quinta-feira, 15 de outubro de 2009

Ao desconcerto do mundo


MACANUDO. Folha de S. Paulo, 15 out. 2009.

Ótimo pedido: "um cd do Sinatra"...
Mas melhor seria pedir ao Papai Noel um cd do Sinatra para consertar/concertar o mundo!
Sim, porque eu acredito que, ao ouvirmos um cd do Sinatra, o mundo fica melhor.

terça-feira, 13 de outubro de 2009

Ao mestre, com desprezo

RUY CASTRO

Em março, um professor de história, filho de um amigo meu, foi desacatado em sala por três alunos num colégio em Moema, zona sul de São Paulo. O mestre deu queixa na diretoria. Esta apoiou os desordeiros. O professor pediu demissão e foi para casa, onde teve uma crise nervosa. Passa agora por uma síndrome do pânico. A orientadora da escola, única pessoa a apoiá-lo, foi demitida.
Este é um colégio de classe média, em que os alunos se sentem com privilégios pelo fato de pagar altas mensalidades. Mas, nas escolas públicas, a realidade é ainda pior. Mais de cem casos de alunos que desrespeitam professores são relatados diariamente à Secretaria Estadual da Educação de São Paulo por um sistema de registro de ocorrências do gênero. A maioria dos casos vem da região metropolitana de São Paulo.
São alunos que desprezam a liturgia da escola, saem da sala sem autorização do professor e o ofendem verbalmente quando ele ousa protestar contra a zorra. Usam toda espécie de aparelho eletrônico durante a aula, de celular a iPod, e, certos da impunidade, destroem equipamentos ou instalações da escola na frente dos colegas e funcionários. Uma das principais diversões é pôr fogo nas lixeiras.
É o terror. As escolas cogitam instalar câmeras em suas dependências, para ter provas documentais contra os vândalos e padronizar as informações, o que permitirá estabelecer estratégias de combate à violência. Mas nada impede que os cafajestes - difícil chamá-los de alunos- roubem também as câmeras e riam das estratégias.
Os jovens valentões que agrediram o professor em Moema (aliás, com o apoio da classe) foram expulsos do colégio meses depois. Mas não por indisciplina. Deixaram-se apanhar traficando drogas dentro das instalações.
Folha de S. Paulo, São Paulo, 13 out. 2009, p. A2.

O Bote Salva-Vidas

Organizando meus velhos arquivos, me deparei com a transcrição de um capítulo do ótimo O porco filósofo. Devo tê-lo usado em uma das minhas aulas de argumentação. Recomendo a leitura!


"— Certo – disse Roger, autonomeado capitão do bote salva-vidas – Há doze de nós neste barco, o que é ótimo, porque a capacidade dele é de até vinte pessoas. E temos bastantes provisões para durar até que alguém chegue para nos resgatar, o que não vai demorar mais que 24 horas. Então, eu acho que isso significa que podemos nos permitir com segurança um biscoito de chocolate extra e uma dose de rum para cada um. Alguma objeção?
— Por mais que eu, sem dúvida, desfrutasse do biscoito extra – disse o Sr. Mates –, nossa prioridade agora não deveria ser levar o barco até ali e pegar a pobre mulher que está se afogando e há meia hora está gritando para nós?
Algumas pessoas baixaram os olhos para o fundo do barco, envergonhadas, enquanto outras sacudiam a cabeça sem acreditar.
— Achei que tínhamos concordado – disse Roger – Ela não está se afogando por nossa culpa, e, se a pegarmos, não podemos desfrutar de nossas rações extras. Porque deveríamos perturbar esse esquema aconchegante e confortável que temos aqui? – Grunhidos de aprovação foram ouvidos.
— Por que nós podemos salvá-la e, se não salvarmos, ela vai morrer. Isso não é razão suficiente?
— A vida é mesmo uma merda – respondeu Roger – Se ela morrer, não vai ser porque nós a matamos. Alguém aceita um digestivo?
***
É muito fácil traduzir a metáfora do bote salva-vidas. O barco é o Ocidente abastado, e a mulher que está afogando, as pessoas que estão morrendo de desnutrição e doenças evitáveis no mundo em desenvolvimento. E a atitude do mundo desenvolvido é, sob esse ponto de vista, tão insensível quanto a de Roger. Temos comida e remédios o bastante para todos, mas preferimos desfrutar do luxo e deixar os outros morrer do que desistir de nosso “biscoito extra” e salvá-los. Se as pessoas no bote salva-vidas são grosseiramente imorais, então também somos.
A imoralidade é ainda mais impressionante em outra versão da analogia, na qual o bote salva-vidas representa a totalidade do planeta Terra e algumas pessoas se recusam a distribuir comida aos outros que já estão a bordo. Se para eles parece cruel não fazer um esforço para botar outra pessoa no barco, parece ainda mais cruel negar provisões àqueles que já foram tirados da água.
A imagem é forte e a mensagem, chocante. Mas a analogia resiste? Alguns podem dizer que a situação do bote salva-vidas despreza a importância dos direitos de propriedade. Os bens são postos em um bote salva-vidas para aqueles que precisarem dele, e ninguém tem mais direitos a eles que outra pessoa. Então partidos do pressuposto de que qualquer coisa além da distribuição igualitária de acordo com as necessidades é injusta até que se prove o contrário.
Entretanto, no mundo real, a comida e outros produtos não estão simplesmente ali parados à espera de serem distribuídos. A riqueza é criada e tem de ser ganha. Então se eu me recusar a dar meu excedente a outra pessoa, não estou me apropriando indevidamente do seu quinhão, estou apenas guardando o que é meu por direito.
Mas se a analogia for alterada para refletir esse fato, a imoralidade aparente não desaparece. Vamos imaginar que todos os alimentos e provisões do barco pertencessem aos indivíduos dentro dele. Ainda assim, uma vez no barco, e uma vez reconhecida a necessidade da mulher que está se afogando, não continuaria a ser errado dizer 'Deixe-a se afogar. Os biscoitos são meus!'? Enquanto houver excedente para abastecê-la, também, o fato de ela estar morrendo nos devia fazer abrir mão por ela da propriedade privada de nossas provisões.
As Nações Unidas estabeleceram uma meta para os países desenvolvidos darem 0,7% de seu PIB para ajuda externa. Poucos cumpriram isso. Para a maioria das pessoas, dar mesmo 1% de sua renda para ajudar os pobres teria um efeito desprezível em sua qualidade de vida. A analogia do bote salva-vidas sugere que não seríamos pessoas boas se o fizéssemos, mas que estamos terrivelmente errados em não fazê-lo."

