sexta-feira, 29 de fevereiro de 2008

Sexta-feira


Sexta-feira à noite
Marina Colasanti

Sexta-feira à noite
os homens acariciam o clitóris das esposas
com dedos molhados de saliva.
O mesmo gesto com que todos os dias
contam dinheiro papéis documentos
e folheiam nas revistas
a vida dos seus ídolos.
Sexta-feira à noite
os homens penetram suas esposas
com tédio e pênis.
O mesmo tédio com que todos os dias
enfiam o carro na garagem
o dedo no nariz
e metem a mão no bolso
para coçar o saco.
Sexta-feira à noite

quinta-feira, 28 de fevereiro de 2008

Partindo-se

Quantas vezes partir
para ser inteiro?
Quantas vezes ser inteiro
para partir? (...)
Parti tantas vezes
outras me parti nalguma parte.

Hamilton Faria. "Arte"

Da série "Professor Sofre!"

terça-feira, 26 de fevereiro de 2008

Exigente...

Me descobre, disse ele, e ela o descobriu
Me admira, disse ele, e ela o admirou
Me atrai, disse ele, e ela o atraiu
Me sacia, disse ele, e ela o saciou

Me seduz, disse ele, e ela o seduziu
Me atraiçoa, disse ele, e ela o atraiçoou
Me ilude, disse ele, e ela o iludiu
Me vicia, disse ele, e ela o viciou

Me obedece, disse ele, e ela o obedeceu
Me domina, disse ele, e ela o dominou
Me entende, disse ele, e ela o entendeu
e ele tornou-se dela, e é assim que eu sou

Bráulio Tavares, "Amo escrava"

Adágio oriental



"O homem comum fala, o sábio escuta, o tolo discute."




segunda-feira, 25 de fevereiro de 2008

Às seis da tarde

Marina Colasanti

Às seis da tarde
as mulheres choravam
no banheiro.
Não choravam por isso
ou por aquilo
choravam porque o pranto subia
garganta acima
mesmo se os filhos cresciam
com boa saúde
se havia comida no fogo
e se o marido lhes dava
do bom
e do melhor
choravam porque no céu
além do basculante
o dia se punha
porque uma ânsia
uma dor
uma gastura
era só o que sobrava
dos seus sonhos.
Agora
às seis da tarde
as mulheres regressam do trabalho
o dia se põe
os filhos crescem
o fogo espera
e elas não podem
não querem
chorar na condução.

domingo, 24 de fevereiro de 2008

Pós-cavalgada

Foi uma senhora cavalgada.
Saímos de um sítio próximo ao motel San Rafael, de onde esperamos a lua cheia. Claro que acompanhados de comes e bebes! Eram 21h.
São Pedro ajudou, sim. O céu estava estrelado e a lua fez visita.
Fomos escoltados pela polícia rodoviária até o trevo de Alfenas e de lá seguimos para o espetinho do antigo bar do Cardoso, aqui no Jd. Aeroporto. Deixamos os cavalos atrelados na grama e molhamos um poucos as palavras.



Depois pegamos a estrada de terra pra Fama.
Delícia galopar na escuridão com um filete de luz atravessando as árvores e com o vento batendo na cara. Prefiro ficar na frente da tropa, em silêncio. Olhando e pensando. Pensando na vida. Como pano de fundo, uma música no mp3.
À 1h, cortamos caminho rumo à fazenda Santana. O seu Geraldo nos aguardava com uma macarronada e com um estoque de cerveja geladinha. Às 2h, já estávamos bem estabelecidos e tocando uma moda de viola. Depois disso, desmontamos novamente. Agora na cama.
No dia seguinte, almoço e moda de viola com uma dupla de Tambaú (SP), que havia tocado no meu aniversário. Posto, aqui, uma palinha.



O cavalo é, do meu ponto de vista, um dos mais belos animais que existem. E faz parte do universo sertanejo por excelência. Por isso, reproduzo um artigo publicado pelo nosso mais importante folclorista, Luiz da Câmara Cascudo, que recolheu algumas quadrinhas populares, tendo esse animal como tema:

"O sertanejo depois da mulher, ama desesperadamente o seu cavalo e as suas armas. Rodrigues de Carvalho, Cancioneiro do norte (Paraíba, 1928, p.267), recolheu um verso expressivo sobre este elemento etnográfico:

Há quatro coisas no mundo
Que alegra um cabra macho:
Dinheiro e moça bonita,
Cavalo estradeiro-baixo,
Clavinote e cartucheira.
Pra quem anda no cangaço.

