dias 22 e 23 –, sempre incluindo o fiasco da prova invalidada de 2009, somam 1233 questões objetivas, das quais 164, nas contas dos pesquisadores da UFRGS, versam sobre literatura. Não seria mau que, em uma prova destinada a avaliar todos os conteúdos do ensino médio, cerca de 13% das questões fossem dedicadas à cultura literária. Mas esse número inclui modalidades como histórias em quadrinhos e letras de canções populares, respectivamente segundo e sexto lugares entre os gêneros mais exigidos no Enem. Além disso, na maior parte dessas questões, os textos literários (ou os quadrinhos) figuram apenas como ilustração para problemas de outras disciplinas. Uma tirinha da Mafalda ou um texto de Machado de Assis podem ser usados para avaliações de gramática (se é que a palavra ainda faz sentido no meio das tais linguagens, códigos e tecnologias) ou para levar o aluno a exercitar a mais básica interpretação de texto. Textos literários também são utilizados para aferir conhecimentos de ciência, geografia ou história. Um poema de Carlos Drummond de Andrade (o autor mais citado no exame) já foi usado para perguntar sobre problemas ambientais causados pela mineração. Em um dos casos mais pitorescos, um trecho do conto O Jardim dos Caminhos que Se Bifurcam, do argentino Jorge Luis Borges (um dos apenas cinco autores de língua estrangeira já citados na prova), serviu de pretexto para uma questão sobre pontos cardeais.

No cômputo do estudo da UFRGS, apenas metade das questões que versam sobre textos literários é, de fato, sobre literatura. E apenas 20% exigem o conhecimento mais especializado que só uma aula de literatura poderia dar – por exemplo, noções de forma e estilo ou de relação entre a obra e seu contexto histórico (tópico que, no entanto, consta nas declarações de intenção do Inep). "As questões sobre literatura são superficiais e até anódinas. Desprezam o conteúdo cultural, que deveria ser o cerne de uma prova sobre literatura", diz Luís Augusto Fischer, professor do Instituto de Letras da UFRGS e coordenador da pesquisa.

Sob a falta de critério dos avaliadores do Inep, há uma difusa e demagógica pedagogia do vale-tudo. O pressuposto teórico é a valorização das variantes populares, da fala e a desvalorização da norma culta, por seu suposto caráter elitista e preconceituoso. "Essa abordagem joga por terra a ideia de que há autores em cuja obra a língua se realizou de forma superior ou duradoura", diz Fischer. Ou seja, a noção de que um autor possa ser tomado como um clássico é tida como conservadora. No igualitarismo ignorante que se instaura a partir daí, não há mais nenhuma distinção de qualidade ou relevância, e o gato Garfield vale mais do que a poesia de João Cabral de Melo Neto.

Tradicionalmente, o antigo vestibular tendia a enfatizar períodos e escolas literárias, às vezes em detrimento da leitura. Era mais importante saber que Lima Barreto era "pré-modernista" (classificação genérica e duvidosa) do que ler Triste Fim de Policarpo Quaresma. O Enem tinha a intenção de corrigir essa distorção. De fato, perguntas sobre períodos literários estão quase ausentes. O problema é que não se está perguntando nada no lugar. "A impressão que tenho é que são amadores elaborando uma prova demasiado importante para o Brasil inteiro", diz Marcelo Frizon, um dos pesquisadores do estudo da UFRGS e professor de literatura em duas escolas de ensino médio em Porto Alegre. O mais preocupante é que o Enem tem o potencial de difundir o obscurantismo. Como vem substituindo o vestibular como porta de entrada para a universidade, a prova tende não apenas a avaliar, mas também a pautar o conteúdo dado nas escolas de ensino médio. "Esses exames costumam normatizar o que é ensinado em sala de aula. Para ser um pouco radical, se a coisa continuar assim, o ensino de literatura tende a desaparecer", diz a professora Gabriela Luft, outra colaboradora da pesquisa. O Enem contribui para construir um país ainda mais iletrado.

Desprezo pelo passado

O Enem põe um peso desproporcional sobre a literatura produzida a partir do modernismo, desvalorizando a história e a tradição. Das questões a respeito de literatura no exame, apenas 17% versam sobre obras anteriores a 1920. Autores fundamentais para a história e para o desenvolvimento da língua portuguesa, como o padre Antônio Vieira, José de Alencar e Euclides da Cunha, não tiveram nenhum texto citado na prova desde o seu início, em 1998.

