sexta-feira, 29 de abril de 2011

O amor e o ódio


"As paixões do coração humano, como as divide e numera Aristóteles, são onze; mas, todas elas se reduzem a duas capitais, amor e ódio. E estes dois afetos cegos são os dois pólos em que se resolve o mundo, por isso tão mal governado.
Eles são os que pesam os merecimentos; eles os que qualificam as ações; eles os que avaliam as prendas; eles os que repartem as fortunas.
Eles são os que enfeitam ou decompõem; eles os que fazem ou aniquilam; eles os que pintam ou despintam os objetos, dando e tirando a seu arbítrio, a cor, a medida e ainda o mesmo ser e substância, sem outra distinção ou juízo que aborrecer ou amar.
Se os olhos veem com amor, o corvo é branco; se, com ódio, o cisne é negro. Se, com amor, o demônio é formoso; se, com ódio, o anjo é feio. Se, com amor, o pigmeu é gigante; se, com ódio, o gigante é pigmeu. Se, com amor, o que não é tem de ser; se, com ódio, o que tem de ser e é bem que seja, não é nem será jamais."

Pe. Antônio Vieira

quinta-feira, 21 de abril de 2011

Minha pátria é a Língua Portuguesa

Não chóro por nada que a vida traga ou leve. Há porém paginas de prosa me teem feito chorar. Lembro-me, como do que estou vendo, da noute em que, ainda creança, li pela primeira vez numa selecta, o passo celebre de Vieira sobre o Rei Salomão, "Fabricou Salomão um palacio..." E fui lendo, até ao fim, tremulo, confuso; depois rompi em lagrimas felizes, como nenhuma felicidade real me fará chorar, como nenhuma tristeza da vida me fará imitar. Aquelle movimento hieratico da nossa clara lingua majestosa, aquelle exprimir das idéas nas palavras inevitaveis, correr de agua porque ha declive, aquelle assombro vocalico em que os sons são cores ideaes — tudo isso me toldou de instincto como uma grande emoção politica. E, disse, chorei; hoje, relembrando, ainda chóro. Não é — não — a saudade da infancia, de que não tenho saudades: é a saudade da emoção d´aquelle momento, a magua de não poder já ler pela primeira vez aquella grande certeza symphonica.
Não tenho sentimento nenhum politico ou social. Tenho, porém, num sentido, um alto sentimento patriotico. Minha patria é a lingua portuguesa. Nada me pesaria que invadissem ou tomassem Portugal, desde que não me incommodassem pessoalmente, Mas odeio, com odio verdadeiro, com o unico odio que sinto, não quem escreve mal portuguez, não quem não sabe syntaxe, não quem escreve em orthographia simplificada, mas a pagina mal escripta, como pessoa própria, a syntaxe errada, como gente em que se bata, a orthographia sem ípsilon, como escarro directo que me enoja independentemente de quem o cuspisse.
Sim, porque a orthographia também é gente. A palavra é completa vista e ouvida. E a gala da transliteração greco-romana veste-m´a do seu vero manto régio, pelo qual é senhora e rainha.

* Texto publicado originariamente em "Descobrimento", revista de Cultura n.º 3, 1931, pp. 409-410, transcrito do "Livro do Desassossego", por Bernardo Soares (heterônimo de Fernando Pessoa), numa recolha de Maria Aliete Galhoz e Teresa Sobral Cunha; ed. de Jacinto do Prado Coelho, Lisboa, Ática, 1982 vol. I, p. 16-17. Respeitou-se a ortografia da época de Fernando Pessoa. 

Semana Santa