No famoso desafio entre Inácio da Catingueira e Francisco Romano, o primeiro resumiu os dez desejos naturais de toda a gente (Leonardo Mota, Cantadores, Rio de Janeiro, 1921, p.175):

Há dez coisas neste mundo
Que toda gente procura:
É dinheiro e é bondade,
Água fria e formosura,
Cavalo bom e mulhé,
Requeijão com rapadura,
Morá, sem sê agregado,
Comê carne com gordura.

O cantador Joaquim Venceslau Jaqueira (op.cit., p.18) tinha apenas três predileções:

Eu andei de déo em déo
E desci de gáio em gáio
Jota a-já, queira ou não queira.
Eu não gosto é de trabaio,
Por três coisa eu sou perdido:
Muiê, cavalo e baraio!...

Uma popularíssima quadrinha registrada por Rodrigues de Carvalho, tantas vezes ouvidas por mim no sertão, confessa:

Já sou velho e tive gosto,
Morro quando Deus quiser,
Duas coisa me acompanha
Cavalo bom e mulher.

Uma sextilha conhecida e que meu pai recitava tê-la ouvido ainda menino decide entre a mulher e o cavalo:

Minha mulher e meu cavalo
Morreram no mesmo dia;
Antes morresse a mulher.
O cavalo é qu'eu queria;
Cavalo custa dinheiro,
A mulher não faltaria...

Duas variantes alagoanas ouvi-as recitadas por José Aloísio Vilela em Maceió:

A mulher e o cavalo
Morreram de madrugada
Tive pena do cavalo
Que a mulher não era nada.

A mulher e o cavalo
Morreram no mesmo dia;
Tive pena do cavalo
Que a mulher nada valia.

Não deparei exemplo português na espécie.
Valorizando o cavalo podia ser do ciclo castelhano e fatalmente haveria repercussão sul-americana. É a presença indisfarçável do árabe, apaixonado pelo seu cavalo nobilíssimo. Maomé amava no mundo, acima de tudo, as mulheres e os cavalos. Westermarch (Survances Paíennes dans la civillisation mahométane, 128), informa: 'Le plus noble de tous les animaux est le cheval. Il est d´un sang auguste, il parell à un chérif. Il est en bênediction à son maitre. Les espirits malins, fuient le lieu ou se trouve un cheval; quand il hennit il les met en fuite ou casse les têtes de quarante d´entre eux. Le respect superstitieux qui entoure le cheval dans I´Afique du Nord date d´une époque probablement fort ancienne'.
Por todo o ciclo do gado o cavalo é naturalmente o rei (Luís da Câmara Cascudo, Leges et consuetudines medievais nos costumes do Brasil) e os versos em seu louvor aparecem constantemente." ("Minha mulher e o meu cavalo". Jornal do Commercio. Recife, 08 de dezembro de 1957)

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2008

Upa, upa, cavalinho

Dia (ou seria noite?) da cavalgada noturna!
Que São Pedro seja bonzinho conosco e que a lua cheia dê o ar da graça.
Amém!
Por via das dúvidas, já equipei o bichinho:


quinta-feira, 21 de fevereiro de 2008

Anyone Else But You

Michael Cera e Ellen Page, do finalzinho do filme:

Your part time lover and a full time friend,
The monkey on the back is the latest trend,
Don't see what anyone can see,
In anyone else,
But you

Here is a church and here is a steeple,
We sure are cute for two ugly people,
Don't see what anyone can see,
In anyone else,
But you

We both have shiny happy fits of rage,
I want more fans, you want more stage,
Don't see what anyone can see,
In anyone else,
But you

I'm always tryin to keep it real,
Now i'm in love with how you feel,
I don't see what anyone can see,
In anyone else,
But you

I kiss you on the brain in the shadow of the train,
I kiss you all starry eyed,
My body swings from side to side,
I don't see what anyone can see,
In anyone else,
But you

The pebbles forgive me,
The trees forgive me,
So why can't,
You forgive me?
I don't see what anyone can see,
In anyone else,
But you

Du du du du du du dudu
Du du du du du du dudu
I don't see what anyone can see,
In anyone else,
But you.