(BAGGINI, Julian. O porco filósofo. Rio de Janeiro: Relume Dumará, p. 71-73.)

segunda-feira, 12 de outubro de 2009

O silêncio é uma virtude


Bardolatria

 Shakespeare é mestre em monólogos e solilóquios. Muitos deles são famosíssimos, como o solilóquio de Hamlet ("to be or not to be"...). Ou, então, aquele de Macbeth que já havia postado aqui no blog. Hoje, peguei-me recordando um dos meus favoritos.  Trata-se do monólogo de Otelo quando este tenta convencer o doge de Veneza de que não havia seduzido Desdêmona por meio de feitiçaria (o que era alegado pelo pai dela, inconformado com a união dos dois).
Me lembro de ter feito um curso, na USP, intitulado "O teatro de Shakespeare" e ministrado por um professor legitimamente inglês: John Milton. Ele próprio uma figura que parecia ter saído de uma das comédias do bardo. Barba por fazer. Cabelo desgrenhado. Uma barriga em constante batalha com os botões da camisa. E o sotaque característico, é claro. Uma espécie de Falstaff climatizado aos trópicos (digitem "Falstaff" no Google Imagem e verão que ele é a cara do John Milton!).
De qualquer forma, seu trabalho de conclusão de curso consistia em encenar um fragmento de Shakespeare a gosto do aluno. E lá fui eu com este monólogo de Otelo (em português, é claro!):

OTHELLO
Her father loved me; oft invited me;
Still question'd me the story of my life,
From year to year, the battles, sieges, fortunes,
That I have passed.
I ran it through, even from my boyish days,
To the very moment that he bade me tell it;
Wherein I spake of most disastrous chances,
Of moving accidents by flood and field
Of hair-breadth scapes i' the imminent deadly breach,
Of being taken by the insolent foe
And sold to slavery, of my redemption thence
And portance in my travels' history:
Wherein of antres vast and deserts idle,
Rough quarries, rocks and hills whose heads touch heaven
It was my hint to speak, — such was the process;
And of the Cannibals that each other eat,
The Anthropophagi and men whose heads
Do grow beneath their shoulders. This to hear
Would Desdemona seriously incline:
But still the house-affairs would draw her thence:
Which ever as she could with haste dispatch,
She'ld come again, and with a greedy ear
Devour up my discourse: which I observing,
Took once a pliant hour, and found good means
To draw from her a prayer of earnest heart
That I would all my pilgrimage dilate,
Whereof by parcels she had something heard,
But not intentively: I did consent,
And often did beguile her of her tears,
When I did speak of some distressful stroke
That my youth suffer'd. My story being done,
She gave me for my pains a world of sighs:
She swore, in faith, twas strange, 'twas passing strange,
Twas pitiful, 'twas wondrous pitiful:
She wish'd she had not heard it, yet she wish'd
That heaven had made her such a man: she thank'd me,
And bade me, if I had a friend that loved her,
I should but teach him how to tell my story.
And that would woo her. Upon this hint I spake:
She loved me for the dangers I had pass'd,
And I loved her that she did pity them.
This only is the witchcraft I have used...