TEIXEIRA, Jerônimo. A pedagogia do Garfield. Veja, São Paulo, ed. 2238, n.º 41, 12 out. 2011, p. 136-137.

Pedagogia

A competência da atual pedagogia ou filosofia da educação adotada em nosso país pode ser medida todos os anos, nos exames vestibulares, entre os que fazem a prova de redação. Segundo a Unesco, estamos entre os piores países do mundo em relação ao aprendizado. Nossas crianças não conseguem entender o que leem. O economista norte-americano Robert Fishlow, da Universidade de Colúmbia, em Nova Iorque, declarou em 2007 que o Brasil é o único país no mundo em que 50% dos que completam cinco anos de educação básica são classificados como analfabetos. Segundo declaração do próprio presidente da República, por ocasião da abertura da XVIII Bienal do Livro, 52% dos alunos das escolas públicas não conseguem interpretar um texto lido. Culpa de quem? Das nossas crianças? Não, absolutamente. Culpa dos nossos "estudiosos", da nossa pedagogia incompetente, falida (embora haja pedagogos que a considerem uma maravilha). Veja, agora, caro leitor, o que escreve um articulista da Folha de S. Paulo, em 24/5/2005: Está crescendo o número de queixas contra médicos nos Conselhos Regionais de Medicina. Há unanimidade na explicação de pelo menos uma das causas desse crescimento: a formação ruim dos estudantes. Ou seja, gente despreparada está sendo liberada, sem maiores critérios, para cuidar da saúde das pessoas. Ou seja: a sociedade está experimentando só agora os profissionais que se formaram fazendo cruzinhas nas provas, critério esse criado pelos nossos maravilhosos pedagogos modernos. Por que os alunos, principalmente das nossas escolas públicas, depois de onze anos assistindo a aulas de Português, saem de nossas escolas sem saber português? A maioria sai sem saber distinguir sujeito de objeto direto, daí porque dizem e escrevem: "Acabou" as aulas, "começou" as férias.
A escola antiga não abortava analfabetos funcionais. A escola antiga não produzia "gênios" com suas monumentais patadas nos exames vestibulares. A escola antiga ensinava a escrever, ensinava a pensa, ensinava a entender melhor os textos lidos, ensinava a ter mais respeito pela língua e também pelo professor. A escola antiga tinha professores que recebiam um salário digno e eram respeitados pelos alunos. Aqui, antiga bem poderia ser substituída por eficiente. E a escola de hoje? A escola de hoje é um verdadeiro desastre pedagógico e disciplinar. Professores, hoje, apanham de alunos nas escolas! Mas a escola de hoje tem defensores instransigentes. É natural: foram abortados por ela! A gente entende. Aliás, a gente sempre entende. Mas nunca perdoa.
O Brasil possui cerca de 80 milhões de pessoas, entre 16 e 64 anos, que são analfabetos numéricos, ou seja, sabem o que é um número, mas não conseguem desenvolver operações simples de soma ou subtração. Além disso, 42 milhões nessa mesma faixa etária estão em estado crítico de leitura, ou seja, conseguem ler uma palavra ou outra, mas não entendem o conteúdo do texto. De maneira geral, 86 milhões de brasileiros são analfbetos funcionais, pois não dominam habilidades nem de português nem de matemática. Os dados foram apresentados por Suely Druck, presidente da Sociedade Brasileira de Matemática (SBM), durante a conferência Produção de Analfabetos no Brasil, em julho de 2005, na 57ª Reunião Anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), em Fortaleza. Certos professores se empenham em ensinar teorias de Barthes, Lacan e Chomsky, e nossos alunos não conseguem distinguir uma preposição de uma conjunção nem muito menos um sujeito de um predicado. Alguns deles tem o desplante de afirmar aos quatro cantos do mundo que falar e escrever de acordo com a gramática normativa é uma aspiração reacionária, própria de gente conservadora, o que, já de per si, define-os como enganadores, pseudoprofessores. Daí por que a carência educacional no Brasil é tão avassaladora!

SACCONI, Luiz Antonio

sábado, 8 de outubro de 2011

O sentido faz falta?