"La poésie, c'est ce qu'on rêve, ce qu'on imagine, ce qu'on désire et ce qui arrive, souvent. La poésie est partout comme Dieu n'est nulle part. La poésie, c'est un des plus vrais, un des plus utiles surnoms de la vie."
Jacques Prévert

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2008

JUNO


O filme Juno tem sido considerado um exemplo de "cinema independente" e filme "teen". As comparações com recentes sucessos como Pequena Miss Sunshine e Superbad - É hoje são, portanto, inevitáveis. No entanto, essa pequena obra-prima do diretor Jason Reitman - o mesmo de Obrigado por fumar, filme que merece ser descoberto - é muito superior a filmes pseudo-inteligentes como Pequena Miss Sunshine e a tolices adolescentes como Superbad. Ambos incensados pela crítica. São idiotices perto da leveza, do charme e esperteza desse filminho desprentensioso estrelado por uma encantadora Ellen Page (a mesma de Menina Má.Com). E ela é um encanto mesmo. Dá vontade de levar pra casa.
Tá concorrendo a quatro Oscar. Inclusive de melhor filme e melhor atriz. Aliás, muito melhor que o chatinho Desejo e reparação, o favorito na disputa. O roteiro, escrito por uma ex-stripper, é afiadíssimo: endurece, mas não perde a ternura! A trilha sonora, impecável (mesmo pra mim que não saca muito de rock). As músicas são quase todas folks sussurrados à voz, violão e piano. A trilha também é uma viagem pelo mundo do rock e traz canções de grandes nomes, como Velvet Underground, Sonic Youth, Belle&Sebastian e Cat Power.
Delícia!




Reproduzo, aqui, uma crítica de Luiz Zanin, feita para o Caderno 2 d' O Estado de São Paulo em 8/2/2008:

Juno

Já tem muita gente chamando Juno de A Pequena Miss Sunshine da vez. A comparação faz sentido. São ambos filmes relativamente pequenos, parecem ter entrado no Oscar pelas portas do fundo, discretamente, e fazem o papel de azarões em uma competição acirrada.
Juno tem os ingredientes de autêntico outsider. É mais que um modelo de cinema independente que, nos Estados Unidos, já não é mais tão independente assim, tendo se transformado em gênero, quase uma alternativa dos estúdios para abocanhar a fatia de público que lhes escapa. Mas, essa exceção à regra de fato foi produzida com US$ 2,5 milhões, quantia modesta até para alguns filmes brasileiros.
A estranheza não pára aí. A história foi escrita por uma certa Diablo Cody, pseudônimo de Brooke Busey, que passou parte da vida se exercitando no métier de strip-teaser. Suas aventuras pessoais eram descritas em um site, que se tornou dos mais visitados nos EUA. Pelo jeito, Brooke tomou gosto pela palavra e passou a escrever roteiros. Juno é resultado dessa mudança de atividade da ex-stripper. E, bem, a julgar pelos diálogos do filme, o roteiro parece ser a sua peça forte, o que é ponto para Diablo, quer dizer, Brooke.
Mas quem dá vida a esses diálogos também tem todo o mérito e responsabilidade no bom resultado da história. Ellen Page faz a personagem-título, uma garota ágil, engraçada, de resposta pronta e idéias originais. Juno é uma metralhadora verbal ambulante e o que diz merece atenção.
Qual é a história? A garota transa com o namorado e fica grávida. Acha, com toda a razão, que não tem maturidade para criar um filho. O que fazer com ele? A solução parece insólita e passa pela escolha de um casal para adoção. O resto, é melhor deixar para o espectador descobrir.
Não que haja grandes surpresas na trama. Juno não é filme de reviravoltas mirabolantes, de ação, de personagens que promovem rupturas em suas vidas ou nas dos outros. Não. O diretor Jason Reitman (de Obrigado por Fumar) prefere retratar personagens que poderiam ser qualquer um de nós, com nossas angústias e alegrias. Mesmo o ponto central, que desencadeia toda a série de ações e reações que conduzem a história, nada tem de fora do comum - ou quer coisa mais ordinária, hoje em dia, que uma adolescente que, de uma hora para outra, aparece grávida, e de outro adolescente, ainda por cima?
Reitman trabalha nessa história em que ninguém é muito fora do normal, a não ser, talvez, na disposição de não dramatizar excessivamente as coisas. E esse é o aspecto talvez mais simpático. Nenhum dos envolvidos, a começar pela personagem principal, acha que está vivendo um dramalhão mexicano por causa dessa gravidez não planejada. Tenta-se ajeitar as coisas com um mínimo de sofrimento para os envolvidos - e isso é tudo.
De certa forma, Reitman, a partir do texto de Brooke Busey, assume essa pegada jovem e desdramatizada. Conta muito com Ellen Page para conseguir o resultado que deseja. A garota é cheia de vida, esperta, irreverente. Não deixa que os outros passem a ela um drama que não está sentindo. Toca a vida. Ri e chora quando precisa, mas sabe que a vida segue. Em termos familiares, Juno mostra que tem sorte, pois tanto o pai como a madrasta (J.K. Simmons e Allison Janey) parecem bem resolvidos.
O fato é que nos envolvemos com a história de Juno muito por causa do seu frescor. Tem a ver com o texto (provavelmente), com a forma como a atriz encarna, e encara, seu personagem, e tem a ver, também e talvez sobretudo, com a maneira como Reitman conduz a direção. Não que Juno seja 'autoral', no sentido mais antigo e estrito do termo. E talvez no sentido mais banal, que exige malabarismos técnicos para que o cara seja notado e uma pretensa assinatura reconhecida. Reitman deixa para lá essa preocupação egóica e filma de maneira simples. Discreta.
Em virtude dessa discrição deixa a história aflorar e os atores fazerem seu trabalho. Não existem desníveis no elenco. Se Ellen Page é um brilho à parte, todos os outros estão pelo menos ok. E, desse conjunto afinado, emerge uma melodia à qual não estamos mais tão acostumados - uma América de gente que toca seu cotidiano da maneira que pode e tem de se virar quando pinta uma intercorrência como essa. É claro que, no conteúdo, você vê surgir o elenco de debates contemporâneos - a gravidez precoce, o aborto, a adoção, os problemas familiares. Mas, sobretudo, paira sobre o conjunto um senso de humor bastante saudável. Esse tom é a 'verdade' do filme.
É leve, mesmo que mexa com uma das grandes angústias dos pais, a tentativa de adivinhar o que se passa na cabeça dos filhos. Nesse sentido, o personagem do pai de Juno é exemplar. Não que ele tenha uma percepção extra-sensorial que o coloque acima dos outros. Simplesmente é mais relaxado, no sentido positivo do termo. Sabe que é impossível saber exatamente o que se passa na intimidade de uma adolescente. Mas pode muito bem amar e apoiar a filha, ainda que não concorde por inteiro com o que ela andou aprontando na vida. A palavra é tolerância e, por isso, Juno não é apenas um filme sobre jovens. É, ele mesmo, um filme jovem.

Aí em cima tá o trailer.

domingo, 17 de fevereiro de 2008

Só porque vos vi


Tanto de meu estado me acho incerto,
que em vivo ardor tremendo estou de frio;
sem causa, juntamente choro e rio,
o mundo todo abarco e nada aperto.

É tudo quanto sinto, um desconcerto;
da alma um fogo me sai, da vista um rio;
agora espero, agora desconfio,
agora desvario, agora acerto.

Estando em terra, chego ao Céu voando,
numa hora acho mil anos, e é de jeito
que em mil anos não posso achar uma hora.

Se me pergunta alguém porque assi ando,
respondo que não sei; porém suspeito
que só porque vos vi, minha Senhora.

Camões

Mais Pablo Neruda

Puedo escribir los versos más tristes esta noche.

Escribir, por ejemplo: "La noche está estrellada,
y tiritan, azules, los astros, a lo lejos".

El viento de la noche gira en el cielo y canta.

Puedo escribir los versos más tristes esta noche.
Yo la quise, y a veces ella también me quiso.

En las noches como ésta la tuve entre mis brazos.
La besé tantas veces bajo el cielo infinito.

Ella me quiso, a veces yo también la quería.
Cómo no haber amado sus grandes ojos fijos.

Puedo escribir los versos más tristes esta noche.
Pensar que no la tengo. Sentir que la he perdido.

Oir la noche inmensa, más inmensa sin ella.
Y el verso cae al alma como al pasto el rocío.

Qué importa que mi amor no pudiera guardarla.
La noche está estrellada y ella no está conmigo.

Eso es todo. A lo lejos alguien canta. A lo lejos.
Mi alma no se contenta con haberla perdido.

Como para acercarla mi mirada la busca.
Mi corazón la busca, y ella no está conmigo.

La misma noche que hace blanquear los mismos árboles.
Nosotros, los de entonces, ya no somos los mismos.

Ya no la quiero, es cierto, pero cuánto la quise.
Mi voz buscaba el viento para tocar su oído.

De otro. Será de otro. Como antes de mis besos.
Su voz, su cuerpo claro. Sus ojos infinitos.

Ya no la quiero, es cierto, pero tal vez la quiero.
Es tan corto el amor, y es tan largo el olvido.

Porque en noches como ésta la tuve entre mis brazos,
mi alma no se contenta con haberla perdido.

Aunque éste sea el último dolor que ella me causa,
y éstos sean los últimos versos que yo le escribo.

TRADUÇÃO

Posso escrever os versos mais tristes esta noite.


Escrever, por exemplo: "A noite está estrelada,
e tiritam, azuis, os astros lá ao longe".

O vento da noite gira no céu e canta.

Posso escrever os versos mais tristes esta noite.
Eu amei-a e por vezes ela também me amou.

Em noites como esta tive-a em meus braços.
Beijei-a tantas vezes sob o céu infinito.

Ela amou-me, por vezes eu também a amava.
Como não ter amado os seus grandes olhos fixos.

Posso escrever os versos mais tristes esta noite.
Pensar que não a tenho. Sentir que já a perdi.

Ouvir a noite imensa, mais imensa sem ela.
E o verso cai na alma como no pasto o orvalho.

Importa lá que o meu amor não pudesse guardá-la.
A noite está estrelada e ela não está comigo.

Isso é tudo. Ao longe alguém canta. Ao longe.
A minha alma não se contenta com havê-la perdido.

Como para chegá-la a mim o meu olhar procura-a.
O meu coração procura-a, ela não está comigo.

A mesma noite que faz branquejar as mesmas árvores.
Nós dois, os de então, já não somos os mesmos.

Já não a amo, é verdade, mas tanto que a amei.
Esta voz buscava o vento para tocar-lhe o ouvido.

De outro. Será de outro. Como antes dos meus beijos.
A voz, o corpo claro. Os seus olhos infinitos.

Já não a amo, é verdade, mas talvez a ame ainda.
É tão curto o amor, tão longo o esquecimento.

Porque em noites como esta tive-a em meus braços,
a minha alma não se contenta por havê-la perdido.

Embora seja a última dor que ela me causa,
e estes sejam os últimos versos que lhe escrevo.

sábado, 16 de fevereiro de 2008

Neruda



O Vento na Ilha

O vento é um cavalo
Ouça como ele corre
Pelo mar, pelo céu.
Quer me levar: escuta
como recorre ao mundo
para me levar para longe.

Me esconde em teus braços
por somente esta noite,
enquanto a chuva rompe
contra o mar e a terra
sua boca inumerável.

Escuta como o vento
me chama galopando
para me levar para longe.

Com tua frente a minha frente,
com tua boca em minha boca,
atados nossos corpos
ao amor que nos queima,
deixa que o vento passe
sem que possa me levar.

Deixa que o vento corra
coroado de espuma,
que me chame e me busque
galopando na sombra,
entretanto eu, emergido
debaixo teus grandes olhos,
por somente esta noite
descansarei, amor meu.

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2008

A grande dor das cousas que passaram

Erros meus, má fortuna, amor ardente
Em minha perdição se conjuraram;
Os erros e a fortuna sobejaram,
Que para mim bastava amor somente.

Tudo passei; mas tenho tão presente
A grande dor das cousas que passaram,
Que as magoadas iras me ensinaram
A não querer já nunca ser contente.

Errei todo o discurso dos meus anos;
Dei causa a que a fortuna castigasse
As minhas mais fundadas esperanças.