A gente procura um sentido para a vida somente quando o cotidiano perde sua graça e seu encanto

É uma queixa frequente: o mundo e a vida fazem pouco sentido - muito menos sentido do que antigamente, completam os saudosistas. Nas famílias, às vezes, essa queixa produz uma espécie de pingue-pongue. Os pais acham que os filhos adolescentes vivem por inércia, sem rumo e projeto: "Eles não estão a fim de nada que preste, não têm uma causa, uma visão de futuro".
Os filhos, confrontados com essa preocupação dos pais, declaram que, se precisassem mesmo de um sentido para viver, certamente não é com os pais que eles o aprenderiam: "Mas qual sentido gostariam que eu escolhesse para minha vida, se a vida deles não tem nenhum?". Nesse diálogo, o sentido parece ser sempre o que falta na vida dos outros que criticamos.
Também existem indivíduos (adolescentes e adultos) que se queixam da falta de sentido em sua própria vida: "Viver para quê? Todo o mundo vai morrer de qualquer jeito; que sentido tem?".
Geralmente, ao procurar responder a essas constatações desconsoladas, amigos, parentes e terapeutas agem como os pais que mencionei antes: querem injetar uma causa, uma visão de futuro na vida de quem lhes parece ter perdido o rumo "necessário" para viver.
Agora, eu não estou convencido de que, para viver, seja necessário que a vida tenha um sentido. Quando alguém se queixa de que sua vida é sem sentido, não tento interessá-lo em grandes razões para viver. Prefiro perguntar (para ele e para mim mesmo) de onde surge tamanha necessidade de um sentido. É curioso que, para alguns, a existência precise de uma justificação, de uma razão, de uma causa, de uma visão de futuro.
Em regra, essa necessidade de justificar a vida se impõe quando a própria vida não se basta mais. Ou seja, é quando os gestos cotidianos perdem sua graça que surge a obrigação de fundamentar a vida por outra coisa do que ela mesma.
Nota clínica: a depressão não é o mal de quem teria perdido (ou nunca achado) uma grande razão para viver. Depressão é ter perdido (ou nunca encontrado) o encanto do cotidiano. Por consequência, tentar "curar" a depressão de um adolescente propondo-lhe militância política ou fé religiosa é nocivo: se a gente conseguir capturá-lo num grande projeto, esse mesmo projeto o afastará ainda mais da trivialidade do dia a dia, cujo encanto ele perdeu.
Resumindo, quando alguém se queixa de que a vida não tem sentido, o problema não é ajudá-lo a encontrar o tal sentido da vida, mas ajudá-lo a descobrir que a vida se justifica por si só, que ela pode ser seu próprio sentido.
A cultura moderna poderia ser dividida em dois grandes blocos (que não coincidem com as tradicionais divisões de esquerda vs. direita etc.): os que pensam que o sentido da vida não está na própria experiência de viver (mas na espera de um além, num projeto histórico etc.), e os que pensam que a experiência de viver, por mais transitória que seja, é todo o sentido do qual precisamos (nota: a psicanálise, inesperadamente, está nesse segundo grupo, por constatar que a gente sofre mais frequente e gravemente pelo excesso do que pela falta de um sentido).
Alguém dirá que, com o declínio das utopias políticas e algum avanço (talvez) do pensamento laico, o sentido da vida está em baixa. Em suma, eu estaria chutando um cachorro morto.
Não concordo: talvez a própria crise das utopias e de algumas religiões instituídas esteja reavivando uma espiritualidade que tenta sacralizar o mundo, prometendo, no mínimo, sentidos ocultos.
O esoterismo "new age" nos garante que a vida tem um sentido misterioso, que a gente nem precisa saber qual é. Melhor assim, não é? Acabo de ler um breve (e delicioso) ensaio do filósofo italiano Giorgio Agamben, "La Ragazza Indicibile" (a moça indizível, Electa, 2010). Agambem (retomando um ensaio de Jung e Kerényi, de 1941, sobre Koré, a moça sagrada - Perséfone na mitologia clássica) mostra que os mistérios de Eleusis (que são os grandes ascendentes do esoterismo ocidental) de fato não revelavam nenhum grande sentido escondido das coisas e da vida -a não ser talvez o sentido de uma risada diante do pouco sentido do mundo.
Ele conclui com a ideia de que podemos e talvez devamos "viver a vida como uma iniciação. Mas uma iniciação ao quê? Não a uma doutrina, mas à própria vida e à sua ausência de mistério".

CALLIGARIS, Contardo. Folha de S. Paulo, 6 out. 2011.