De amor não vi se não breves enganos.
Oh! quem tanto pudesse, que fartasse
Este meu duro Gênio de vinganças!

Camões

"A grande dor das coisas que passaram". Rubem Braga dizia que esse verso era a coisa mais linda que ele lera.
O soneto me lembra Bandeira: "A vida que poderia ter sido e não foi." Sempre pensamos nas coisas que fizemos, e que não deveríamos ter feito. Coisas que não fizemos, e que deveríamos ter feito. Adianta olhar para o passado? Se, parodiando aquele velho clichê, fosse possível "desenhar a vida com borracha", tudo seria mais fácil. Mas ela é vivida ao vivo. Sem ensaios. E sem borracha. Somos responsáveis pelas nossas decisões. Sábias ou estúpidas. E temos de lidar com as conseqüências.
Além do mais, a vida é toda impermanência. Tudo flui e nada é o mesmo, já dizia Heráclito. Então me ocorre uma fábula oriental. Um rei procura um sábio e pede que ele lhe escreva alguma coisa para ler num momento de aflição. O sábio escreve e o rei guarda o papelzinho. O reino é atacado, o rei perde tudo, e então lê o que o sábio escrevera. “Nem sempre vai ser assim”. Mais tarde, o rei recupera o reino perdido. Encontra o sábio e este lhe diz que agora, num momento de júbilo, deve ler de novo a mensagem. Nem sempre vai ser assim. Sêneca, meu filósofo favorito, escreveu que a vida é um eterno vai-e-vém de elevações e quedas. A diferença toda está em como nos portamos nas quedas.

terça-feira, 12 de fevereiro de 2008

Às vezes, é assim mesmo

Nós sabemos

Eu sei, mas não devia

Eu sei que a gente se acostuma.
Mas não devia.
A gente se acostuma a morar em apartamento de fundos e a não ter outra vista que não as janelas ao redor. E porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora. E porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas. E porque não abre as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a luz. E porque à medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.
A gente se acostuma a acordar de manhã, sobressaltado porque está na hora.
A tomar café correndo porque está atrasado. A ler jornal no ônibus porque não pode perder o tempo da viagem. A comer sanduíches porque já é noite. A cochilar no ônibus porque está cansado. A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia. A gente se acostuma a abrir a janela e a ler sobre a guerra. E aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja números para os mortos. E aceitando os números, aceita não acreditar nas negociações de paz. E aceitando as negociações de paz, aceitar ler todo dia de guerra, dos números da longa duração. A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir. A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta. A ser ignorado quando precisava tanto ser visto. A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o que necessita. E a lutar para ganhar o dinheiro com que paga. E a ganhar menos do que precisa. E a fazer fila para pagar. E a pagar mais do que as coisas valem. E a saber que cada vez pagará mais. E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com o que pagar nas filas em que se cobra.
A gente se acostuma a andar na rua e ver cartazes, a abrir as revistas e ver anúncios. A ligar a televisão e assistir a comerciais. A ir ao cinema, a engolir publicidade. A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos.
A gente se acostuma à poluição. À luz artificial de ligeiro tremor. Ao choque que os olhos levam na luz natural. Às besteiras das músicas, às bactérias da água potável. À contaminação da água do mar. À luta. À lenta morte dos rios. E se acostuma a não ouvir passarinhos, a não colher frutas do pé, a não ter sequer uma planta.
A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá. Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço. Se a praia está contaminada, a gente só molha os pés e sua no resto do corpo. Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana. E se no fim de semana não há muito o que fazer, a gente vai dormir cedo e ainda satisfeito porque tem sono atrasado. A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele.
Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se da faca e da baioneta, para poupar o peito.
A gente se acostuma para poupar a vida.
Que aos poucos se gasta, e que, de tanto acostumar, se perde de si mesma.

Marina Colasanti, extraído do livro "Eu sei, mas não devia", Editora Rocco - Rio de Janeiro, 1996, pág. 09.

sábado, 9 de fevereiro de 2008

A vida não é uma comédia romântica

Homem e mulher se conhecem numa sala de espera de médico. Ela grávida, ele esperando a mulher, que consulta com o médico. Ele oferece a "Caras" que estava folhando:
— Quer dar uma olhada?
Ela:
— Acho que essa eu já vi. É nova?
Ele, depois de consultar a data da revista:
— Bom, é deste século...
Os dois riem. E se apaixonam. Dessas coisas. Destino, química... Quem explica essas coisas? Se apaixonam, pronto. Mas não caem nos braços um do outro.
Mesmo porque a barriga dela, de sete meses, não permitiria. Ficam apenas se olhando, atônitos com o que aconteceu. Pois junto com o amor súbito vem a certeza da sua impossibilidade. Como uma ferida fazendo casca em segundos. E como nenhum dos dois é um monstro de frivolidade, e como a vida não é uma comédia romântica, é uma coisa muito séria, e como eles não podem largar tudo e fugir, trocam informações rápidas, para pelo menos ter mais o que lembrar quando lembrarem aquele momento sem nenhum futuro, aquela quase loucura. Sim, é o primeiro filho dela. Menino. E a mulher dele? Está consultando o médico porque a gestação complicou, o parto talvez precise ser prematuro.
Também é o primeiro filho deles. Filha. Menina. Que mais? Que mais? Não há tempo para biografias completas. Gostos, endereços, telefones, nada. A mulher dele sai do consultório. Ele tem que ir embora. Dá um jeito de voltar sozinho e perguntar o nome dela. Maria Alice. E o dele? Rogério! Rogério! E sai correndo, para nunca mais se encontrarem. Mas se encontram. Três anos depois, na sala de espera de um pediatra.
Ela chega com uma criança no colo. Ele está lendo uma revista. Talvez a mesma "Caras". Os dois se reconhecem instantaneamente. Ele pega a mãozinha da criança. Pergunta o nome. É João Carlos. Caquinho.
— Ele está com algum...
— Não, não. Consulta normal. Ele é saudável até demais. Hiperativo. E a de vocês? O parto, afinal...
— Foi bem, foi bem. Ela está ótima. Se chama Gabriela. Só veio fazer um checape. Eu não posso ficar lá dentro porque fico nervoso.
E declara que não houve dia em que não pensasse nela, e no que poderia ter sido se tivessem saído juntos daquele consultório, anos atrás, e seguido seus instintos, e feito aquela loucura. E ela confessa que também pensou muito nele e no que poderia ter sido. E ele está prestes a pedir um telefone, um endereço, um sobrenome para procurar no guia, quando a mulher sai do consultório com a filha deles no colo e ele precisa ir atrás, e só o que consegue é um olhar de despedida, um triste olhar de nunca mais.
Mas se encontram outra vez. Dois anos depois, na sala de espera de um pronto-socorro. Ele com a mulher, ela com o marido. Ele leva um susto ao vê-la. O que houve? É o Caquinho. O cretino conseguiu prender a língua numa lata de Coca. Ele se emociona. A mulher dele não entende.
De onde o marido conhece aquele Caquinho? E aquela mulher, que está perguntando se aconteceu alguma coisa com a Gabriela? Não foi nada, Gabriela só bateu com a cabeça na borda da piscina e está levando alguns pontos. E nem a mulher dele nem o marido dela entendem por que, ao chegar a notícia de que o Caquinho só ficará com a língua um pouco inchada, os dois se abraçam daquela maneira, tão comovidos. Depois, em casa, ele se explica:
— Solidariedade humana, pô.
A história não precisa terminar aí. Rogério e Maria Alice podem continuar se encontrando, de tempos em tempos, em salas de espera (dentistas, traumatologistas, psicólogos especializados em problemas de adolescentes etc.) até um dia ela sair do quarto de hospital onde está o Caquinho, que teve um acidente de ultraleve, e avistá-lo na sala de espera da maternidade, e perguntar:
— A Gabriela está tendo bebê?
E ele fazer que sim com a cabeça, com cara de "para onde foram as nossas vidas"?



Luiz Fernando Veríssimo

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2008

Bem-aventurados os "vieiras" da vida, pois deles será o reino dos céus!



Esquerda e direita

"O capitalismo é a exploração do homem pelo homem. O comunismo é exatamente o contrário."
Stanislaw Ponte Preta



Camões por Rubem Braga

Rubem Braga tinha um enorme carinho por Camões que, em seu tempo, era usado para os estudantes aprenderem análise sintática. Trata-se de um poeta macho, forte, e faz com que saiamos mais fortes do seu convívio, segundo o escritor.
Sobre isso, disse certa vez:

"Velho Ludovicus, só agora aprendi que tens o direito de chatear e mortificar a juventude através das gerações - porque o gênio tem todos os direitos."


É mais ou menos como eu me sinto ao ensinar Camões nas aulas de Literatura! rs


Resposta ao velho Braga

Muitos anos depois, a Danuza Leão escreveu uma crônica, analisando o relacionamento entre ambos:

"Ele foi apaixonado por ela. Não, apaixonado não é a palavra: era um bem querer que ultrapassava qualquer necessidade de tocar seu corpo e acabar na cama. Não que isso estivesse fora de cogitação, mas não era o objetivo final. Não havia objetivo algum, a não ser olhar e ir gostando, gostando. Gostando para nada, o que se naquele tempo já era difícil de entender, imagine hoje de explicar.
Durante muito tempo ela fingiu que não entendeu; gostava dele mas assim, nada demais, e às vezes até incomodava aquele homem que olhava para ela tão sério, com um olhar tão grave. Com ele por perto era difícil dar risada, fazer graça, sair dançando.
Com ele era diferente; ela não provocava, quando se sentava cobria as pernas e chegava a parecer pudica, quando ajeitava o decote. Ela não provocava porque não era preciso, e com ele não dava para brincar; com ele era diferente.
O tempo passou; ele teve muitos casos, ela se casou algumas vezes, mas sempre que se encontravam guardavam um silêncio respeitoso sobre seus amores passados ou presentes. Esse era um assunto rigorosamente tabu, como se tivessem tido um caso de amor intenso. Até os amigos comuns percebiam a delicadeza do tema e disso não se falava.
Mais tarde, quando algumas vezes se cruzaram - ela com seus filhos -, era como se não fossem dela; ele simplesmente não registrava que eles existiam e nunca fez o mais banal dos comentários, do tipo 'parecem com você'. Não, essas convenções sociais para ele não existiam, e ela entendia.
Muito tempo se passou e um dia, numa tarde de domingo, a troco de nada, começou a pensar nele. Por que, afinal, nunca tiveram nada um com o outro? Por quê?
Ficou pensando: se divertiu muito na vida, deu muita risada, fez muita bobagem; brincou infindáveis vezes de se apaixonar, machucou muito e foi muito machucada, mas sempre levou a sério algumas regras de conduta que nem ela sabia que tinha, mas que sempre respeitou. Uma delas é que não se pode brincar com os sentimentos dos outros, não quando eles são sérios; não com os de uma pessoa como ele.
Agora, na tal tarde de domingo, fica pensando em quanto gostaria que ele soubesse disso, que soubesse porque nunca houve nada, nem um braço encostado por acaso. Não que ele houvesse algum dia tentado, mas por certo gostaria; claro que gostaria.
Mas sente que não foi preciso; ele, que era incapaz de fingir ou mentir, sempre soube que ela, à sua maneira, também não.
No fundo ela sabe, sempre soube, que eles se gostaram e de certa maneira se amaram, no que isso tem de mais sério, de mais direito.
Foi só isso, e isso é muito."

O velho Braga

No amor, os defeitos transformam-se em encantos. E não serão encantos mesmo?

Crônica do velho Braga que, na verdade, era dirigida à Danuza Leão:

"Diziam que Maria do Carmo era muito escura; eu dizia que era bem morena.
Diziam que era muito desleixada; eu dizia que era displicente. Que era sem modos; eu dizia que era muito viva.
Também disseram que ela quando cantava desafinava e eu dizia que ela tinha a voz muito bonita.
Pescoço de girafa! - diziam; e eu murmurava: de cisne. Muito sem educação!; mas eu achava que era espontânea. Desfrutável; e eu dizia que era muito engraçada.
Então as amigas bondosas e os amigos compassivos ficavam irritados, me encaravam e faziam uma pergunta com ar de desafio: será que você tinha coragem... E eu suspirava: quem me dera.
Então o último argumento terrível foi dizer que ela dava confiança a todo mundo. E eu baixei a cabeça e fiquei triste. Fiquei triste porque não era verdade. Ela nunca me deu confiança."